EDITORIAL: Consequências

PorHumberto Cardoso, Director,31 ago 2020 6:37

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A semana passada foi marcada pela revelação na imprensa internacional de uma alegada missão oficial à Venezuela seguida de comunicado do governo a desmentir o facto e a demitir das suas funções numa empresa pública o suposto emissário.

O visado respondeu com uma nota à imprensa onde deixou claro que foi contratado pela defesa de Alex Saab, a figura central do caso de extradição ainda à espera de uma resposta do Supremo Tribunal de Justiça. Confirmou que esteve nas redondezas da Venezuela mais precisamente nas ilhas de São Vicente e Granadinas, mas tratava-se dos seus próprios negócios e não fazia parte de qualquer delegação do Estado de Cabo Verde. Seguiram-se outros comunicados entre o governo e a oposição com as costumeiras acusações que na ânsia de ganhos político-partidários a curto prazo mais ofuscam do que iluminam os problemas. Entrementes plantaram-se dúvidas quanto à seriedade e honestidade do governo, acusado de querer à socapa negociar com o regime de Caracas, precisamente quando arranca o ciclo eleitoral com as eleições autárquicas.

Numa carta aberta, datada de 10 de Agosto, Alex Saab, depois de descrever o seu percurso como empresário e a situação de detenção em que se encontra actualmente, fez saber ao primeiro-ministro de Cabo Verde que “não tem dúvidas que a sua inacção terá consequências jurídicas e políticas”. Após o aviso veio a oferta de “ajudar Cabo Verde mais do que os Estados Unidos em 100 anos”. Pelos desenvolvimentos da semana passada apercebe-se que provavelmente já se estão a verificar as consequências da inacção. A imagem do governo foi beliscada. Para muitos a narrativa do envio de uma missão oficial à Venezuela é verosímil. Contribui para a credibilizar o perfil dos alegados emissários e a circunstância de terem ocupado altos cargos públicos, de serem activos nos círculos do poder e manterem relações próximas com decisores relevantes. O facto de virem confirmar que fizeram a viagem para a América do Sul emprestou plausibilidade ao que foi relatado na imprensa internacional não obstante as discordâncias quanto às partes do trajecto e aos motivos da viagem. O que faz dessa narrativa quase uma impossibilidade é o governo não ter nada com que negociar. Estando o processo de extradição em curso ela “só pode ser decretada por decisão judicial” (nº 6 do artigo 38º da CRCV).

Infelizmente o governo não foi desde o início claro e directo a explicar que Cabo Verde por ser uma democracia e um Estado de direito e também um pequeno país arquipelágico tem deveres de cooperação com os outros países na luta contra o terrorismo, contra todos os tipos de tráfico e formas de lavagem de dinheiro. As fragilidades do país fazem dessa cooperação uma via essencial para garantir a segurança, liberdade e prosperidade. É evidente que riscos existem em particular quando do outro lado estão entidades estatais e não estatais poderosas habituadas a imporem-se pela força e que recorrem à chantagem e a ameaças para atingir os seus objectivos. Ocorrendo uma dessas situações, o importante é reconhecê-la, denunciá-la e alertar o país para o perigo que daí pode advir. O pior que se pode fazer é deixar-se dividir pela acção exterior e tornar o confronto político-partidário num prolongamento ou apêndice dessa luta que, na sua essência, põe em causa os fundamentos de uma vida em liberdade com paz e justiça.

Porque a defesa dos interesses de Cabo Verde deve nortear o seu posicionamento quando cumpre o dever de colaboração, a cooperação com outros países tem que incluir uma componente de capacitação efectiva do país. Ser útil não pode simplesmente significar que o país se torna num espaço avançado de intercessão e confronto de infractores cujos produtos traficados têm um outro destino e outro mercado, arcando com os custos correspondentes: risco de ter elementos extremamente perigosos em prisões inadequadas, processo judicial longo e complexo e ameaças de retaliação vindas de organizações criminosas transnacionais poderosas. Não parece que se ganha muito em ser referência internacional na captura de grandes quantidades de droga simplesmente porque quem fez a investigação e tem todas as informações sobre o percurso passou convenientemente a informação para a polícia local fazer a apreensão. É só ver a fragilidade da capacidade nacional em controlar as costas das ilhas, em reagir a emergências e desencadear operações de busca e salvamento local para se concluir que toda a colaboração que o país tem dado no combate ao narcotráfico não tem sido devidamente compensada ou por falta de disponibilidade dos “parceiros” ou por inépcia dos sucessivos governos. Já é tempo de se alterar as coisas tanto no sentido de se acautelar situações de risco excessivo para o país como para garantir que se consiga ganhos reais dessa cooperação.

Cabo Verde já iniciou um novo ciclo eleitoral com as primeiras eleições marcadas para daqui a dois meses. O facto de se estar a viver um momento sensível com forças poderosas estrangeiras pendentes de uma decisão judicial abre a possibilidade de interferências no processo eleitoral com base em motivações das mais diversas. O enlamear deliberado da imagem do governo que se verificou na semana passada onde se juntaram recursos consideráveis para garantir plausibilidade de uma narrativa negativa pode não ser uma acção isolada e que outros exemplos de punição ou de retaliação por supostos agravos poderão estar na forja. Nestes dias como se pode constatar do London Daily Post de 20 de Agosto sob o título “Luxemburg invests in Cape Verde – newest narco-state” pôs-se a circular a ideia de que Luxemburgo deveria perguntar se vale a pena gastar os seus euros com Cabo Verde. Pode ser coincidência, mas não deixa de ser preocupante que na mesma semana em que se procura denegrir a imagem do país também se ponha em causa a cooperação generosa de Luxemburgo.

Uma realidade com que hoje em dia qualquer democracia pode deparar-se é a possibilidade de interferência de outros países nos processos eleitorais. Com a ajuda das novas ferramentas da internet e recorrendo às redes sociais e às fake news, aparentemente nenhuma democracia está livre de tentativas de manipulação, nem as mais antigas e consolidadas muito menos as recentes e altamente polarizadas. As eleições nos Estados Unidos, em 2016, e posteriormente em outros países europeus não deixam quaisquer dúvidas a esse respeito. De facto, ninguém ignora que hoje técnicas de condicionamento de eleições, mobilização de votantes e de criação e destruição de candidatos fazem parte do arsenal que um Estado ou mesmo outras entidades podem usar para conseguir desfecho favorável para candidatos preferidos e punir proponentes de certas políticas.

Para quem vai a eleições dentro de pouco tempo, todo o cuidado é pouco. Dos partidos políticos e também dos candidatos é de se exigir um maior esforço na salvaguarda dos princípios que permitem a qualquer cidadão exercer livremente o seu voto. Deve-se deixar claro que a opção pela liberdade e democracia não é negociável e que é de rejeitar qualquer tipo de interferência. Mais do que nunca há que evitar o extremar de posições e focalizar-se no debate construtivo que conduz à realização do interesse geral.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 978 de 26 de Agosto de 2020. 

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,31 ago 2020 6:37

Editado porSara Almeida  em  12 jun 2021 23:21

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