Mas, para além do debate político-partidário, há um aspeto que merece destaque e reflexão: a qualidade do processo eleitoral português, em particular a celeridade, segurança e fiabilidade no apuramento dos resultados. Foi um exemplo de profissionalismo, modernização, eficiência e avanço digital. E é precisamente esse ponto que nos remete, com naturalidade, para o nosso próprio sistema democrático.
A eleição portuguesa, mais do que um exercício político, foi também uma demonstração de que os sistemas eleitorais evoluem, adaptam-se e se aperfeiçoam ao longo do tempo. E, nesse sentido, oferece-nos pistas valiosas sobre onde estamos e como podemos continuar a melhorar.
Cabo Verde tem razões fundadas para se orgulhar da qualidade do seu processo eleitoral. A nossa democracia é reconhecida internacionalmente pela estabilidade, transparência e previsibilidade. O sistema de apuramento é rápido e respeitado, mesmo em circunstâncias de elevado equilíbrio. A título de exemplo, temos no nosso portfólio uma eleição presidencial decidida por apenas doze votos e, nas últimas eleições autárquicas, em São Lourenço dos Órgãos, uma decisão por um único voto, sem qualquer convulsão institucional ou contencioso social relevante. Esses episódios demonstram uma cultura democrática consolidada, uma maturidade cívica notável e instituições confiáveis. É de realçar ainda que, em Cabo Verde, o apuramento nacional e da diáspora ocorre de forma simultânea, dependendo apenas do encerramento das urnas, o que assegura uma leitura integral e célere dos resultados. Registe-se, a título de comparação, que nas eleições portuguesas, embora o apuramento nacional tenha sido particularmente rápido, o apuramento da votação na diáspora conheceu um período incompreensivelmente prolongado.
A atitude mais acertada diante dos avanços não é a complacência, mas a vigilância ativa e a disposição para a melhoria contínua. As democracias mais resilientes não são as que se acomodam nos seus êxitos, mas as que se mantêm permanentemente atentas ao que o mundo faz de melhor, adaptando-se, inovando e reformando. Por isso, é de saudar o facto de Cabo Verde estar, neste momento, a atravessar um processo de revisão profunda do seu Código Eleitoral, uma reforma de Estado que, como é sabido, pelas exigências legais de maioria qualificada de dois terços, está a ser conduzida diretamente no plenário da Assembleia Nacional. Trata-se de um momento politicamente denso e institucionalmente exigente, que deve ser encarado com espírito construtivo e com a responsabilidade que a matéria impõe. Esta é uma reforma que deve unir e não dividir, porque está em causa o bem mais sensível e precioso de uma democracia: a credibilidade do voto.
Para quem tem acompanhado os trabalhos, é notório que a proposta de revisão representa um avanço significativo na qualidade do nosso processo eleitoral. Introduz melhorias concretas em áreas sensíveis e responde a desafios que, ao longo do tempo, foram sendo identificados por cidadãos, partidos, observadores e órgãos de gestão eleitoral. A digitalização do processo é uma dessas melhorias. A previsão de uso obrigatório dos cadernos eleitorais digitais, a digitalização das atas de apuramento e a introdução do voto eletrónico não são apenas medidas de modernização tecnológica — são garantias adicionais de fiabilidade, rastreabilidade e segurança. Um processo mais digital é também um processo mais célere e menos vulnerável a erros humanos.
Outro ponto de destaque é a questão do voto antecipado, que há muito é alvo de críticas pela sua rigidez e alcance limitado. A proposta em discussão introduz maior flexibilidade, permitindo que mais cidadãos possam exercer o seu direito de voto mesmo fora do seu círculo eleitoral ou em situações excepcionais como deslocações, compromissos profissionais ou condições de saúde. Trata-se de um avanço que pode contribuir diretamente para a redução da abstenção, particularmente a abstenção involuntária, muito comum num país arquipelágico como o nosso. Aliás, essa dimensão específica da nossa realidade territorial e socioeconómica deve sempre ser levada em consideração quando discutimos participação eleitoral. Em Cabo Verde, muitas pessoas não votam não por desinteresse, mas porque estão temporariamente fora da ilha onde estão recenseadas, sem meios ou condições para regressar no dia da eleição. Por isso, medidas que ampliem as modalidades de voto são, antes de mais, medidas de inclusão e justiça eleitoral.
A revisão também traz à discussão um tema que até agora permanece blindado pela legislação: a divulgação de sondagens durante o período de campanha. Em Portugal, por exemplo, vimos como as sondagens de boca de urna permitiram projetar resultados ainda antes da contagem oficial, oferecendo uma perceção de transparência, previsibilidade e confiança ao público. Em Cabo Verde, a atual proibição de divulgação de sondagens durante a campanha é justificada por razões de proteção da liberdade de escolha e de neutralidade do processo, mas, não tenho dúvidas, é chegado o momento de ponderarmos se esta restrição, nos moldes em que existe, ainda se justifica à luz das novas dinâmicas da informação e das exigências de transparência pública.
Um tema incontornável no debate democrático contemporâneo é o da abstenção. A crescente taxa de abstenção em democracias consolidadas tem sido lida por diversos autores — como Bernard Manin, Pierre Rosanvallon e Colin Crouch — como um sintoma da crise de representatividade e de distanciamento entre o eleitorado e os sistemas de mediação política tradicionais. Em Cabo Verde, a abstenção também cresce, embora com características próprias. Há, sim, sinais de cansaço e desconfiança, mas também há uma dimensão estrutural e involuntária, que decorre das limitações da nossa realidade arquipelágica e da condição socioeconómica de muitos eleitores. A introdução do recenseamento automático, embora seja um avanço em termos de inclusão, traz consigo um novo desafio: poderá aumentar artificialmente a taxa de abstenção estatística, ao inscrever automaticamente eleitores que, na prática, não irão votar. Esse risco só poderá ser mitigado com campanhas de literacia democrática, educação cívica e comunicação institucional eficaz, que expliquem claramente os objetivos e implicações da medida.
Estamos, pois, num momento crucial. Um momento que exige visão, coragem política e sentido de responsabilidade nacional. A revisão do Código Eleitoral deve ser encarada como um processo de elevação democrática, não como uma disputa partidária. Com abertura, diálogo e compromisso, Cabo Verde pode posicionar-se entre os países com melhores práticas eleitorais do mundo, ganhando ainda mais celeridade no apuramento dos resultados, mais segurança no tratamento da informação e mais confiança do cidadão na integridade do processo.
Que esta revisão nos coloque, com convicção e ambição, no grupo da frente das democracias modernas. E que saibamos todos — Governo, oposição, instituições e sociedade civil — estar à altura dos nossos desígnios enquanto Nação.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1226 de 28 de Maio de 2025.