“Eu não entendi esse posicionamento do governo de Cabo Verde sobre esta matéria. Cabo Verde é um país que defende a Carta das Nações Unidas, defende o direito internacional. O que estava em causa aqui era um cessar-fogo humanitário para abrir corredores de assistência humanitária a civis, de modo que não entendi o posicionamento de Cabo Verde”, afirmou, esta terça-feira, José Maria Neves em conferência de imprensa.
Cabo Verde, defendeu, “não se pode abster nestas condições, quando estão em causa direitos humanos, quando está em causa o cumprimento da Carta das Nações Unidas”.
O Presidente da República aproveitou igualmente para apelar para “que haja mais concertação interna, não haja timidez na busca de consensos, na busca de entendimentos, na busca de concertação aqui internamente, nesses momentos que são cruciais”.
“Cabo Verde é um país útil”, apontou José Maria Neves, acrescentando: “é um país que defende a Carta das Nações Unidas, defende os direitos humanos e é um país que é respeitado pela sua seriedade e coerência”.
“O país sai claramente prejudicado com este posicionamento nas Nações Unidas”, concluiu.
Já durante a tarde de terça-feira, em comunicado, o Presidente da República tinha dito estranhar o posicionamento assumido por Cabo Verde e referiu que tanto nas redes sociais quanto na comunicação social tem apelado à solução negociada deste conflito de décadas, apontando o reconhecimento de “dois Estados Independentes que se respeitam mutuamente e convivem pacificamente no concerto das nações” como a única solução possível que, aliás, “já desenhada em muitas das resoluções das Nações Unidas”.
No comunicado, o Presidente da República refere que resolução exige ainda o cumprimento do direito internacional humanitário de todas as partes (Israel e Hamas) e a garantia “do fornecimento contínuo, suficiente e desimpedido de suprimentos e serviços essenciais na Faixa de Gaza”. Também solicita a ´libertação imediata e incondicional´ de todos os civis detidos, bem como exige a sua segurança, bem-estar e tratamento humano e em conformidade com o direito internacional.”
Posicionamento do governo
O governo, através do ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Figueiredo Soares, disse ao Expresso das Ilhas que não comenta o posicionamento do Presidente da República e esclareceu a posição assumida pelo país nas Nações Unidas.
Por email, o ministro respondeu às questões do Expresso das Ilhas.
Qual a razão que levou a que Cabo Verde se abstivesse na votação sobre o cessar fogo no conflito entre Israel e a Palestina?
Em primeiro lugar, importa distinguir a posição de Cabo Verde no processo de discussão e votação de uma resolução sobre aspectos específicos do actual momento do conflito entre o Estado de Israel e o Hamas e a sua posição de fundo sobre o conflito israelo-palestiniano, numa perspectiva histórica e considerando uma solução duradoura para o mesmo.
Quanto à resolução em causa, convém esclarecer que a abstenção traduz o facto de que Cabo Verde, como os demais quarenta e quatro países que se abstiveram, não se satisfez com a sua versão votada, o que se deveu ao facto de que uma importante emenda apresentada pelo Canadá e que mencionava a clara responsabilidade daqueles que atacaram Israel no dia 7 de Outubro, o que constitui a causa próxima da guerra em curso e do risco de escalada a que se assiste. Oitenta e oito países de todos os continentes votaram a favor dessa emenda que, convém lembrar, foi apresentada por um país com desempenho inquestionável no domínio humanitário. Para Cabo Verde, tratava-se, como ainda se trata, de coerência com a posição de condenação inequívoca dos ataques do dia 7 de Outubro e coerência é assumida como virtude. Este posicionamento também é coerente com a posição de princípio de sempre de condenação de todo e qualquer acto de terrorismo, mormente daquele que atente contra a vida de civis inocentes. Foi este o contexto e esta a razão da decisão de apoiar a emenda apresentada pelo Canadá, que infelizmente não foi aprovada. Convém notar que esse processo de votação foi fracturante para várias regiões e blocos de países, mesmo para aqueles que dispõem de instrumentos definidores de política externa comum, o que devia convidar os actores políticos cabo-verdianos a dar prova de moderação acrescida, ao invés de ver neste caso uma arma de arremesso. O interesse nacional a isso obriga. Por outro lado, deve-se ter presente que grandes financiadores da acção humanitária, mesmo neste contexto, expressaram a sua preocupação para com a necessidade de haver um equilíbrio na proposta de resolução e são países que, tal como Cabo Verde, defendem o direito internacional humanitário. Para o Governo de Cabo Verde é importante que sejam preservados mecanismos de diálogo para a paz, que a ajuda humanitária neste contexto seja reforçada e sejam observados os princípios do direito internacional humanitário, no estrito respeito pela Carta das Nações Unidas e das Convenções de Genebra. Para esclarecimento da opinião pública, convém acrescentar que Cabo Verde tem agido para facilitar todas as acções humanitárias a favor do povo palestiniano, nomeadamente autorizando pedidos de sobrevoo e aterragem de aeronaves com este fim.
O Presidente da República disse esta terça-feira que estranha este posicionamento de Cabo Verde sobre a crise Israel-Palestina. Houve falta de diálogo com o Presidente da República?
Como sabe, o Governo não comenta as afirmações de Sua Excelência o Presidente da República. Devo dizer-lhe que, sempre que necessário, tem havido um diálogo franco com o Senhor Presidente da República, porque conhecemos a sensibilidade da política externa, cujas questões são tratadas pelo Governo com elevado sentido de Estado. Temos sempre presente o figurino constitucional na matéria e procuramos apresentar todos os dados, de modo que a opinião pública seja devidamente esclarecida. Aliás, as questões fundamentais da política externa são tratadas em reuniões quinzenais do Ministro dos Negócios Estrangeiros com Sua Excelência o Presidente da República. Parece-nos haver um bom entendimento institucional, e estamos sempre dispostos a informar e esclarecer o Senhor Presidente da República sobre os mais diversos temas da política internacional e da nossa política externa.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1144 de 1 de Novembro de 2023.