Utilidade, coerência e previsibilidade

PorAntónio Ludgero Correia,13 nov 2023 7:55

“O príncipe (…) deve ser lento no crer e no agir, não se alarmar a si mesmo, e proceder por forma equilibrada, com prudência e humanidade, buscando evitar que a excessiva confiança o torne incauto, e a demasiada desconfiança o faça intolerável.” Nicolau Maquiavel

Os pequenos estados se têm feito valer demonstrando sua utilidade na arena internacional, mormente em tempos de crise. Em tempos de policrise então…

Cabo Verde, um estado que muito se tem esforçado por se mostrar útil quando em cima da mesa estão arranjos e combinações virados para a solução de conflitos, deve ter ciência e consciência de a sua utilidade derivar da coerência de seus posicionamentos, da racionalidade e da lógica das sua atitudes e da previsibilidade em relação a matérias como a resolução pacífica de conflitos, condenação das tentativas de solução por vias mais musculadas e, sobretudo, alinhamento incondicional com soluções humanísticas para debelar o sofrimento das comunidades humanas.

Todos os Governos e todos os Presidentes de República fizeram declarações inequívocas em relação ao posicionamento de Cabo Verde em tudo o que diga respeito à proteção dos civis abrangidos por conflitos; à solidariedade entre os povos; à solução negociada dos conflitos; enfim, estas ilhas adotaram o Humanismo como forma de ser e estar na comunidade das nações.

Como aceitar que agora este mesmo país condicione o seu voto a favor de um cessar fogo - para permitir o apoio a populações civis em perigo de sucumbir a bombardeamentos e à carestia geral de bens de primeira necessidade – à menção do responsável imediato pela crise? O pior é que se entrarmos nessa onda de recuar no tempo em busca de culpados e formos para lá do 7 de Outubro de 2023, poderemos chegar a um outro Outubro, desta feita do ano de 1967, e aí teríamos o caldo entornado.

Como pretender que o Presidente da República – Chefe de Estado, Comandante Supremo das Forças Armadas e representante da Nação no exterior – se conforme com “FACTOS CONSUMADOS – em matéria tão séria quanto esta? É que não se trata de uma votação de um assunto de somenos importância, nem de uma votação sobre questões rotineiras. Estamos perante o condicionamento de um voto em favor da paz e da solidariedade em função de quem tenha atirado a primeira pedra.

Imaginem o Presidente da República ter de esperar por uma reunião quinzenal para ser informado que relativizamos a nossa postura humanista e em prol da paz e da resolução pacífica dos conflitos! Que passamos a condicionar a postura humanista à invocação dos culpados imediatos pela crise! E se nesse intervalo (entre duas reuniões de informação) for solicitado a se pronunciar sobre o posicionamento de Cabo Verde em relação a um eventual cessar fogo para abertura de corredores humanitários faria o quê? Abster-se?!

Aqui alguém se posicionou como aquele indivíduo inescrupuloso que proclama que prefere pedir perdão a pedir permissão, ser voluntarioso – e agir sem permissão - e depois se EXPLICAR. No caso em pauta, preferiu-se ser voluntarioso – abstendo-se sem concertação prévia - e depois INFORMAR ao PR, provavelmente 15 dias depois. Dá a impressão de que se está perante uma manobra voltada para a desvalorização do papel do mais alto Magistrado da Nação, em matéria de política externa, devendo este se conformar com brindes quinzenais de factos consumados. Só lhe restaria chupar limão e…

Conheço um filósofo de araque que, perante pseudo dilemas e tendo alguma dificuldade em desmontar a marosca, opta, invariavelmente, por esta saída pela tangente: “pera aí, meu chapa, isso não pode ser assim; UMA COISA É UMA COISA E OUTRA COISA É OUTRA COISA”. Já o estou vendo filosofar à volta do condicionamento do voto favorável (nunca será demais repetir que a questão tinha a ver com um cessar fogo para facilitar o socorro de civis na Faixa de Gaza) à menção de quem fez o quê para se ter chegado à necessidade do socorro: UMA COISA É UMA COISA, OUTRA COISA É OUTRA COISA. E teria carradas de razão: ensanduichados entre o terrorismo do Hamas e o terrorismo de Estado de Israel, os civis da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e do Estado Israelita não poderiam - nunca, jamais e em tempo algum – esperar ver condicionado um voto em favor da solidariedade internacional, para com eles, à citação de quem atirou a primeira pedra.

Quem tem medo de Virgínia Woolf? Para um país em que a maioria da intelectualidade defende pactos de legislatura e, mesmo, pactos de regime, para algumas questões candentes, o que tem demais uma concertação prévia em algumas matérias de política externa, mormente em momentos de grave crise internacional, entre o Governo e o Presidente da República?

Tendo a questão se suscitado em plena reunião, com um aspeto que, eventualmente, não poderia ser antecipado (veja-se o histórico dos posicionamentos de Cabo Verde na ONU e noutros fora) a concertação seria difícil (estamos em tempos da supremacia das TIC, mas o país estava semi-bloqueado em consequência da agressão de que a Cabo Verde Telecom foi vítima). E isso seria uma excelente desculpa do senhor MNE pelo seu, pouco menos que descuidado, voluntarismo. Mas preferiu dizer que ao Presidente República basta servir frios relatos quinzenais de factos consumados, ainda que em relação a aspetos estruturantes do posicionamento de Cabo Verde na arena internacional. E foi uma pena…

Que neste nosso tempo não há almoços grátis, todo o mundo está careca de saber. Mas a grande e insofismável verdade é que se existe algum respeito por este pequeno país, pobre e insular, é porque sempre respeitou o critério de utilidade definido pelos maiores protagonistas da geopolítica. E ou nos mantemos úteis ou vamos à vida. Só que ser útil implica em posicionamentos coerentes (porque racionais e lógicos) e em previsibilidade (pelo menos nas matérias em que fazemos alarde do que cremos e fazemos por ser e parecer).

E como vai ser? Mancando do jeito em que mancamos neste dossier é não vai dar.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1145 de 8 de Novembro de 2023. 

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Autoria:António Ludgero Correia,13 nov 2023 7:55

Editado porAndre Amaral  em  4 ago 2024 23:53

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