Aprovada em 2015 e regulamentada no ano seguinte, a Lei do Grogue revolucionou o sector. Cinco anos depois, a produção de aguardente de cana sacarina está num novo patamar, com o preço em alta e um produto final reconhecidamente melhor. Os produtores já não encaram o grogue como um produto de segunda, mas como uma bebida destilada de grande potencial.
De Porto Novo a Ribeira da Cruz, o caminho faz-se em menos de uma hora. A localidade é um caso paradigmático do impacto que a Lei do Grogue teve na economia agrícola de Santo Antão. Produtores que tinham abandonado a cultura de cana, porque desvalorizada e pouco rentável, voltaram a plantar e a área de cultivo cresce a cada ano.
Com um microclima que contrasta com o ar quente e seco do Planalto Norte, Ribeira da Cruz beneficia da sua localização geográfica, defronte ao mar. É o sítio ideal para o cultivo de cana roxa, uma especificidade local, distinta da predominante espécie BC14, encontrada no resto da ilha.
Wanderley Rocha tem ali as suas raízes. Menino, lembra-se de ver a avó produzir grogue pelo método artesanal. Adulto, agora na casa dos 40, Wanderley resgatou a tradição familiar e deu um passo em frente.
“Cinco anos antes do surgimento da lei, já Ribeira da Cruz estava a tentar produzir um produto de qualidade. Estávamos a precisar da lei para proteger o produto. Temos mais segurança, mais mercado, valorização”, sustenta.
Com quatro unidades de produção, este agricultor tem investido anualmente para cumprir os requisitos legais – a própria lei previa um período de transição. O piso é cimentado, a cana chega e é processada em espaço próprio, com uma canalização a encaminhar a calda para as cubas de fermentação em inox, instaladas em sala própria. Daí, o produto segue directamente para o alambique. A próxima aquisição será o sistema de engarrafamento.
“A nova lei foi muito importante, pela economia, pela saúde, pelo emprego. É claro que quando estás a implementar uma lei é sempre complicado, há sempre alguma resistência, mas para nós a lei já estava atrasada, então foi recebida com carinho”, assegura.
Dados da Inspecção Geral de Actividades Económicas colocam Santo Antão como a segunda ilha com maior número de unidades industriais de produção de grogue (UIPG). No total, estão legalizadas 130 instalações, o que corresponde a 45% do total nacional (286 UIPG). A ilha das montanhas só é ultrapassada por Santiago, que tem 140 unidades produtivas licenciadas (49%). No entanto, Santo Antão lidera, a larga distância o quadro de grogue declarado. Em 2019, terão sido produzidos 1,5 milhões de litros de aguardente de cana (299 mil litros em Santiago).
No caso concreto de Porto Novo, o vereador do Desenvolvimento Económico, Valter Silva, destaca a importância da indústria de grogue para o município.
“É uma indústria transformadora bastante pujante”, estabelece.
“De há uns tempos para cá, há um investimento grande dos produtores na modernização das suas infra-estruturas e há uma preocupação muito grande naquilo que é o cumprimento dos pressupostos da lei, em termos de produção, manuseio, embalagem e comercialização. Isso, de facto, começa a criar uma grande cadeia de valor e dados que temos indicam que, nos últimos anos, quase toda a produção que é feita é comercializada no mesmo ano”, releva.
Satisfeito, apesar de reconhecer que persistem alguns casos de incumprimento, o autarca acredita que a lei “é boa” e o seu papel é reconhecido.
“As pessoas estavam reticentes sobre se, de facto, ia funcionar, se a fiscalização ia dar resposta. Havia o mito de que fiscalizariam Santo Antão e não fiscalizariam Santiago, mas as medidas de fiscalização, as sanções, começaram primeiro em Santiago, onde têm sido feitas as grandes apreensões”, lembra.
Investimento
A época de produção de grogue decorre anualmente de 1 de Janeiro a 31 de Maio. Terminado esse período, os alambiques são selados até ao ano seguinte.
É nessa janela temporal que, na Garça, trabalha Zezito Fortes. Há doze anos dedicado à produção de aguardente de cana, a história de Zezito confunde-se com tantas outras. Nasceu numa família de produtores e diz que a actividade lhe corre “no sangue”. Defende a criação de uma associação de produtores, “porque ninguém consegue andar sozinho”.
“Por exemplo, se vou pedir dez unidades de inox [cubas], faço a encomenda sozinho, mas se me juntar com outros colegas, fazemos a importação e fica-nos mais barato. Assim como o engarrafamento, para exportar para o exterior. Ou, então, criar uma cooperativa”, exemplifica.
Desde a entrada em vigor da nova lei, Zezito Fortes já investiu cerca de 500 mil escudos. O valor mais do que duplicará nos próximos meses, quando substituir as pipas de madeiras por outras em aço inoxidável.
“De 2015 até esta data mudou muito. O mercado estava saturado, existia uma campanha muito forte contra a aguardente, mas desde a aprovação da lei os produtores consciencializaram-se e hoje estamos a sentir melhorias”, diz, optimista.
Uma das consequências já verificadas é ao nível do preço que, nalguns casos, chegou a duplicar, dos 250 para os 500 escudos por litro, facto que deixa o ministro da Indústria, Comércio e Energia, Alexandre Monteiro, bastante satisfeito.
“É isso que nós queremos, porque, por um lado, os produtores ficam recompensados, há uma valorização e o mercado paga o valor, por outro, temos a qualidade do produto para o efeito da protecção da saúde”, sintetiza.
O grogue é uma das marcas de Cabo Verde. A base da norma legal é, precisamente, a definição do próprio produto: aguardente de cana. Não há espaço para qualquer outro aditivo ou ingrediente.
“A lei, primeiro, disciplina a produção, ao definir os requisitos. Tínhamos uma realidade e havia a necessidade de ser dar uma adaptação ou reenquadramento das unidades já existentes. Por isso, definimos um plano com vários níveis de requisitos”, comenta Alexandre Monteiro.
Fiscalização
Em 2020, as vistorias às unidades de produção arrancaram a 9 de Janeiro. A cada ano, aumenta o nível de exigência. Os produtores devem cumprir um calendário de melhorias das suas instalações, preenchendo um número crescente de critérios.
Para o Inspector-geral das Actividades Económicas, Elisângelo Monteiro, o balanço é positivo. O responsável pela entidade fiscalizadora considera que o sector tem potencial, agora que foram ultrapassados os obstáculos que existiam.
“O sector tem potencial para continuar a crescer, mas da forma como estava a operar estava a criar constrangimentos a nível da saúde, segurança, trabalho. Passado estes cinco anos, de facto, estamos a notar melhorias substanciais a nível da produção, da qualidade, dos investimentos e tudo misso influencia na disponibilidade do grogue no mercado”, concretiza.
São cada vez mais raras as imagens de currais cheios de fumo e lixo, sem qualquer condição de higiene. As fiscalizações sistemáticas levadas a cabo pela IGAE, que privilegia uma actuação pedagógica, estão a produzir frutos.
“Estávamos com um ciclo de produção sem interrupção, o que significava uma oferta massiva e é evidente que isto acaba por trazer a questão da desvalorização e, em consequência disso, o consumo abusivo e os seus impactos na saúde”, recorda.
Apesar das melhorias unanimemente reconhecidas, o caminho é longo e as apreensões prosseguem. Na semana passada, na Praia, foram apreendidos perto de mil litros de aguardente de produção ilegal. A norte, foi apreendida uma determina quantidade de grogue de Santo Antão, transportado em recipientes inadequados.
“Parece que a IGAE é uma instituição muito repressiva mas é ao contrário. A IGAE é uma instituição bastante preventiva, muito dialogante, que primeiro ouve, entende as dificuldades. É evidente que, neste processo, temos que estar cientes que as obrigações legais devem ser verificadas e é esta perspectiva de diálogo, de elucidação que levamos aos produtores”, declara o Inspector-geral.
Turismo e internacionalização
Uma das próximas etapas no caminho de valorização do grogue deverá passar pela maior introdução do produto nos circuitos turísticos. Foi a pensar nisso que Edson Silva investiu no Grogue Beth D’Kinha. Ao redor de um velho trapiche, Edson recuperou uma antiga unidade familiar, abrindo portas aos visitantes. Logo à entrada, numa pequena loja, comercializa aguardente de cana e outros derivados, como ponche e mel. No primeiro andar, uma esplanada oferece, além de uma oportunidade de degustação, uma extraordinária vista para o vale do Paul.
“Tínhamos um motor a funcionar, então os turistas vinham, entravam para experimentar e perguntavam por souvenirs, foi aí que tive a ideia de começar a engarrafar grogue, ponche e outros derivados e assim foi surgindo este negócio”, relembra.
“O que produzimos genuinamente em Cabo Verde é o grogue, esta é a nossa marca. O turista já tem essa informação e o que tens que fazer é dar o toque de qualidade. Os turistas vêm cá curiosos, explicamos o processo e a última etapa é a prova”, explica.
Em Ribeira da Cruz, Wanderley Rocha também está habituado a receber turistas. Em casa, o produtor preparou um terraço onde proporciona uma viagem pelos sabores de Santo Antão. Do inhame à mandioca, da papaia à fruta pinha. Sabores da terra acompanhados, claro está, pela aromática aguardente de cana.
Wanderley é generoso na ambição. Acredita que, com as apostas certas, o grogue poderá chegar a “qualquer paragem”, competindo no exigente mercado de bebidas destiladas.
“O nosso grogue pode ser vendido lá fora, para além do nosso mercado nacional. Reunimos um grupo de empresários na ideia de dar valor ao produto, fazer com que chegue a outros mercados. É possível vender e divulgar o grogue como um produto de luxo, um produto rentável, consumido em casa, mas não como um produto que vai destruir famílias mas sim ajudar ao crescimento económico do país”, conclui.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 952 de 25 de Fevereiro de 2020.