Poeta desde os tempos de estudante do Liceu de Gil Eanes de Mindelo, ilha de São Vicente, de onde é natural, Corsino Fortes, iniciou-se no «Boletim dos Alunos do Liceu de Gil Eanes, em 1959.
Publicou também poemas na revista «Claridade» e no «Cabo Verde − Boletim de Propaganda e de Informação», nos inícios dos anos 60 do século passado.
O poeta Corsino Fortes começou a trabalhar cedo e segundo Manuel Ferreira, («No Reino de Caliban I» 1975, página 203): “Fez os seus estudos liceais já numa fase adiantada da sua juventude.(...) Foi professor eventual do Liceu da Praia”.
Mais tarde, em 1962, obteve uma bolsa de estudos e seguiu para Portugal para prosseguir estudos superiores.
Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, foi Juíz de Trabalho em Angola, onde permaneceu até ao processo (1974/1975) das independências das antigas Colónias ultramarinas portuguesas.
Ainda em 1974, regressou a Cabo Verde, tendo, logo a seguir à independência desempenhado funções de membro do Governo e de Diplomata; tendo sido nomeadamente, Embaixador de Cabo Verde em Portugal e em Angola.
Foi Presidente da antiga Associação dos Escritores Cabo-verdianos (AEC) e mais tarde fundador da Academia Cabo-verdiana de Letras e seu primeiro presidente.
Para além de um vasto acervo de poemas publicados de forma dispersa, Corsino Fortes deixou antologias poéticas, entre as quais se distinguem: «A Cabeça Calva de Deus», «Pão & Fonema» e «Árvore & Tambor - Pedras de Sol e Substância».
Percorrendo a obra de Corsino Fortes, creio descortinar duas fases na sua poesia que separo em termos temporais, e em termos de causas inspiradoras.
A primeira, é a fase de lírico, cantor dos seus amores jovens e da sua cidade natal, Mindelo; é também o período em que ocorre a descoberta de uma certa mística do destino que liga o sujeito poético à terra e às divindades que a presidem.
Trata-se, no meu entender, de uma fase em que o poeta teceu os seus mais belos poemas, em que a imagética, o ritmo e o lirismo se entrosaram numa correspondência harmoniosa. Alguns exemplos: “Mindelo”; “Girassol” “Paixão” “Pecado Original”. Estes poemas encontram-se coligidos no volume I de «No Reino de Caliban» já aqui citado.
Neste contexto inicial como poeta, Corsino Fortes, definiu a sua escrita da seguinte forma. “ (...) Houve uma fase anterior, com o pseudónimo ABC- CORANTES. Corantes: Cor- Corsino; An- António; tes - Fortes (...) Durante esse período, ia já escrevendo sobre as minhas vivências, dentro de um certo lirismo idealista (...) uma vertente telúrica que vai desembocar em «Mindelo». (...) Eu escrevi imenso (...) mas havia outra vertente que era mais esotérica, com um espectro existencial sobre a própria vivência em si...escrevi poemas necessários, para serem necessariamente esquecidos.” In: Encontro com Escritores, Michel Laban II vol.
Muito interessante e bem ilustrativa, a forma como o poeta se “autodefiniu” como iniciante nas lides da poesia.
A segunda fase, é a sua transformação metafórica de poeta lírico em poeta de intervenção. Neste período, o poeta já se revelava versado numa poesia mais sintonizada com a época das grandes transformações no que toca ao posicionamento dos poetas e dos escritores africanos face aos problemas do Continente e muito particularmente, os do mundo da Língua portuguesa que almejavam o fim da dominação colonial.
É assim que o vamos encontrar − o poeta − nos poemas insertos nas antologias já aqui referidas, nomeadamente, «Pão & Fonema».
E para melhor intuir a mudança operada no poeta, seguiremos os versos do poema “Vendeta.” Exactamente por ser, no meu entender, o poema que marca a viragem – da primeira para a segunda fase – da abordagem poética de Corsino Fortes. Um marco de certa forma demonstrativo do divórcio do poeta com a sua lírica até aí realizada. Doravante seguirá o verso “rebelde” que se evadiu deliberadamente do poema que ele escrevia. Este poema foi publicado, no nº 9 da revista «Claridade», em 1960.
Afinal, o tal verso “rebelde” que se evadiu “descaradamente” dos outros companheiros, sobrepôs-se e agigantou-se de tal modo que dominou o sujeito poético e o levou a questionar a obra feita até então. O dito verso, incitou-o a mudar o rumo da sua poética. Poética essa, que necessariamente havia de sair do seu cantar alegre, embora não despreocupado, mas que agora devia emergir em “imagens feridas” da “dor” e do “sangue” das vítimas.
Parece-me ser esta uma das leituras que retirámos da análise de «Vendeta» e que, sendo plausível, ajudar-nos-á também a entender a transformação e a alteração do “modus operandi” subsequente na poesia de Corsino Fortes. Aquele que ele patenteia com à-vontade e abundância nas colectâneas já aqui referidas − «Árvore & Tambor» e as outras duas.
Uma poética futura e futurista que não se deixa captar em superfícies facilmente visualisáveis, mas antes, enreda-se em jogos metafóricos de sons, de fonemas e de aliterações que vão ao âmago da Língua, de tal sorte que esta passa a funcionar nos poemas do autor, como protagonista dos actos poéticos que ele consente e enforma. E assim foi até ao fim, o timbre e o tom dos poemas de Corsino Fortes.
Mas ainda voltando à mutação na “poesis” ou, no tecido poético de Corsino Fortes, deixo ao leitor, para melhor ilustração, os versos de «Vendeta» que marcam a ruptura e fazem o presente versus futuro deste poeta. Ei-lo:
“Um verso escapa / Descaradamente / Do poema que escrevo // Um rumor longínquo / Segreda-me / Que ele espezinha / Os companheiros / Da minha caravana / De repente / Ele projecta-se / No «écran» do meu espanto / Com garras e lábios / Manchados de sangue. // Nos seus olhos há imagens feridas. // E numa voz cortante / Blasfema // Sou a dor / O sangue / A vítima / Dos teus crimes impunes! // Vingo-te á minha maneira. // Renego-te / Renegado!...”
Finalizo, dizendo que Corsino Fortes encontra o seu lugar como poeta e situa-se na poesia cabo-verdiana, entre o telurismo e a cabo-verdianidade da escrita saída dos Claridosos dos anos 30 e a pujança intervencionista dos poetas da década de 60 do século passado.
II
Aproveito a ocasião, para também aqui transcrever o texto que enviei à Academia Cabo-verdiana de Letras, a seu pedido, para a evocação do quinto aniversário da morte do poeta:
“Um poeta fidalgo passeando pela brisa da tarde... assim apetece-me definir Corsino Fortes, aproveitando o título de um romance da Mário Carvalho, «Um Deus passeando pela brisa da tarde»
“Poeta fidalgo”, assim o chamo agora. A sua fidalguia no trato, o que incluía até o beija-mão às senhoras; o seu falar pausado, procurando trazer em cada vocábulo um imenso cuidado para uma assertividade contextual mais próxima do pretendido no diálogo com outrem; o seu ser social sempre repleto de generosidade e de lhaneza.
“Poeta fidalgo” o que contrastava alegremente com seu bradar “revolucionário” numa poética em que os revoltosos afinal, eram ...”os fonemas” em metáforas transpostas para uma escrita de sons transformadores, tresloucados, em busca do “pão... De boca a barlavento, indo de rosto a Sotavento”.
Corsino Fortes, o cantor de Mindelo, um dos seus mais aficionados e apaixonados trovadores, comparável à composição musical de B. Leza e de Jotamont, nesse louvor à cativadora cidade.
E assim no-lo diz o poeta:
«(...) Mindelo // Recanto de sonhadores / de poetas e músicos / de aves sem asas / Voando / Em busca de alvo / na neblina da noite.»
E continua o poeta mergulhado no fascínio das noites de Mindelo:
“(...) Mindelo / Ò doce Mindelo morno / De lua nascente e poente / De noite debruçado / na morna dolente/ de poesia encostada / Na esquina da noite. // Mindelo de luzes / de pétalas e prantos / Ò quimera perdida / Ò berço adormecido / embalado / dentro de mim!”.
Poeta das ilhas também.
A minha homenagem amiga.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 973 de 22 de Julho de 2020.