Um dos grandes logros que marcaram o século XX, e tem marcado este primeiro quartel do século XXI, é a crença de que muitos dos que lutaram para se libertar do colonialismo, do fascismo, do comunismo e de outros regimes autoritários, o fizeram com o nobre propósito de substituir tais sistemas opressivos por regimes efectivamente democráticos, modernos estados de direito, respeitadores do princípio da separação de poderes.
Podia-se falar de Portugal, aonde certas forças, que tinham combatido o regime de Salazar/Caetano, tentaram, na primeira oportunidade que se lhes ofereceu, implantar nesse país uma democracia popular de matriz comunista.
Podia-se também citar o exemplo das ex-colónias portuguesas, que conhecemos muito bem, aonde movimentos de libertação, que tinham prometido liberdade e justiça, substituíram a administração colonial-fascista por regimes também autoritários.
Mas, as mais desconcertantes experiências nesse domínio têm sido alguns países do antigo Leste Europeu, em que as mesmas lideranças que encabeçaram o derrube do sistema comunista, parecem hoje apostadas em pôr de pé regimes autoritários, embora sob roupagens democráticas.
O mesmo se poderá dizer da Nicarágua, aonde Daniel Ortega, líder da Frente Sandinista, que derrubou a ditadura dos Somoza, hoje se afirma também como execrável déspota, cujo regime acaba de ser caracterizado pelo Papa Francisco como “uma ditadura comunista ou hitleriana”.
Característica comum a todas essas derivas tem sido a aversão à democracia liberal e o concomitante culto do “homem forte”. O culto de um poder personificado, constitucionalmente ilimitado, em detrimento da efectiva separação de poderes, dos checks and balances, inerentes às democracias robustas.
Estranho, entretanto, é que lá aonde não existir o “homem forte”, não falta quem tenta construí-lo. Claro, na expectativa de o poder manipular em seu proveito.
O que fica dito vem a propósito de iniciativas que temos vindo a assistir em Cabo Verde, da parte de certos cavalheiros, que se têm por referências da luta pela democratização do país, mas que não hesitam em instar o Presidente da República a se assumir, à revelia da Constituição da República, como uma espécie de tutor ou encarregado de educação dos demais órgãos de soberania, em especial do Parlamento e dos Tribunais.
Pelo menos em três ocasiões esse subliminar apelo ao “homem forte” se fez sentir entre nós. Por sinal, sempre para intervir na Justiça e sempre a pedido dos mesmos protagonistas.
O primeiro foi aquando de um abaixo-assinado, de que o advogado e escritor Germano Almeida se fez porta-voz, pressionando o então Presidente da República Jorge Carlos Fonseca para que providenciasse uma comissão ad hoc, integrada por putativos notáveis, para, em substituição do órgão constitucional Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), investigar denúncias de condutas, alegadamente impróprias, imputadas a magistrados.
O segundo momento foi quando se tentou pressionar o mesmo Presidente para que tomasse uma posição no sentido de se pôr termo à detenção do cidadão venezuelano Alex Saab e ao processo judicial da sua extradição para os Estados Unidos.
O terceiro momento é este que temos estado a viver, marcado por uma avassaladora pressão sobre o Presidente José Maria Neves, para que, dando um puxão de orelhas ao Parlamento e aos Tribunais, ponha termo à prisão do Deputado Amadeu Oliveira e ao procedimento criminal que contra ele vem estando em curso.
Em todas essas investidas o que sobressai é uma estrutural dificuldade dessa gente em conviver com os fundamentos do moderno estado constitucional, de modo muito particular com o princípio da separação de poderes.
Para isso, não hesitam em se socorrer de uma artificiosa e ardilosa retórica, que infunde nos fanáticos e nos menos esclarecidos a ideia de que o Presidente da República, que dizem ter sido por “eles” eleito, é o “homem forte” do regime, que detém, em relação aos demais órgãos de soberania, nomeadamente em relação aos Tribunais, poderes mágicos que só por covardia ou má vontade recusa exercer.
Ora, a sorte da Democracia Cabo-verdiana, pelo menos até agora, é que os Presidentes da República não se têm deixado embarcar nesses desvarios populistas.
Por exemplo, é sabido que o pedido de se pôr de pé uma comissão ad hoc, para substituir o CSMJ no exercício das suas prerrogativas constitucionais, se deparou com firme oposição do Presidente Jorge Carlos Fonseca, precisamente porque tal expediente conduziria o país àquilo que foi tido na altura como um “apagão constitucional”.
Já no que diz respeito ao assédio de certos facilitadores, para que interviesse no processo judicial de extradição de Alex Saab, o Presidente Jorge Carlos Fonseca não podia ter sido mais assertivo:
“Num estado de direito democrático, como é o nosso, um Presidente da República, mas também um Primeiro-Ministro ou um Ministro da Justiça, não pode ter nenhum tipo de influência sobre processos pendentes na Justiça”.
Indo mais longe, e reconhecendo, com insuperável humildade democrática, os limites dos seus poderes, concretizava o então PR: “Eu não tenho nenhum meio de intervir. Não posso. Intervenho como? Faço um decreto presidencial? Não posso fazer nada. O que eu posso fazer é zero!”.
E, em jeito de remate final, Jorge Carlos Fonseca, em sublime lealdade à Constituição e à separação de poderes, mostrou-se perentório: “aquilo que o Tribunal Constitucional decidir, está decidido e cumpre-se. Acabou!”.
Por conseguinte, só por delírio se poderá conjeturar que o Presidente Jorge Carlos Fonseca embarcaria em leituras caudilhistas da Constituição da República, para, qual “homem forte”, enfrentar e afrontar uma decisão do Tribunal Constitucional.
E só ficaria bem ao seu sucessor na Presidência da República, José Maria Neves, também tudo fazer, mesmo a meio a pressões de toda a espécie, para preservar esse legado de escrupuloso respeito pela separação de poderes, um dos maiores ativos da Democracia Cabo-verdiana.
Aqui chegados, fica apenas uma questão: o que, afinal, poderá levar indivíduos aparentemente instruídos, que tanto se gabam de terem participado na feitura da Constituição de 1992, a alimentar essa presunçosa expectativa de que poderão levar um Presidente da República a intervir na Justiça a favor dos seus interesses ou de interesses que, sabe-se lá com que contrapartidas, eles tanto se esmeram em patrocinar?
Por estranho e desconcertante que possa parecer, a resposta foi dada no longínquo ano de 1871 por Eça de Queirós, ao caracterizar nas “Farpas” a provinciana figura do “influente”. Depois de o descrever como um arregimentador de votos, acrescenta Eça:
“As leis curvam-se, ou afastam-se, para ele passar. Os criminosos, por quem ele pede, são absolvidos: é o influente! Livra do recrutamento, pede baixas, solta presos, tudo se lhe consente: é o influente. Se algum dia, leitores das Farpas, encontrardes o influente, tirai-lhe o vosso chapéu (…)”.
Tiremos, pois, o nosso humilde chapéu aos nossos castiços influentes, que parecem ter já perdido a noção do ridículo e da confrangedora figura que têm estado a protagonizar, em pleno século XXI, assediando o Presidente da República para lhes fazer um jeitinho, intercedendo a seu favor em matérias que relevam da exclusiva competência do Parlamento e dos Tribunais.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1112 de 22 de Março de 2023.