Fazer valer os 33 anos da Constituição

PorA Direcção,25 set 2025 10:34

Hoje, 25 de Setembro, completam-se 33 anos da Constituição. Trata-se de uma data primeira desta II República que ainda está longe de ser celebrada como devia pela comunidade política nacional. Na generalidade das democracias, o Dia da Constituição é comemorado e em vários países como Espanha, Noruega, Polónia e Lituânia é mesmo feriado nacional.

E compreende-se que assim seja, considerando que a entrada em vigor da Constituição democrática marca o início de um regime que garante o direito de consentimento dos cidadãos na escolha dos governantes, os direitos fundamentais dos indivíduos, a separação dos poderes, a subordinação do Estado às leis e a independência dos tribunais. Um dia, pois, para reviver a alegria de ter deixado para trás regimes autoritários e totalitários de má memória e também para reflectir como conservar os valores preciosos da liberdade e da democracia.

Neste ano de 2025, em que globalmente há a percepção de que as democracias estão em crise e sujeitas a uma erosão muito forte das suas instituições, devia ser o momento para valorizar os princípios e valores da Constituição e não os enfraquecer com idolatria política e ideologias iliberais. Também devia servir para exigir dos titulares dos órgãos de soberania que exercessem na plenitude das suas competências e respeitassem a separação dos poderes e que concomitantemente assumissem as respectivas responsabilidades. De evitar seria culparem-se uns aos outros, procurando beneficiar-se eleitoralmente da instabilidade gerada ou induzida por esse tipo de tacitismo político. O jogo democrático só garante estabilidade e eficácia governativa se as suas regras e procedimentos forem aceites e respeitados por todos.

Apelos para a diminuição da crispação política e para não se regredir para um ambiente de violência política só têm sentido se forem acompanhados do esforço sincero, a vários níveis, para o reforço do edifício democrático. Contrariamente ao que alguns podem sugerir, não é a existência de partidos e de confrontos político-partidários que gera violência política na sociedade. A história mostra que regimes sem partidos ou de partido único é que são criados violentamente, eliminando ou exilando, à partida, os tidos como inimigos, e que sobrevivem com violência arbitrária, intimidando toda a gente. Por isso que a melhor via para combater a violência, a arbitrariedade e a discricionariedade é a adopção do constitucionalismo democrático que obriga o Estado a respeitar a lei e os direitos dos cidadãos, que impõe a separação dos poderes para ninguém se arvorar em ditador e que institui tribunais independentes para administrar a justiça.

Em sentido contrário, se se quer criar um ambiente de instabilidade, de caos e de violência o caminho a seguir é o de fragilizar as instituições, não respeitando as regras do jogo democrático, de minar a confiança cultivando a desesperança com denúncias incessantes, às vezes estapafúrdias, e de promover o extremismo com a polarização fracturante. As omnipresentes redes sociais prestam-se extraordinariamente a este processo pela amplificação da opinião e do ego dos utilizadores, pela tribalização a que ficam sujeitos devido à manipulação algorítmica das plataformas e pela possibilidade de, em grupo e online, se poder envergonhar, discriminar e cancelar pessoas e grupos.

A crise do constitucionalismo democrático que se verifica actualmente com maior visibilidade e dramatismo nos Estados Unidos, mas com fortes sinais na generalidade das democracias tem na sua base essa fragilização institucional, o enfraquecimento do tecido social e a tendência narcisista do individualismo exacerbado. É verdade que várias situações complicadas contribuíram para o crescimento da desesperança em vários sectores da população nas últimas décadas. Mas é a acção deliberada de certas forças políticas que provoca essa crise ao canalizar as frustrações, o ressentimento, o medo e a desesperança contra o edifício democrático.

Nas democracias sempre existiram forças com preferências por vias não liberais, mas não constituíam ameaças pela sua dimensão e coesão interna. O quadro mudou completamente na actual conjuntura: os apelos de sectores antisistémicos favoráveis a regimes iliberais e a ditaduras de elites tornaram-se frequentes, e as tentativas de pôr em causa a separação de poderes com a concentração do poder no executivo, a subordinação do legislativo e a descredibilização do poder judicial ganharam expressão com o exemplo de Trump na América. Felizmente que do Brasil veio a grande demonstração da democracia a pôr os travões a quem intenta contra ela, julgando e condenando o ex-presidente Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado.

Em Cabo Verde também a democracia corre riscos. O facto de não se celebrar condignamente o aniversário da Constituição é sinal de como o país, os seus órgãos de soberania, as suas instituições, as suas escolas, universidades e a sua comunicação social, se retraem na promoção da cultura constitucional. O contraste é enorme quando comparado com o entusiasmo e os recursos públicos dedicados às celebrações da “luta de libertação” e dos feitos e das personalidades do regime de partido único e às manifestações de idolatria de Cabral.

Inevitavelmente, essa tensão permanente com os princípios e valores da Constituição acaba por ter um efeito erosivo na própria democracia. A relação entre os partidos e a possibilidade de chegar a acordos são prejudicadas por atritos que deviam ser desnecessários se houvesse total consenso sobre a natureza do regime político estabelecido pela Constituição. A persistência nas instituições e na cultura política do país de tensão visível entre os dois regimes não deixa de ser uma porta entreaberta para tentações políticas iliberais. O apego “tribal” a posicionamentos ideológicos do passado assim alimentado pode servir para, designadamente, promover políticas limitativas de direitos, normalizar posturas políticas de colisão com o princípio da separação dos poderes e desafiar a lei para provar impunidade.

Já não tão distante das eleições legislativas é evidente para qualquer observador o esforço vindo de vários quadrantes para projectar a imagem de Cabo Verde como um país à beira do caos. É um facto que o país lida com problemas sérios, em particular no domínio dos transportes inter-ilhas e que a situação da energia na capital tem trazido transtornos significativos para a população. Mas como o próprio presidente da república reconhece, Cabo Verde não enfrenta nenhuma crise político-institucional. Essa constatação devia ser o ponto de partida para todos se calibrarem nos pronunciamentos e na acção política. A sinceridade nos apelos para a diminuição da violência política pode ser avaliada por aí.

Os problemas do país são complexos e no mundo da actualidade estão-se a operar mudanças estruturais que trazem incertezas e novos desafios. A última coisa que Cabo Verde precisa é saltar no desconhecido dos resultados eleitorais sem uma ponderação serena e madura das opções políticas dos diferentes partidos. Para assegurar que o futuro de Cabo Verde seja construído na Liberdade e na Democracia é fundamental impedir eventuais derivas autocráticas que ponham em causa os 33 anos de constitucionalismo democrático. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1243 de 24 de Setembro de 2025.

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Autoria:A Direcção,25 set 2025 10:34

Editado porAndre Amaral  em  27 set 2025 16:19

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