Na encruzilhada do património imaterial

PorCésar Monteiro,2 dez 2019 11:36

Marca primordial da cultura nacional e prática musical dançante, a morna, que precede o fado português, em termos cronológicos, não obstante as semelhanças melódicas e líricas entre ambos os géneros, terá nascido na Boa Vista, no primeiro quartel do século XIX.

Desde o início, a música, através das suas mais diversas expressões, tem marcado forte presença, tanto na formação e evolução da sociedade cabo-verdiana, quanto na sua consolidação, e, por isso mesmo, permeia, de forma transversal, toda a atividade social e assume um papel extremamente relevante no seu dia a dia, num contexto de insularidade e interinfluências essencialmente europeias e africanas. Produto do encontro e da interpenetração de diferentes povos e culturas numa sociedade mestiça, a música constitui-se, pelo seu posicionamento estratégico e privilegiado e pela sua crescente vitalidade, como expressão identitária maior destas ilhas atlânticas, facilitadora da configuração de uma personalidade coletiva nacional construída e sedimentada no tempo. 

Através particularmente da morna, um dos géneros performativos tradicionais emergido por volta da 1820, em contexto de romantismo, a música cabo-verdiana perfila-se, desde sempre, como um dos maiores baluartes de uma sociedade arquipelágica, descontínua, regulada por apertados mecanismos de controlo social e relativamente homogénea, não obstante a pronunciada estratificação e as profundas assimetrias regionais que ainda enformam o sistema. Marca primordial da cultura nacional e prática musical dançante, a morna, que precede o fado português, em termos cronológicos, não obstante as semelhanças melódicas e líricas entre ambos os géneros, terá nascido na Boa Vista, no primeiro quartel do século XIX, difundindo-se, sucessivamente, pela Ilha Brava, S. Vicente e demais pontos do território nacional, de acordo com fontes credíveis, sob o impulso de dinâmicos processos aculturativos, transculturativos e de miscigenação musical. Desterritorializada para outros espaços ilhéus de difusão, a empolgante “música rainha di nôs terra” (Manel d’Novas, 1996), um dos maiores suportes do sistema cultural e identitário nacional, viria a ganhar contornos próprios, tomando a “feição psíquica de cada povo”, na expressão do compositor e poeta, Eugénio Tavares (1930), num processo evolutivo “ascensional” ou descensional, criticado, justamente, pela sua linearidade e previsibilidade. 

Na ausência de provas documentais consistentes, José Alves dos Reis, num artigo inserido na extinta Revista Raízes, em junho de 1984, na linha do testemunho escrito de Eugénio Tavares, viria a confirmar a paternidade da ilha da Boa Vista das mornas mais antigas que se conhecem, partindo de um estudo de campo então realizado pelo então conceituado músico e professor de várias gerações do Liceu Gil Eanes de S. Vicente. Sem margem para dúvidas, a despeito da sua controversa origem histórica, a morna é o género musical mais transversal, consolidado e representativo, do ponto de vista da sua estrutura rítmica e melódica e da sua extensão territorial, a manifestação mais abrangente da identidade crioula. Emergida do seio das cantadeiras boavistenses, no meio do povo, a “canção poética nacional do cabo-verdiano” (B. Léza, 1933) viria, no entanto, a perder, na Ilha Brava, aonde chegaria, ao longo da segunda metade do século XIX, através de navios veleiros, que ligavam as ilhas, o cunho satírico e popular, que adquirira inicialmente, numa rápida mobilidade vertical ascendente do “quintal para o salão”, marcada pela nobilitação ou, se quiser, pelo enobrecimento deste género, na linha de raciocínio do professor liceal, filólogo e escritor, Baltasar Lopes. 

Expressão da alma cabo-verdiana, como diria o poeta, caraterizada pelo seu andamento lento, pelo seu alinhamento dentro do compasso quaternário, pelo seu ritmo de base sincopado e pela utilização privilegiada de tonalidades menores, do ponto de vista estritamente musical, a morna tem passado por evoluções profundas de cunho essencialmente harmónico, conquanto mantendo a sua estrutura rítmica de base, que lhe confere originalidade e autenticidade próprias. Criação do povo das ilhas e suportada por um triângulo harmónico perfeito, que congrega a melodia, a poesia e a dança, a morna privilegia temas como a saudade, a dor, o amor, a doçura, a ternura, a infidelidade, a morabeza, a partida, a emigração, a melancolia e a política, entre tantos outros, socorrendo-se de um suporte poético construído ao longo de várias gerações, que lhe garante a língua cabo-verdiana, nas suas variantes e matizes regionais, ao sabor das dinâmicas e transformações sociais. 

Nesse processo híbrido e sinuoso de construção e de afirmação da “cantiga mais caraterística de Cabo Verde” (Désiré Bonnaffoux, 1978), a morna, enquanto património identitário imaterial mais expressivo e transnacional das ilhas, cantado e dançado, é garante da coesão e unidade nacionais, numa sociedade, de resto, desigual e de profundas assimetrias e clivagens, e assume-se como componente facilitadora da comunicação, de horizontalização, de descompressão e, ainda, de nivelamento das relações sociais. Partilhada por todos os grupos, categorias e classes sociais, a “princesa d’nôs serenata” (Manel d’Novas, 1996) marca presença nos ritos de passagem e nos momentos fulcrais da vida do cabo-verdiano, tanto nas ilhas como na diáspora, na sua função socializadora e integradora, num percurso transversal invejável, que lhe vale, por mérito próprio, o reconhecimento pela UNESCO de património imaterial mundial e projeta-a, ao mesmo tempo, para patamares mais elevados, na além-fronteira, como componente estratégica de desenvolvimento.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 939 de 27 de Novembro de 2019. 

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Autoria:César Monteiro,2 dez 2019 11:36

Editado porSara Almeida  em  22 ago 2020 23:21

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