Com a ajuda externa a retrair-se, impõe-se uma nova atitude

PorA Direcção,21 fev 2025 7:55

Uma sondagem do jornal Financial Times publicada no início da semana revelou que 60% dos americanos concordaram com a medida de congelamento da ajuda internacional americana sob a direcção da USAID tomada por Donald Trump e implementada por Elon Musk. Só 12% dos sondados discordaram da ideia que montantes significativos dos fundos da ajuda são desperdiçados em corrupção e nos custos administrativos, em detrimento dos realmente necessitados.

A constatação de que a maioria da população considera que a ajuda tem sido mal utilizada já serve de travão a eventuais acções do partido democrata em procurar contrariar o bloqueio da ajuda externa. E no mundo já se percebe que o impacto vai ser enorme, considerando que a contribuição americana de 40 bilhões de dólares anuais através da USAID corresponde a 40% da ajuda internacional.

De facto, é de esperar o efeito desastroso que a diminuição drástica dos fluxos da ajuda terá tanto directamente sobre muitos necessitados de alimento e medicamentos como indirectamente sobre as organizações de apoio que sem o suporte americano dificilmente vão poder prosseguir com a sua actividade humanitária. Uma outra consequência da medida é que poderá levar à imitação em outros países, designadamente na Europa, se os avanços da direita radical se traduzirem numa maioria que questiona a efectividade dos programas actuais de redução da pobreza, de ajuda humanitária e de apoio ao desenvolvimento e à luta contra as alterações climáticas. Sem doações substantivas dos dois maiores contribuidores, EUA e UE, muitos países e populações poderão ficar em situação difícil, particularmente em casos de catástrofes naturais, guerras e perseguições políticas, étnicas ou religiosas.

Não é fácil para qualquer país encontrar a fórmula certa para o crescimento económico e para o desenvolvimento. O baixo número de casos bem-sucedidos deveria ter servido de aviso. Aliás, a história da humanidade, que aponta para a revolução industrial, há trezentos atrás, como o momento quando se tornou possível o aumento da produtividade que levou ao crescimento e à criação sustentada de riqueza, deixa entender precisamente isso. Não obstante, insistiu-se na ideia que a ajuda externa podia substituir lideranças competentes, políticas próprias baseadas nas especificidades dos países e a vontade engajada das populações para se atingir o desenvolvimento. Sem desprimor pelos benefícios reais conseguidos com a generosidade internacional, permitiu-se que muito dos recursos disponibilizados tenham sido mal aproveitados, alimentando burocracias internacionais e nacionais e levando agora à percepção em várias franjas da população dos países doadores que afinal a ajuda não chega a quem mais precisa.

Para vários países em desenvolvimento a ajuda externa passou a representar algo similar ao chamado “resource curse”, ou maldição dos recursos, em que países com petróleo, diamante e outros minérios ricos são mal governados, têm instituições frágeis, apresentam grandes desigualdades sociais e não conseguem libertar-se da extrema pobreza. Segundo um paper do Banco Mundial “Aid and Resource Curse”, a ajuda externa também pode ser um factor para os governos não fazerem reformas, para serem despesistas, para optarem por projectos financiáveis e não pelos prioritários e para propiciarem rendas a clientelas políticas. Um outro efeito negativo referido no texto é o facto da administração dos projectos com os seus altos salários “subtrair” quadros qualificados ao Estado, enfraquecendo as instituições.

Quando o país em desenvolvimento se deixa apanhar por alguma forma do “aid curse”, é interessante notar como desenvolve narrativas, adopta atitudes e faz opções que racionalizam a sua permanência por largas décadas como recipiente da ajuda internacional. Alimenta, por exemplo, a narrativa que os recursos do país são objecto de cobiça dos estrangeiros e com isso justifica a desconfiança no investimento estrangeiro e no turismo. Nutre o ressentimento em direcção aos maiores doadores, ao mesmo tempo que incentiva uma cultura de vitimização histórica. Opta por políticas de distribuição de rendimento que não põem suficiente ênfase na necessidade de crescimento e criação de riqueza, mas privilegiam a formação de clientelas para a conquista e manutenção do poder.

O resultado é que não se consegue potenciar os fluxos de capital e os fluxos turísticos que teimam em chegar ao país, nem mobilizar a iniciativa, a criatividade e o espírito empresarial a quem se incutiu a ideia que há ganho em ser vítima e que a vantagem maior é ficar bem colocado na “cadeia alimentar” com o Estado no topo para ter acessos, favores e oportunidade de rendimento. Um outro resultado é que o país, apanhado num círculo vicioso, não consegue desenvolver uma ideia de desenvolvimento que podia contrapor às agendas das organizações de ajuda internacional, ficando sob uma espécie de tutela. Submetendo-se, o país aprofunda ainda mais a atitude do Estado rentista em que a política partidária deriva cada vez mais para soluções populistas que se alimentam do ressentimento social e incidem sobre a redistribuição de rendimentos, sem correspondência com a realidade presente e sem muita preocupação com o futuro.

Em Cabo Verde, nos últimos dias é interessante notar como os problemas do país são geralmente percebidos. A propósito do acordo de pesca com a União Europeia, a atenção geral fixou-se numa afirmação que Cabo Verde estaria a vender o atum por 13 escudos o quilo. É uma das tais afirmações que ressoam com narrativas bem estabelecidas segundo as quais o país é rico em peixe e, se não parece ser, é porque está sendo roubado. Devia ser evidente que Cabo Verde não vende peixe. Vende quem investe em navios e equipamentos e contrata pescadores para captura e depois leva o pescado ao mercado. No quadro do acordo com a UE cobra-se uma licença para explorar um recurso que na sua trajetória migratória passa pela sua zona económica exclusiva. Não há como confundir preço de venda de um produto pelo custo de uma licença de exploração de um recurso. Só se insiste nisso para reforçar a narrativa que alimenta fantasias e vitimiza a população, mas não leva a acção consequente.

De facto, se há um recurso como o peixe, porque não explorá-lo. Se se quer evitar que seja delapidado ilegalmente por outros, por que não fiscalizar a ZEE do país. Em quase cinquenta anos de independência, não se criou capacidade de captura industrial de peixe, nem se explorou acordos de pesca com países vizinhos: eles sim, são ricos em peixe. Também não se optou pela aposta numa guarda costeira para fiscalização das águas do país. Ou seja, não se agiu numa perspectiva de desenvolvimento do sector das pescas e a cooperação com vários países no sector ao longo de todos esses anos serviu outros propósitos que não os que deviam ser óbvios. Mesmo quando a UE facultou a possibilidade de exportação de peixe enlatado com isenção de tarifas, não foi compreendido que o país tinha um tempo para adquirir capacidade de captura para beneficiar das isenções. As derrogações à regra das normas de origem têm um prazo, findo o qual há consequências para as conserveiras, para os trabalhadores e para as exportações do país. Tudo parece não importar enquanto numa mistura de deleite e indignação se traz à colação a questão da extinção dos tubarões fundamentalmente para dar mais vitalidade à narrativa que o país tem recursos e estão a ser roubados.

Há, porém, que perceber que o mundo está a mudar e rapidamente. Os Estados Unidos congelaram a ajuda internacional e se não a retomarem, nem a UE poderá compensar o buraco. Se a tendência para a revisão da política de ajuda continuar, menos recursos serão disponibilizados para os países em desenvolvimento. Se os países que se deixaram imobilizar, apanhados pelo “aid curse”, não saírem do torpor, as consequências poderão ser terríveis. Em Cabo Verde, com o mundo a transformar-se radicalmente não se pode ficar por mais tempo a deixar-se embalar por narrativas fantasiosas que impedem o desenvolvimento, vitimizam as populações e desresponsabilizam as instituições. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1212 de 19 de Fevereiro de 2025.

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Autoria:A Direcção,21 fev 2025 7:55

Editado porAndre Amaral  em  21 fev 2025 23:27

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