Depois questionou-se se houve ou não cortes no orçamento da presidência da república no tom já habitual entre os protagonistas políticos que pouco esclarece, mas serve para alimentar especulações sobre possíveis tensões entre os dois órgãos de soberania. Curioso é que enquanto em Cabo Verde muitos se apoderam do tema com intervenções na comunicação social e nas redes sociais que acabam por configurar mais um “round” nos múltiplos jogos para manter activa de crispação política, a cimeira de Accra, sem ter conseguido chegar a acordo em relação à situação no Mali, Burkina Faso e Guiné-Conacri mostrou-se praticamente uma perda de tempo. Foi adiada para o próximo mês de Julho.
De qualquer forma, em todo este imbróglio a questão central sobre qual devia ser a participação de Cabo Verde, considerando as prioridades da política externa do país, e a que nível de representação, se do Chefe de Estado ou do Governo ou de Embaixador, é que aparentemente não foi discutida. Certamente que se tivesse sido esse o caminho seguido desde o início, para qualquer que fosse a opção adoptada encontrar-se-iam os meios financeiros para a concretizar, não obstante os constrangimentos orçamentais actuais do país. Tanto nesta como em outras situações é fundamental que se afirme que deslocações e viagens oficiais têm como objectivo principal razões de Estado e não protagonismo pessoal ou motivação partidária. Porque, de facto, tratando-se da utilização de recursos públicos, e estes são sempre escassos, a decisão para as realizar devia ser sempre devidamente ponderada.
A verdade é que há dúvida nas pessoas, que todos os dias assistem na televisão pública ao desfile dos políticos em frequentes e repetidas visitas às ilhas, encontros com população, auscultações, inaugurações, apresentações de planos estratégicos, aberturas e fechos de seminários, formações e socializações, se essas deslocações e viagens se justificam. Provavelmente algumas terão razão de ser, mas certamente que nem todas. Viu-se durante a pandemia, em particular durante os lockdown e as restrições nas viagens, que com alguns constrangimentos é certo, podia-se funcionar, fazer chegar mensagens às pessoas e resolver problemas candentes. A essa experiência muito concreta e real devia seguir-se mais contenção no que até o momento tinha sido uma prática de décadas.
As dificuldades que se seguiram com a retoma a não se verificar no ritmo esperado, com os surtos das variantes do SARS-CoV-2 a perturbar um regresso à normalidade, e depois com a invasão da Ucrânia pela Rússia acompanhadas das incertezas em relação a esses e outros constrangimentos que ainda se mantêm, deviam ter levado a uma mudança profunda de atitude. Não foi o que aconteceu e claramente que a tendência é voltar ao que sempre se fez. E continuará a ser assim enquanto não houver melhor ponderação nas decisões de viagem, considerando designadamente as prioridades de governação, a eficácia na execução da política interna e externa do governo, a representação do país e o dever de accountability, de responsabilização e de prestação de contas. Ficar-se-á na mesma também se não se cortar com práticas de responder sem razão justificada a convites feitos ou solicitados, de exercer funções públicas seguindo motivações pessoais ou partidárias ou deixar-se enredar em agendas de outras entidades porque é conveniente e não se tem uma agenda própria.
Muito do que acontece na política e em outras actividades públicas e em eventos diversos ao nível nacional e também local faz-se em modo de espectáculo e em geral põe-se mais ênfase nos protagonistas do que nos temas ou questões tratadas. Daí o desdobramento de certas personalidades por tudo o que é mediático resultando muitas vezes em excesso de exposição, banalização de funções e em custos evitáveis em deslocações e estadias. E não se pense que nisto tudo estão envolvidos apenas governantes, deputados, presidentes de câmara e outros políticos. O Primeiro-ministro na discussão do Orçamento do Estado a explicar os 630 mil contos para deslocações e estadias deixou claro que uma parcela significativa dessa soma é utilizada pela administração pública e outros serviços do Estado e o mais normal é que as práticas já estabelecidas levem a um maior prejuízo para as finanças públicas do que se pode claramente assacar aos políticos. Afinal eles são um alvo mais visível e atacável do que práticas e culturas organizacionais estabelecidas que muitos pouco ousam pôr em causa.
O privilégio de viajar dentro e fora do país com as correspondentes ajudas de custo foi sempre cobiçado nos vários níveis dos serviços do Estado. Visto por muitos como complemento de salários deliberadamente diminuídos nos primeiros anos da independência era procurado activamente pelos que tinham acesso de alguma forma a dirigentes e conseguiam integrar delegações. Aos outros num tempo que era de escassez ficava só a possibilidade de comprar produtos trazidos do exterior por colegas e adquiridos, supunha-se, com poupança nas ajudas de custo. Imagine-se a inveja que tudo isso provocava. Quando podiam, alguns privilegiados até instituíram uma espécie de escala de viagem. Não espanta que ainda hoje a questão de viagens e ajudas de custo seja matéria sensível seguida por largos sectores da população e por isso potencialmente explosiva e passível de aproveitamento nas lutas partidárias. Curiosamente não há muita preocupação com uma outra consequência dessa prática. A desconformidade entre integrantes das delegações e o objectivo da viagem, que vem de longe e ainda é perceptível em alguns casos, tem custos e explica muitas vezes a inutilidade, a falta de resultados ou a dificuldade de se fazer o seguimento de missões. Nem por isso, como se pode inferir da controvérsia actual, se procura preparar melhor as participações, fazer as concertações necessárias e mobilizar os recursos para o sucesso das mesmas.
Cabo Verde não precisa de distracções artificialmente criadas só para manter a virulência política que impede o debate de questões de substância e de futuro. No ambiente actual de preços elevados de todos os produtos e em particular dos bens alimentares e dos produtos energéticos o foco devia estar em ganhos de eficiência a todos os níveis não só para se ser mais produtivo como também para poupar nos recursos disponíveis. Obviamente que a poupança nas deslocações e estadias por serem mais visíveis e também matéria sensível pelas razões referidas deveria ser um objectivo central da governação na actual conjuntura.
Até ajuda que não se esteja num período pré-eleitoral em que a pressão partidária não é tão forte e que a reacção das pessoas perante as incertezas do momento é de maior contenção nas suas exigências. Para isso, porém, o exemplo deve vir de cima. E ao contrário do que disso o Primeiro Ministro em entrevista, as críticas devem ser escutadas para melhor se estar em condições de governar o país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1071 de 8 de Junho de 2022.