Um relatório do Parlamento Britânico desvenda a influência exercida pelas notícias falsas nas eleições norte-americanas, no Brexit, ou no referendo sobre a independência da Catalunha. No total, a manipulação da opinião pública pelas redes sociais atingiu 48 países, em todos os continentes.
“Existem muitas ameaças potenciais à nossa democracia e aos nossos valores. Uma ameaça surge a partir do que foi cunhado ‘notícias falsas’, criadas com fins lucrativos ou outros, difundidos para a distorção deliberada de factos, por grupos com uma agenda particular, incluindo o desejo de afectar eleições políticas”. Começa assim o relatório Desinformation and “Fake News”, publicado em finais de Julho pelo Parlamento Britânico.
Aliás, o impacto do que foi sendo descoberto foi tão alarmante que mudou, inclusive, a investigação levada a cabo pelos deputados ingleses: o que tinha começado como uma tentativa de perceber o fenómeno das “notícias falsas”, transformou-se num documento de análise para perceber o próprio futuro da democracia. E uma das conclusões é que estamos diante de uma crise em relação ao uso e à manipulação dos nossos dados.
Mais, neste mundo digital em rápida mudança, as estruturas legais existentes não são as mais adequadas – são mesmo consideradas pelos autores do relatório como “reactivas e antiquadas” –, sendo necessárias acções urgentes, pelo governo e outras agências reguladoras, para construir a resiliência contra a desinformação. “A nossa democracia está em risco, e agora é a hora de agir, proteger os nossos valores e a integridade das nossas instituições democráticas”, lê-se no documento.
E o cenário inglês pode ser transposto para qualquer outro país do mundo: hoje, as pessoas estão cada vez mais a descobrir o que está a acontecer no país, nas suas comunidades locais, ou no resto do mundo, através de redes sociais, em vez de usarem as formas mais tradicionais de comunicação, como televisão, imprensa ou rádio.
As redes sociais influenciam enormemente as nossas vidas. Pesquisas do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo mostraram que não apenas grande número de pessoas acedem a notícias e informações, em todo o mundo, através do Facebook, em particular, mas também através de software de mensagens como o WhatsApp. Quando estes meios são usados para espalhar rumores e notícias falsas, “as consequências podem ser devastadoras”, refere o documento do Parlamento Britânico.
Tristan Harris, co-fundador e director executivo do Center for Humane Tecnology [http://humanetech.com/] - uma organização que procura realinhar a tecnologia com os melhores interesses de seus utilizadores - sublinha: “existem mais de 2 biliões de pessoas que usam o Facebook, o mesmo número de seguidores do cristianismo. Existem cerca de 1,8 biliões de utilizadores do YouTube, que é o número de seguidores do islamismo. As pessoas verificam os telefones cerca de 150 vezes por dia no mundo desenvolvido. Isso equivale a uma vez a cada 6,4 minutos. É uma mudança profunda na forma como acedemos a informações e notícias e ocorreu sem que fosse conscientemente apreendida pela maioria de nós”.
O inquérito que precedeu o relatório foi lançado em Janeiro de 2017. Foram convocadas inúmeras testemunhas, umas compareceram voluntariamente, outras não. No total, houve 20 sessões, onde foram ouvidas 61 testemunhas, a quem foram colocadas mais de 3.500 perguntas. Depois deste primeiro documento, um novo relatório, mais completo, será divulgado em Outubro deste ano.
Definição de “notícias falsas”
Apesar de não existir uma definição do termo, podemos catalogar as “notícias falsas” como sendo:
Como identificar “notícias falsas”
Existem normas para a verificação de fatos, estabelecidas através do International FactChecking Code – Código de Princípios da Rede [https://ifcncodeofprinciples.poynter.org/], assinado pela maioria dos principais verificadores de factos.
Estão a ser usados algoritmos para ajudar a enfrentar os desafios da desinformação. Kalina Bontcheva, concebeu e liderou o Pheme [https://www.pheme.eu/], projecto de pesquisa que tem por objectivo criar um sistema para verificar automaticamente os rumores on-line e assim permitir que jornalistas, governos e outras pessoas verifiquem a veracidade das histórias nas redes sociais.
A organização de verificação de factos, Full Fact [https://fullfact.org/], recebeu financiamento do Google para desenvolver uma ferramenta automática de verificação de factos para jornalistas.
Ainda segundo os parlamentares britânicos, a literacia digital das populações é fundamental. A maioria dos utilizadores, refere o relatório, não entende como é o conteúdo que lêem chegou lá, mas aceitam sem duvidar. Por exemplo, não sabem que o que vêem na Amazon, Netflix ou Facebook foi decidido por um algoritmo, como é que o algoritmo é desenvolvido, que o algoritmo é criado por uma pessoa e como os preconceitos do criador podem moldar aquilo que vemos.
Bots
Os Bots são programas de computador orientados por algoritmos projectados para executar tarefas on-line, como analisar e extrair dados. Alguns são criados para fins políticos, como postar conteúdo automaticamente, aumentando o número de seguidores, apoiando campanhas ou para disseminar informações erradas e desinformação. Samantha Bradshaw, do Oxford Internet Institute, da Universidade de Oxford, refere que “essas contas são actualmente muito mais difíceis de serem detectadas pelos pesquisadores. Hoje, os bots conseguem postar comentários e conversar com outros utilizadores”.
Quando foi interrogada, em Fevereiro de 2018, Monika Bickert, directora de política global de gestão do Facebook, não confirmou, nem desmentiu se havia cerca de 50.000 perfis na rede social, durante a eleição presidencial dos EUA de 2016, que na realidade eram bots.
Algoritmos
Tanto as empresas de rede social como os motores de busca usam algoritmos ou sequências de instruções, para personalizar notícias e outros conteúdos para os utilizadores. Os algoritmos seleccionam conteúdo baseado em factores como a actividade on-line anterior de um utilizador, conexões sociais e a sua localização. Samantha Bradshaw, do Oxford Internet Institute, contou aos parlamentares britânicos como é que o Facebook manipula as emoções das pessoas, mostrando diferentes tipos de histórias: “Se mostrarmos mais histórias negativas, as pessoas sentem-se mais negativos. E mostrarmos histórias positivas, as pessoas sentem-se mais positivos, mas como o modelo de negócio das empresas de tecnologia depende de receita proveniente da venda de anúncios e como as emoções negativas aparecem mais rapidamente do que as emoções positivas, as negativas acabam por ter a prioridade. Isso faz com que as histórias negativas se espalhem”.
As informações sobre os algoritmos que ditam o que os utilizadores vêem no seu feed de notícias não são disponibilizadas publicamente pelas empresas. Mas assim como as informações sobre as próprias empresas de tecnologia precisam de ser mais transparente, o mesmo acontece com as informações sobre os próprios algoritmos, conclui o relatório. Claire Wardle, directora executiva da First Draft News [https://firstdraftnews.org/], sublinha a importância de ir atrás da “caixa negra” do funcionamento dos algoritmos, só assim se conseguirá compreender as regras e motivações das empresas de tecnologia.
Influência russa em campanhas políticas
A velocidade do desenvolvimento tecnológico coincidiu com uma crise de confiança nas instituições e nos media no Ocidente. Em paralelo, apareceu o fenómeno global de países estrangeiros quererem influenciar a opinião pública através da desinformação. Um relatório que a Universidade de Oxford publicou em Julho deste ano exibiu e identificou provas de campanhas de manipulação organizadas nas redes sociais de 48 países durante o ano passado.
E as evidências mostraram o papel específico da Rússia no apoio a organizações que criaram e disseminaram desinformação e conteúdos falsos com o objectivo de minar a confiança do público e de desestabilizar os estados democráticos..
Segundo o relatório do Parlamento Britânico, durante as audiências foram dadas provas de uma campanha coordenada e de longa duração perpetrada pelo Governo russo para influenciar eleições e referendos no Reino Unido. Provas semelhantes de interferência estrangeira estão a ser investigadas pelo Congresso dos EUA em relação à eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos da América. Segundo o documento britânico, durante o período das eleições presidenciais norte-americanas, os russos publicaram mais de 3.000 anúncios no Facebook e no Instagram para promover 120 Páginas do Facebook numa campanha que atingiu 126 milhões de americanos. Adicional a isso, os russos usaram sofisticados técnicas de segmentação e criaram audiências personalizadas para amplificar vozes durante a campanha, em particular sobre temas sensíveis como relações raciais e imigração.
A desinformação é uma guerra não convencional, usando a tecnologia para interromper, ampliar e distorcer. De acordo com uma pesquisa da 89up [http://www.89up.org/], a Russia Today [canal de televisão russo com emissão em inglês focado em transmissões globais sob a perspectiva russa] e a Sputnik [agência internacional de notícias lançada pelo governo russo, controlada e operada pela empresa estatal Rossiya Segodnya] publicaram 261 artigos de imprensa contra a União Europeia durante a campanha sobre o referendo britânico, entre 1 de Janeiro de 2016 e 23 de Junho de 2016. Este estudo mostrou também também que a RT e o Sputnik tinham mais alcance no Twitter com este conteúdo anti-UE do que o Vote Leave e o Leave EU, organizações lideradas pelos conservadores ingleses que fizeram campanha pela saída da União Europeia. Um projecto de pesquisa conjunto das Universidades de Swansea e Berkeley, identificou 156.252 contas russas com escreveram twitts sobre o #Brexit e que eles postaram mais de 45.000 mensagens pró-Brexit nas últimas 48 horas da campanha.
Como disse aos parlamentares britânicos Bill Browder, CEO e co-fundador da Hermitage Capital Management, companhia especializada no mercado russo com sede em Londres, “o objectivo da desinformação e propaganda russa é plantar uma semente de dúvida na mente de todos. E eles conseguiram criar essa confusão”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 873 de 22 de Agosto de 2018.