Palmatórias, réguas, palmadas... Crianças continuam a apanhar nas escolas

PorChissana Magalhães,16 dez 2018 8:57

​Os castigos físicos estão banidos do sistema educativo, há já vários anos, por não se reconhecer nessa prática quaisquer efeitos benéficos. Oficialmente é assim. Na prática, e na contramão das recomendações emanadas pelo Ministério da Educação (ME), o costume ainda mantem-se bem vivo nas escolas públicas do país. À Inspecção Geral da Educação são raras as denúncias que chegam. Porém, o Expresso das Ilhas apurou dezenas de casos em várias escolas.

No seu livro “A Ilha Fantástica”, Germano Almeida descreve a certa altura aquele que foi o ambiente escolar de várias gerações de cabo-verdianos: numa passagem do texto, uma professora severa castiga com violentas pancadas de palmatória os alunos que se comportam mal e aqueles que não respondem correctamente à lição dada. Por vezes, faz mesmo com que seja um aluno a bater nos colegas, levando a que este ganhe a antipatia dos companheiros.

Para quem foi criança no século XX, pelo menos até o início da década de 90, este era um cenário bastante comum e até socialmente aceite. A reforma do sistema educativo veio reforçar entre as políticas ministeriais o imperativo de banir das escolas as agressões físicas aplicadas pelos professores como forma de castigo às crianças. Porém, denúncias ao ME, casos reportados pela comunicação social e relatos do quotidiano deixam perceber que, em pleno século XXI e num tempo em que informações sobre os direitos da criança e a necessidade destas serem protegidas contra abusos e violências são amplamente difundidas, esta prática mantem-se em uso.

Primeiramente, foi pela voz de um grupo de crianças que, de modo espontâneo e natural, nos chegou a informação de que em várias escolas da cidade da Praia açoites com as mãos, palmatória, régua e até cintos acontecem com frequência.

“ Na minha escola a professora bateu num menino até que a régua se partiu”, conta A., 9 anos.

“A nossa professora tirou o meu colega que estava a se portar mal da sala de aulas, levou-o para uma outra sala – uma salinha pequena usada como armário – e fechou a porta para não o ouvirmos a gritar. Mas ouvimo-la a bater e ele a gritar. Ela usou um pau”, relata S., 10 anos.

“Na minha escola começa no jardim infantil. As professoras pegam nos meninos, baixam-lhe as calças e dão palmadas no rabo, à frente de toda a gente. Também dão castigos como ficar de joelhos com os braços abertos durante muito tempo”, narra por sua vez L, 9 anos.

“Não quero mais ir à escola. Não gosto da escola. Quero estudar em casa”, diz-nos a pequena B. de 8 anos. E quando lhe perguntamos o porquê… “O meu professor bate-nos com régua se não respondermos correctamente. Ele nunca me bateu mas bateu em outros alunos”.

Os relatos vieram em catadupa e por iniciativa espontânea do grupo de cerca de uma dúzia de crianças – estudantes nas escolas Miraflores, Amor de Deus, Lavadouro, SOS, Capelinha, Eugénio Tavares, Escola EBI da Terra Branca e 13 de Janeiro – numa conversa informal que tinha outro tema como foco. Confrontados com estas histórias saímos pelas escolas da cidade (algumas dessas e outras) e perguntamos. E as respostas de outros estudantes também indicam que prática dos açoites como castigo a mau comportamento e “estímulo” ao estudo, a par de agressões mais impulsivas (como palmadas, puxões de orelha, tabefes e beliscões) continuam em uso nas escolas do Ensino Básico Integrado. E o que também apuramos é que a maioria dos alunos nem bem tem a noção do seu direito a estudar num ambiente livre de violência e por isso nem chegam a relatar os incidentes aos pais.

Pais e encarregados de educação têm opiniões diferentes quanto a esta problemática.

Para Marisa, mãe de um menino de 9 anos, não há dúvidas: “100% contra”. E justifica:

“Não penso que seja a resposta correcta. Eu própria passei por isso na minha infância e não guardo boas memórias. Na 1ª classe, frequentava uma escola onde bater era regra. O professor batia-me por errar as respostas. Até ao dia em que, a brincar de professora com o meu irmão mais novo, imitei aquilo que acontecia na escola. Ele errou a resposta e eu bati-lhe. Então o meu pai, que assistiu à cena, perguntou porque o fizera e eu ‘expliquei-lhe’ que era assim na escola. Ou seja, quem erra leva pancada. Os meus pais mudaram-me de escola”.

Já adulta, Marisa testemunhou uma mãe de um colega do seu filho a solicitar à professora destes que, quando o filho não se comportasse bem, o castigasse fisicamente. Tomou imediatamente atitude contrária: informou à escola que não autorizava que batessem no seu filho. Com este sempre optou pelo diálogo e diz que inclusive ensinou-lhe que não devia aceitar nunca que alguém lhe batesse e nem tocasse em certas partes do seu corpo.

O diálogo, a comunicação, é também a opção indicada por Eloisa, mãe de um rapaz de 10 anos.

“Sou contra o uso da violência na escola, até para evitar que se torne um recurso pedagógico. Penso que isso é um reflexo do que se passa na nossa sociedade onde, em certos aspectos, em vez de evoluir estamos a ter um retrocesso. E as pessoas estão indiferentes. Pais têm estado a falhar em relação ao seu papel na escola. Não podem estar ausentes ou indiferentes. Têm que saber lidar com este tipo de situação. Não estou a dizer entrar em confronto com o professor mas sim dialogar. Essa é a alternativa também para o professor: em vez de bater, dialogar, comunicar”.

Opinião diferente tem Valter, pai de uma menina de 6 anos. Favorável aos castigos físicos na escola, admite ter recomendado à professora que, em caso de mau comportamento da filha, a batesse.

“Se não for assim não respeitam os professores, os adultos. Em casa, se fazer asneiras, também apanha”. Este pai entende ainda que “nos últimos tempos estão a inventar coisas demais. Qualquer dia a criança é que manda em casa, em tudo. Eu apanhei dos meus pais e por isso ganhei respeito. Não me fez mal nenhum”.

Entretanto, as escolas por nós contactadas negam a existência desse tipo de ocorrências.

Oclízia Paiva Tavares, directora titular da Miraflores – escola semi-pública, reconhecida há poucos meses com o Selo de Qualidade em Educação por concurso do ME – começa por dizer que desconhece que isso se passe na escola.

“Estamos em pleno século XXI. Não faz sentido esse tipo de prática, não é aqui permitida”. E acaba por dizer que não acredita que tal se passe na Miraflores, justificando as denúncias como algum tipo de difamação dirigida à escola.

“Nós estamos sempre em diálogo com os coordenadores dos diferentes ciclos e nunca houve relato de nada. Também não temos tido queixas de pais”.

Também o gestor da escola Lavadouro, Eloi Borges, diz não ter conhecimento destas ocorrências e nem tem registo de queixas por parte de pais e encarregados de educação. E acrescenta que ao início de cada ano lectivo os professores recebem do ME cadernos com orientações pedagógicas, entre elas as referentes à proibição dos castigos físicos.

A Direcção Nacional de Educação, na pessoa de Eleonora Monteiro enquanto directora substituta, também estranha estas denúncias quando não lhe têm chegado queixas formais.

“Os castigos corporais são, desde há décadas, expressamente proibidos nas escolas. A nós não nos chegou nenhuma queixa, estranha-nos muito que tenha chegado aos jornalistas e nós não termos recebido queixas. Os professores sabem que é uma prática banida do sistema. Os pais e encarregados de educação também sabem. E sabem que há uma legislação, que há processos que decorrem quando essa prática acontece”, manifesta a mesma. E acrescenta:

“Com a evolução que já registamos a nível da Educação, com as conquistas obtidas, se está a acontecer este retrocesso para nós é uma questão a se estudar e tomar as medidas adequadas. Inclusive fazer um trabalho a nível individual com esses docentes”.

Casos não reportados

No corrente ano lectivo, iniciado em Setembro, a Inspecção Geral da Educação (IGE) já registou três queixas: duas cujas ocorrências foram na cidade da Praia e uma na ilha Brava. No ano lectivo 2017/2018 também foram três os casos e, feita a investigação, as penas foram aplicadas conforme a sua gravidade: num caso ficou-se pela censura escrita e nos restantes foi aplicada uma multa e os professores que praticaram a agressão suspensos da actividade de docência. Entre as penas passíveis de serem aplicadas também se encontram a aposentação compulsória e a demissão.

“Há realmente situações que não são comunicadas à Inspecção. Há casos que não são reportados, às vezes pelos próprios gestores, por displicência ou outros motivos”. Quem o diz é Julião Barros, o inspector-geral da Educação que também traça um perfil do professor agressor como, na maior parte das vezes, muito jovem e inexperiente ou já com muitos anos de serviço e, em muitos casos, com algum tipo de transtorno psicológico [exaustão, depressão, ansiedade e Síndrome de Bournout são, no mundo, transtornos psicológicos geralmente registados entre os professores].

Casos não reportados de açoites por vezes devem-se, como já antes referimos, à falta de noção das crianças de que a prática é proibida. Sem a informação de que os castigos físicos e agressões por parte dos professores estão interditos muitos dos estudantes toleram-nos. A situação só é reportada aos pais, ou estes só a encaram como um problema, quando há evidências físicas graves da agressão. É nesses casos extremos que costuma acontecer a denúncia pública e até queixas na polícia.

Em 2014 deu que falar o caso de uma professora da escola Capelinha, na Achadinha, que agrediu um aluno apertando-lhe a boca e deixando visíveis marcas de unhas cravadas na pele. O motivo alegado para a agressão terá sido uma falta de respeito cometida pelo aluno. Registada em vídeo da reportagem da televisão pública ficou a reacção da professora, quando confrontada, assumindo a agressão e justificando que o aluno a mereceu: “Eu não me arrependi. Porque ele mereceu, ele me desrespeitou. Eu só lhe puxei a boca”, minimizou ao contar a sua versão dos factos. E acabando por reconhecer que “não é o que se deve fazer” acrescentou no entanto que, “às vezes os alunos “tiram o professor do sério”. E a peça noticiosa acabava com a docente enfatizando não ter medo de um processo judicial.

Outra notícia da TCV, esta de 2015, trazia o caso de uma criança de 8 anos, estudante da escola do Bairro Craveiro Lopes, submetida a várias intervenções cirúrgicas em consequência de uma agressão às mãos da professora durante a “explicação” (apoio ao estudo). A docente terá recorrido a um pau com pregos que causou ferimentos no ombro do menino. O aluno, depois de agredido, não terá contado nada em casa até ao dia em que começou a sentir fortes dores no ombro atingido. Também nesse caso, segundo o relato da mãe, a professora terá admitido a agressão porém, minimizando-a.

Em ambos os casos as professoras foram alvo de um processo interno do ME. Porém, ao Expresso das Ilhas o IGE apenas conseguiu informar a pena aplicada a este último caso, em que a professora foi suspensa.


Prática banida das escolas. E em casa?

Se a prática de castigos físicos na escola é quase que consensualmente reprovada já com os açoites domésticos, aplicados pelos pais, o mesmo não se passa. Em ambos os cenários há consequências para a criança, e estas podem estender-se à vida adulta.

Em várias culturas pelo mundo, até ao século XIX ou mesmo inícios do séc. XX, aplicar castigos físicos à criança que se comportava mal ou tinha dificuldades de aprendizagem era a atitude normal a tomar, quer na escola quer em casa.Também na sociedade cabo-verdiana, e conforme o diz a psicopedagoga Teresa Araújo, esta prática está enraizada e, na família como na escola, a criança é sujeita à violência e à humilhação que ela incute.

“Bater não ensina, não educa. É uma ameaça sobre a criança e o adolescente e traz consequências nefastas: ensina a ter medo, a ser submisso, diminui a sua autonomia e capacidade de tomar decisões, afecta a sua auto-estima, interfere nos processos de aprendizagem limitando o desenvolvimento da inteligência”, enumera esta técnica do Ministério da Educação, alinhando com especialistas a nível mundial que reiteram que, ao contrário do que afirmam muitos adultos que dizem ter apanhado dos pais e professores em criança, castigos físicos não têm valor educativo. A noção de que os seus bons valores e princípios, e comportamento adequado em sociedade resultam desses castigos é uma distorção da realidade ou uma generalização a partir de experiência pessoais.

Eloisa, a mãe que citamos acima, também tem a percepção de que o castigo “muitas vezes acontece em reposta a um alegado comportamento inadequado da criança. Só que este comportamento por vezes indica que a criança pode ter dificuldades de aprendizagem, de concentração, e responder a isso com castigo físico pode aprofundar o problema ou criar traumas”.

Teresa Araújo corrobora essa ideia e acrescenta que a criança que apanha tem frequentemente um sentimento de tristeza e abandono. “A sua visão do mundo é afectada; passa a ver o mundo como um lugar hostil. Castigos também despertam um sentimento de raiva e rancor que os leva a pensar que a violência é a forma de resolver situações e ter a sua vontade atendida”.

Segundo lembra a reportagem do jornal brasileiro Folha de São Paulo, vários são os países que até hoje já criaram uma lei de protecção das crianças aos castigos físicos e tratamento degradante, a chamada Lei da Palmada. São cerca de 53 os países com esta lei especial (em 2009 eram apenas 24) a proibir punições físicas a crianças e adolescentes. Dos países membros da CPLP – conforme o mapa criado pela ONG suéca Save The Children – apenas Brasil, Cabo Verde e Portugal fazem parte da lista. No entanto, esta lista refere-se ao âmbito geral e principalmente ao círculo familiar e alude a castigos violentos e degradantes sobre menores. Quando o âmbito se restringe às escolas o número de países onde por lei se proíbem os castigos físicos sobe para 131 nações.

No passado dia 30 de Novembro a França, país onde 85% dos pais batem nos filhos e onde no ano passado morreu uma criança de 5 anos castigada pelos pais por fazer xixi na cama, o parlamento aprovou uma nova lei que vem reforçar – especialmente para os pais – a proibição de usar de violência física e psicológica sobre os filhos. A proposta de lei, que contém apenas dois artigos, não avança sensações porque tem um propósito meramente pedagógico e incumbe o governo de promover uma “política de sensibilização, apoio, acompanhamento e de formação à parentalidade, destinada aos futuros pais”. O online luso Público diz que a proposta foi apoiada por partidos da esquerda enquanto da direita e extrema-direita vieram as reacções contra, justificadas pelo entendimento de que a lei interfere na intimidade das relações entre pais e filhos. Argumento muito semelhante aos usados nos tempos em que, pelo mundo, se começava a propor leis contra a VBG.

Os 53 países que adoptaram a Lei da Palmada fizeram-na estribados nos resultados de estudos levados a cabo pela comunidade científica mundial, que durante muitos anos analisou a ligação entre castigos físicos e problemas mentais em adultos. De acordo com estes estudos, citados pela reportagem do Folha, os castigos físicos podem aparentar ter eficácia instantânea, porque verifica-se que a criança interrompe o comportamento que o motivou. Mas, a longo prazo, não só não resultam como “abrem feridas na psique e prejudicam o desenvolvimento”.

Uma pesquisa da Sociedade Internacional para Prevenção ao Abuso e à Negligência Infantil traz desfechos semelhantes: a investigação concluiu que adultos agredidos na infância corriam maior risco de fazer uso abusivo de álcool e outras drogas. O risco de tentar o suicídio era também mais acentuado. Ou seja, a relação não é directa mas o risco é considerável.

Também o Journal of Family Psychology, revista académica norte-americana, reporta que a partir de dados de mais de 160 mil pessoas seguidas durante 50 anos concluiu-se que açoites “não apenas não levam a bons comportamentos como estão relacionados a uma ampla gama de indicadores negativos, entre eles, prejuízos à saúde mental”.

“Há que se reconhecer que a proibição dos castigos físicos é uma medida justa”, afirma Teresa Araújo após listar também as consequências nefastas da prática. A psicopedagoga reconhece a necessidade de as crianças serem confrontadas com as suas más acções e sofrerem consequências por elas. Contudo, alerta que os castigos a aplicar não devem ser físicos nem degradantes e devem sim ter relação com o mau acto cometido pela criança.

“Por exemplo, se a criança vai ser castigada por ter sujado a sala de aulas o castigo deve ser limpar a sala. Assim os colegas compreendem que o erro é a acção cometida e evita-se que o aluno seja rotulado e identificado como difícil e mal comportado já que isso pode criar um estigma que o leva a desistir de portar-se de outra forma”.

A especialista diz ainda que uma boa forma de evitar os castigos na escola é estabelecerem-se desde cedo as regras da turma, lembrá-las sempre que necessário, criar rotinas, dialogar e estabelecer castigos alternativos.

No caso de se chegar ao extremo de ter que expulsar um aluno da sala por mau comportamento, a norma nas escolas públicas do país é que a criança ou adolescente seja encaminhado à direcção onde o gestor e um coordenador conversam com o mesmo. Os pais recebem a informação e, em alguns casos, são chamados à escola. Já no caso dos professores, a directora nacional de Educação (interina) reforça que os professores recebem formações constantemente e nessas a questão dos castigos físicos e sua proibição são abordadas. 


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 889 de 12 de Dezembro de 2018.

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Autoria:Chissana Magalhães,16 dez 2018 8:57

Editado porChissana Magalhães  em  5 set 2019 23:22

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