No concelho de Santa Cruz, interior da ilha de Santiago, antes de se chegar à localidade de Renque Purga, indo da Cidade da Praia, há uma placa que indica o caminho para Porto Madeira. Apesar do nome, esta não é uma zona piscatória e, embora tendo uma estrada de acesso íngreme, o percurso pode ser feito tranquilamente. Não se encontra nenhuma viatura a subir ou a descer. Os moradores dizem que os carros aparecem por lá de quando em vez.
Porto Madeira está situado lá no alto, com uma vista privilegiada para a ilha do Maio, vizinha mais próxima de Santiago. Assim como se pode constatar durante o caminho, há pouca gente na rua, apenas algumas crianças e alguns curiosos na janela, despertados pelo barulho do carro. As portas, essas, quase todas estão fechadas.
Na procura de quem queira falar um pouco, o Expresso das Ilhas encontrou António Ferreira Tavares, um senhor de 69 anos, mais conhecido por “Pidete”, um ex-emigrante na Europa. Reformado, agora vive a velhice na localidade onde, diz, seu “bico está enterrado”. Para Pidete, a situação de Porto Madeira “não é nada boa”, após três anos de seca.
Seca afecta quase 200 mil pessoas em Cabo Verde
A seca afecta 37% da população cabo-verdiana (196 mil pessoas), divulgou esta quinta-feira fonte do Ministério da Agricultura e Ambiente, adiantando que, além da mitigação dos efeitos, as autoridades estão a trabalhar na resiliência das famílias.
O caso de Porto Madeira
“Eu só estou aqui porque tenho a segurança e as condições necessárias para cá estar. Tenho condições económicas favoráveis para estar em Porto Madeira. Não há sítio melhor, para mim”, narra o ancião para quem, apesar das dificuldades, e como frisa, não há, para ele, lugar melhor para viver.
Pidete conta que “infelizmente” as outras pessoas de Porto Madeira, mais precisamente os mais jovens, não têm a segurança financeira que ele possui. Por isso, saem daquela localidade à procura de “um pão para comer”.
“Para ter trabalho é preciso sair de Porto Madeira para depois vir comer aqui. Se o dinheiro que acharem fora der para voltar, as pessoas voltam, mas por vezes ir e vir todos os dias é complicado porque é preciso pagar o transporte, que não está barato”, lamenta.
Os jovens, segundo relata Pidete, já não se sentem motivados para continuarem a viver em Porto Madeira, uma situação que, disse, se agravou com estes três anos em que não houve um bom ano agrícola. Esta fonte avança ainda que os pais estão a tentar, como podem, sustentar os seus jovens filhos, dando-lhes de comer. Entretanto, relata, “não há dinheiro para um sapato, ou uma camisola, quando for necessário”.
“Para ter uma camisola ou um sapato, o jovem precisa sair daqui, ir aos centros urbanos ver se aparece algum trabalho, porque aqui não há ninguém a construir casas, o que seria uma alternativa de trabalho. Não há uma horta, não há nada”, complementa.
Os idosos de Porto Madeira, conforme conta Pidete, vivem da pensão do Estado, o que, no seu ponto de vista, ajuda, mas é “insuficiente”. Por esse motivo, este sexagenário diz que muitos têm de sobreviver à base de arroz, que “muitas vezes” é “sem pinto” ou “sem peixe”. A carne, frisa, “nem sempre é uma opção”.
“Um quilo de carne custa 500$, então não há como comprar sempre. Por vezes as pessoas daqui passam meses sem comer carne. A menos que a pessoa crie galinhas e cabras e estas adoeçam, então têm de ser mortas”, informa, realçando que por aquelas bandas matar e comer um animal saudável é “impensável”.
Para reforçar o seu relato sobre a situação de Porto Madeira, Pidete menciona que tem nove filhos e que nenhum vive naquela localidade, pelos motivos mencionados anteriormente. Este diz que todos os seus filhos conseguiram estudar o suficiente para conseguirem um trabalho que lhes garanta sustento nos centros urbanos.
E como nem todos os jovens têm a mesma sorte nos estudos, este ancião de Porto Madeira entende que aqueles que não conseguirem estudar precisam de apoio, para, pelo menos, criarem animais.
“Assim, se não tiver trabalho terão gado para cuidar. Mas, a seca não ajuda. Se chover, com as suas vacas hão-de ter rendimento e com isso dava para viver aqui”, lamenta.
Mais da metade da população, de acordo com este morador, já não vive em Porto Madeira. Pidete avança ainda que, actualmente, há poucos jovens naquela localidade. A maioria, informou, encontra-se na cidade da Praia.
“Regressam às vezes porque também o dinheiro que lá ganham não dá para voltar todos os finais de semana”, diz.
Jovem do interior na cidade da Praia
Bruno da Silva tem 22 anos e é natural da Montanha, Órgãos. Por viver no campo, desde cedo aprendeu a trabalhar a terra. Semear, mondar e colher fez parte da sua infância. Bruno conta que estudou até o 12º ano. Mas, há um ano deixou a vida académica. A necessidade fez com que procurasse trabalho.
“Os meus pais não tinham como pagar uma Universidade, por isso trabalhava com a agricultura. Mas, no ano passado, devido à seca tive de vir para a cidade da Praia procurar emprego porque sem chuva não há trabalho e sem trabalho não há dinheiro”, justifica.
Hoje, o jovem, de poucas palavras, trabalha como pedreiro e aluga um quarto onde vive sozinho e cheio de saudades de casa e da terra que o viu nascer e crescer. Visitar a família em Montanha? Só mesmo quando consegue uma folga para não trabalhar aos domingos.
“Só me encontro aqui na Praia porque não houve azágua, caso contrário, preferia estar na Montanha, onde tudo é tranquilo e fresco”, compadece.
Os dados
Os dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) sobre a evolução da população residente em Cabo Verde por Ilha, de 1900 a 2010 têm mostrado uma flutuação da população residente entre as ilhas. Por exemplo, o estudo mostra que em 2000 a população do meio urbano era de 234.368 habitantes, e em 2010, passou a ser 303.979 habitantes.
A cidade da Praia, que em 2000 tinha 106.348 habitantes, passou a ter 131.719 residentes em 2010, a maioria da ilha de Santiago que, no total, contabilizou 274.044 moradores.
A ilha de Santo Antão tinha em 2000, 47.170 habitantes, mas, em 2010 o número de residentes diminuiu para 43.915 habitantes. Por sua vez, a ilha de São Vicente, que em 2000 tinha 67.163 moradores, viu este número aumentar em 2010 para 76.140 residentes.
O mesmo estudo mostra que a ilha de São Nicolau perdeu quase mil habitantes no mesmo período do estudo, passando de 13.661 para 12.817 moradores. Já no Sal, houve um crescimento de 14.816 para 25.779.
No mesmo período, a população residente em Boa Vista também aumentou de 4.209 para 9.162. No Maio não houve um crescimento significativo uma vez que em 2000 possuía 6.754 habitantes e em 2010 esse número aumentou para 6.952.
No Fogo o número de residentes diminuiu de 37.421, para 37071 e na Brava de 6.804, para 5.995.
A migração na música
A deslocação por causa da seca é uma realidade cabo-verdiana que já foi cantada em várias músicas nacionais, desde há muitos anos. Por exemplo, em 1983, o lendário grupo Bulimundo cantou “Migração”.
“Desespero kamba na mi, kantu n txiga Libron, nha kasa porta fitxado, mi li na Praia mal moradu”.
“Nhâ Comadri”, cantada na voz de Nancy Vieira, e “Mora na Fora” do grupo Tradison di Terra são outras músicas que falam da deslocação, tendo a seca como o principal factor.
Por exemplo, a música “Mora na Fora”, vencedora na categoria de Melhor Batuku na edição 2013 dos Cabo Verde Music Awards (CVMA), recorda as palavras de Bruno da Silva que diz estar a viver na cidade da Praia por causa da seca, que não lhe deu outra alternativa.
“Ai si txuba txobe, min ta bai mora na fora”.
Pensar a seca
Em 2018, estudos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) mostraram como a escassez de água e as secas recorrentes podem gerar fluxos migratórios. O stress hídrico e a redução da produção agrícola têm como consequência a migração em diversos países, já que as populações saem em busca de melhores condições de vida.
Cabo Verde passa por uma das piores secas dos últimos 40 anos. Situação só comparável às secas de 1947 e 1977, em que a situação foi muito complicada. Em 1947, inclusive, houve fome e mortandade.
Recentemente, o ministro da Agricultura e Ambiente de Cabo Verde, Gilberto Silva, afirmou que o Governo está a trabalhar em todos os cenários possíveis em relação à vinda ou não da chuva.
“Num cenário em que as coisas não corram bem, o governo entrará com medidas adicionais de mitigação. Nós temos trabalhado muito fortemente nas medidas de resiliência e que têm a ver essencialmente com a mobilização da água”, acrescentou.
Gilberto Silva disse ainda que se vai ter que arrancar com os trabalhos de dessalinização da água salobra, assim como da água do mar para ser utilizada na agricultura.
Trata-se, conforme frisou, de todo um trabalho que vai demorar mais tempo, mas que vai trazer “maior preparação” ao país para enfrentar anos de seca, dentro de um contexto de mudanças climáticas.
Na mesma altura, o Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, por seu lado, apelou para a antecipação dos problemas, que poderão acontecer, com “serenidade, lucidez e inteligência”.
“Nós não devemos tomar medidas apenas quando acontecem coisas deste género, devemos é antecipar os problemas que podem acontecer com serenidade, mas com lucidez e inteligência”, defendeu Jorge Carlos Fonseca, em declarações aos jornalistas na cidade da Praia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 942 de 18 de Dezembro de 2019.