Para Herménio Fernandes, no caso de Santiago, a recuperação económica será alcançada via aposta nos sectores onde a ilha possui forte potencial endógene. “Mas é preciso trabalhar este conceito para que possamos pôr as pessoas a viajar cá dentro”, propõe o edil micaelense.
O que é que a pandemia do novo coronavírus já mudou na ilha de Santiago?
A pandemia do novo coronavírus já mudou praticamente tudo, porque trata-se de um acontecimento que ninguém esperava. Foi um choque para todos nós. Trouxe mudanças profundas que vão exigir de todos nós, em particular dos poderes públicos uma nova atitude para encararmos o novo normal e, a partir daí, traçar novas estratégias para garantir a recuperação económica e também para criar condições para que tenhamos uma boa inclusão social. Na parte sanitária, as autoridades têm feito um bom combate, na medida em que se constata que a nível da ilha de Santiago temos neste momento uma estagnação da propagação do vírus. Quanto à recuperação económica é preciso uma forte aposta nos sectores endógenos, pois a ilha de Santiago tem um potencial endógene muito forte, nomeadamente na agricultura, na agroindústria, nas pescas, no turismo, mas também no sector de serviços. Aqui eu vejo uma grande oportunidade para recomeçarmos, mas com foco em duas coisas, designadamente na eficiência e na qualidade. De facto, a forma como temos praticado a agricultura até hoje, eu diria até ontem, é preciso fazer um upgrade, porque é um sector onde poderíamos estar a produzir muito mais, a empregar muito mais pessoas e a pagar melhores salários.
Qual já é o que será o impacto da pandemia da covid-19 na economia da ilha de Santiago no seu todo?
O impacto já se sente, porque há milhares de perdas de postos de trabalho e perdas de rendimento; há muitas pequenas, mas também médias e grandes empresas que também estão a se ressentir desta crise, porque deixaram de vender serviços e passaram a facturar menos. Isto reflecte-se nos rendimentos dessas empresas, bem como no emprego e obviamente a nível fiscal. Esta crise vai também ter impacto na redução dos investimentos. Sabemos que há muitos investimentos que paralisaram completamente e a retoma vai ser lenta. Face a todo este cenário que estamos a viver neste momento, a pobreza vai aumentar aqui na ilha. Para fazer face a esta situação é importante agora uma intervenção forte do Estado, porque a retoma não vai ser de uma forma rápida. Tendo em conta as orientações sanitárias alguns sectores vão retomar, mas há outros em que a retoma vai demorar. Eu presumo que se não houver uma forte intervenção do Estado sobretudo no que diz respeito aos investimentos públicos com foco no desenvolvimento local, vamos ter aumento da pobreza. Aqui eu ressaltava a grande novidade que nós recebemos há dias na reunião que tivemos com o primeiro-ministro que é a criação do Fundo de Descentralização que vai permitir com que os municípios tenham acesso a financiamentos a condições favoráveis para que possam fazer investimentos importantes que vão impactar directamente na economia local com impacto muito positivo na construção de cidades, vilas e aldeias saudáveis. Com a criação dessas condições, estou em crer que Santiago vai posicionar-se como um grande destino turístico, porque a contribuição deste sector para a formação do PIB a nível de Santiago é ainda bastante diminuta. Santiago tem nove municípios, mas apenas a Praia consegue neste momento captar a maior parte daquilo que é procura turística na ilha. Nos outros concelhos temos algumas actividades aqui e acolá, mas a grande dinâmica à volta do turismo na ilha de Santiago tem o epicentro na Cidade da Praia. Entretanto, Santiago é uma ilha com enormes potencialidades para o desenvolvimento do turismo com uma oferta diversificada para vários segmentos. Mas o que é preciso fazer na ilha de Santiago é a qualificação do destino. Por exemplo, nós não podemos ter turismo aqui em Santiago com a situação que temos de abates feitos na via pública. Aqui o Fundo de Descentralização vai permitir que os novos municípios tenham acesso a verbas importantes para a construção de matadouros, de postos de venda como mercadinhos e mercados para incluir economicamente os vendedores ambulantes e criar condições para terem espaços apropriados para a realização das suas actividades. Haverá também a necessidade de outros investimentos importantes que têm a ver com a requalificação dos bairros, dos sítios com interesse histórico e cultural. Enfim, um conjunto de oportunidades que os municípios vão ter e que terão impacto na melhoria do destino.
Pensava que a paralisação do turismo a nível mundial veio-nos mostrar que a aposta num único cavalo, neste caso o turismo, iria ser repensado. Estou a ver, pelas suas avaliações, que o turismo continua a ser um pilar muito importante no desenvolvimento económico de Santiago.
É o seguinte: o turismo vai continuar a ser um sector muito importante em qualquer país e em qualquer economia. Estamos a falar de uma indústria que é a indústria da felicidade. Portanto, todos os cidadãos, seja aqui, na China, na Europa ou na América, querem fazer férias, querem ter o lazer. Ou seja, o turismo vai continuar a nível global a ser um dos sectores em que haverá necessidade de continuar a investir e recuperar, tendo em conta os empregos e a riqueza que ela gera à escala global com impacto em vários sectores conexos ao turismo. Quando falamos do turismo estamos a falar da agricultura, dos transportes, da cultura…enfim, de um conjunto de negócios que gravitam à volta do turismo. Portanto, o turismo nunca vai desaparecer, pelo contrário. O que nós temos que fazer é qualificar o destino, preparar as condições sanitárias para que possamos competir à escala global. Porque o que me interpela e interpela a todas as autoridades e poderes é o que temos feito até agora em matéria de oferta turística sobretudo na ilha de Santiago não pode continuar. E porquê? Porque o turista quer conforto, quer qualidade, quer um ambiente saudável, quer infraestruturas condizentes, ele interessa-se por vilas e cidades com espaço verdes, onde se respira qualidade de vida; está interessado em sistemas de transportes viáveis e seguros. Portanto, é um conjunto de coisas que temos que repensar e traçar novas estratégias para nos tornarmos mais competitivos, porque toda a estratégia para garantir o novo recomeço, ou seja, o novo normal, exige qualificação. Eu falo do turismo, mas podia falar também da agricultura, das pescas, etc.
Esta sua forte aposta no turismo leva em conta uma eventual mudança de hábitos dos turistas dos países emissores para um turismo mais endógene, portanto no próprio país?
O turismo vai continuar a existir, mas a inovação que deverá ser introduzida, neste caso na ilha de Santiago, é a aposta num turismo muito mais endógene, aproveitando aquilo que são as potencialidades endógenes da ilha a que já me referi, nomeadamente a cultura, a natureza, os desportos náuticos, etc. Portanto temos várias valências; no nosso caso em Santiago Norte todas as actividades que são desenvolvidas no meio rural são potenciais produtos para uma oferta muito mais rica e mais diversificada. Mas como a retoma no sector turístico poderá levar ainda algum tempo, sobretudo os turistas que mais procuram Cabo Verde, proponho no nosso caso a aposta no turismo interno. Por exemplo, a nível de Santiago, nós temos a Cidade da Praia com mais de 51 por cento da população da ilha, temos um interior bastante lindo com várias ofertas, temos unidades de turismo rural que estão a funcionar. Mas é preciso trabalhar este conceito para que, de facto, possamos pôr as pessoas a viajar cá dentro. Eu vejo aqui uma oportunidade de começarmos a retoma. Porque, se conseguirmos fazer isso internamente, com qualidade, acredito que vamos pôr as pessoas a nível da ilha a viajar, a passarem finais de semana em outros concelhos. Isto vai impactar a nível do negócio local. Como já disse, quando se fala do turismo estamos a falar também de outras áreas – é a agricultura, é a agropecuária, são os transportes. Enfim, são vários os serviços que, através do setor do turismo, conseguem gerar riqueza. É o que nós temos que fazer.
Numa entrevista a este jornal o senhor afirmou que o desenvolvimento de São Miguel assenta-se em três pilares: a agricultura, a pesca e o turismo. Com a nova situação as prioridades vão mudar, ou mantêm-se?
Nós já estamos a trabalhar num plano para a dinamização da economia local após covid-19 no qual o sector da agricultura lidera claramente este processo. Mas a par da agricultura, temos as pescas e o turismo, porque estas três áreas empregam pessoas e geram rendimento e oportunidade de emprego para mão-de-obra qualificada. Aqui, no caso concreto de São Miguel, nós estamos a começar pela agricultura, porque temos como meta a massificação da rega gota-a-gota, a implementação de sistemas de bombagem de água para rega com recurso às energias renováveis e temos um projecto que já iniciou que é de agricultura familiar que tem duas vertentes: uma, para garantir rendimento para as famílias e outra para garantir segurança alimentar. Este projecto vai ser implementado, numa primeira fase, em cinco localidades. Faz parte do projecto de inclusão económica e financeira das famílias de São Miguel, porque nós entendemos que a retoma quem de ser via produção, porque o Estado não terá a todo o tempo condições financeiras para continuar a subsidiar as famílias em casa sem fazer nada. Estamos a criar programas para que as pessoas possam produzir na agricultura, na pecuária e na agroindústria, sectores onde há grandes potencialidades em São Miguel. No sector da agricultura a grande inovação tem de ser na mobilização de água dessanalizada. Estou seguro de que os financiamentos anunciados pelo governo de Cabo Verde vão avançar e aí vamos ter oportunidade de massificar a rega gota-a-gota; temos mais empresários a investir na agricultura aqui no município; estão a investir também na transformação. Portanto, há boas perspectivas a nível do município para o crescimento e desenvolvimento deste sector.
Num contexto em que as ferramentas tradicionais do governo são limitadas, que investimentos e que estratégias propõe para o combate à quebra económica na ilha de Santiago?
Eu acho que nesta fase é priorizar os investimentos públicos. Não tenho dúvidas quanto a isso. Investimentos públicos, mas com foco no desenvolvimento local. Ou seja, investir lá onde haja capacidade para reproduzir. Não podemos investir apenas por investir, porque senão não passam de despesas públicas e ponto final. Nós somos a favor de investimentos públicos estruturantes e que impactam directamente no crescimento económico e no desenvolvimento desta região. Santiago tem tudo para dar certo. Em termos de potencialidades é uma ilha riquíssima em todas as áreas, mas é preciso aquilo que eu disse inicialmente: temos que fazer as coisas de forma diferente; temos que qualificar as nossas cidades, vilas e aldeias; temos que ter serviços de recolha de resíduos altamente eficientes; temos que organizar o comércio local, as vendas, as feiras e os mercados; temos que acabar definitivamente com abates de animais na via pública; temos que investir em tecnologias na agricultura para qualificar este sector e torná-lo muito mais competitivo e capaz de gerar mais riqueza e mais emprego. Eu proponho estas medidas, porque acredito que é por esta via que vamos pôr as pessoas a produzir, porque se não for feito desta forma, vamos ter mais pobreza e isto será um problema ainda maior para os poderes públicos. Por isso sou da opinião que o caminho é este, é via produção que nós vamos reentrar na senda da prosperidade, fazer este país crescer novamente e garantir uma distribuição justa da riqueza criada.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 965 de 27 de Maio de 2020.