Eunice Silva Ministra das Infra-Estruturas, Ordenamento do Território e Habitação: A construção clandestina é um problema nacional e multiplica-se todos os dias

PorJorge Montezinho,14 jun 2020 8:25

O direito à habitação condigna está salvaguardado na Declaração Universal dos Direitos do Homem e suportado na Constituição de Cabo Verde, no número um, do artigo 72º, “todos os cidadãos têm o direito a uma habitação condigna”. Os Poderes Públicos têm a incumbência de “promover a criação de condições económicas, jurídicas, institucionais e infra-estruturais, inseridas no quadro de uma política do ordenamento do território e do urbanismo, de maneira a garantir a prossecução deste objectivo”. No entanto, Cabo Verde, apesar dos inúmeros projectos desenvolvidos pelos sucessivos Governos, ainda enfrenta sérios problemas relacionados com a habitação e urbanismo, sobretudo o crescimento progressivo do défice habitacional, que ameaça atingir proporções quase insustentáveis. O êxodo da população para outras ilhas à procura de melhores condições de vida e empregabilidade tem provocado o crescimento espontâneo de assentamentos informais e bairros clandestinos nos grandes centros urbanos cuja infra-estruturação é um imperativo. É neste quadro que se insere o Perfil do Sector da Habitação. O Perfil foi concebido após visitas a todas as ilhas durante o qual foram verificadas as fragilidades dos bairros de lata, com a proliferação de barracas, assentamentos informais e habitações sem casas de banho e com tectos em risco de desabamento. O Governo garante que não pretende afastar as pessoas do seu bairro, nem das suas casas, mas sim proporcionar condições adequadas de habitabilidade. Para perceber o presente e o futuro das questões relacionadas com a habitação, o Expresso das Ilhas falou com Eunice Silva, ministra da tutela.

Com a economia em pausa, com o aumento da migração interna, podemos vir a ter um aumento dos problemas habitacionais que já existem em Cabo Verde?

Acredito que sim, na medida em que o Sal e a Boa Vista, que acolhiam a maior parte das migrações internas estão na situação em que estão, com o turismo paralisado. As pessoas que vão para lá são de outras ilhas, principalmente de Santiago, e estão a regressar às origens. Como estamos a falar de famílias, é natural que queiram ter o seu espaço, daí ser natural assistirmos a essa situação.

Na sua análise, o que levou a este aumento acelerado do défice habitacional do país nos últimos anos?

Não é tanto nos últimos anos, estamos a falar de décadas. O que levou a esta situação é que abrimos o país ao turismo. Ilhas que eram praticamente virgens e com potencial turístico, passaram a ter investimentos. Era necessária mão-de-obra para a construção civil e eram necessários trabalhadores para os hotéis. Do lado público, ou seja, do lado do Estado, não houve a preocupação de acautelar a questão do alojamento dessa vaga de trabalhadores migrantes, de modo que foram surgindo as primeiras barracas, tanto no Sal como na Boa Vista, sem serem contidas a tempo. Quando as autoridades acordaram, já era tarde. Houve alguma iniciativa das câmaras para tentar, pelo menos, alinhar essas construções clandestinas para que no futuro fossem reintegradas ou requalificadas, dentro do possível. E isso aconteceu com a Boa Esperança [na Boa Vista], mas já não aconteceu no Sal. Na Boa Vista, temos uma situação que permitiu uma requalificação do bairro.

Mas não todo.

Houve uma parte que não ficou requalificada, porque é mesmo para demolir. Voltando à questão, foi isso que aconteceu, não houve políticas públicas adequadas e atempadas, que pudessem suster e controlar essa situação.

No fundo, considera que faltou uma política nacional para a habitação?

Sim. Não houve uma ofensiva para tratar a habitação no momento em que íamos entrar na grande oportunidade que o turismo nos oferecia, para o sector da economia, do desenvolvimento, em geral e da habitação social, em particular. E agora estamos confrontados com situações de bairros enormes, construídos à base de lata e madeira, que estamos a tentar corrigir.

O que falhou no controlo da construção clandestina?

Há um défice de fiscalização enorme em Cabo Verde, em todas as áreas, mas sobretudo na área do urbanismo. As câmaras municipais não têm tido, infelizmente, capacidade de ter um serviço de fiscalização que, efectivamente, esteja no terreno em vigilância permanente e com actuação, na hora. Foi isso que falhou do lado das autarquias. Do lado do governo, não houve uma parceria com os municípios, para trabalharem, conjuntamente, nessa matéria. Portanto, o governo não se preocupou, não foi ao terreno. As Câmaras estavam lá, mas sozinhas, e não conseguiram pôr cobro à situação. Neste momento, o Governo está a fazer o inverso; a estabelecer parcerias com as Câmaras Municipais, porque não se trata de um problema local, simplesmente. Trata-se de um problema nacional e que tem tendência a multiplicar-se, todos os dias.

E é um problema que não parece fácil de resolver porque, quando uma Câmara Municipal resolve agir, como aconteceu, há pouco, na Praia, surge uma onda de críticas junto da sociedade.

Exactamente. E corremos o risco de ter um novo Bairro da Boa Esperança, no Alto da Glória. Não queremos isso e não devemos permitir que isso aconteça. Devemos é condenar a situação e encontrar outras formas de resolver o problema de habitação dessas pessoas, que precisam de casas, que não tem que ser através da construção clandestina.

O aproveitamento político dessas situações dificulta a acção das autoridades?

Certamente! E esses aproveitamentos acontecem, principalmente, quando nos aproximamos dos períodos eleitorais.

Cabo Verde tem um défice habitacional de 8,7 por cento, estamos a falar de quase 40 mil pessoas, é um valor preocupante?

Qualquer número de défice é sempre preocupante, principalmente quando chega a essa taxa. Quase 40 mil pessoas, são quase 12 mil famílias que não têm casa para morar, por isso, é uma preocupação enorme. Neste momento, felizmente, já conhecemos as nossas necessidades. Isso deve-se a uma estratégia que o actual Governo adoptou, desde a primeira hora. Como não havia estudos acabados sobre a situação, que nos permitisse vislumbrar o caminho a seguir, nessa matéria – e não falo do caminho deste ou daquele governo, mas do caminho a seguir pelo Estado, assente numa estratégia nacional – apenas projectos soltos, como o Casa para Todos, chegámos à conclusão que tínhamos de preparar os instrumentos orientadores para podermos trabalhar a longo prazo, e foi o que fizemos. Desde 2017 estamos empenhados em estudar o sector. Traçamos, assim, o perfil [Perfil do Sector de Habitação em Cabo Verde – 2019] e, nesse documento, pode ser encontrado tudo, em termos de necessidades, para o sector. Desde o défice propriamente dito (que deve ser entendido por o número de habitações em falta), até ao défice qualitativo, que chamamos de inadequação das habitações.

É a primeira vez que se faz este tipo de perfil?

Que seja do meu conhecimento, nunca Cabo Verde teve antes, um estudo diagnóstico sobre o perfil da habitação em Cabo Verde. Já tivemos, no passado, perfis localizados de uma cidade, por exemplo, mas nunca houve um estudo diagnóstico de cariz nacional do sector da habitação. A partir deste documento, a que me referi, foi possível traçar um conjunto de directivas políticas e definir os programas para a implementação do Plano Nacional de Habitação (PLANAH). Tanto o Perfil do Sector da Habitação (PSH), como a Política Nacional da Habitação (PNH), foram já publicados no BO, assim como a Política Nacional do Ordenamento do Território e Urbanismo (PNOTU). Convém realçar, aqui, que não podemos tratar a habitação de forma isolada do ordenamento do território. Temos de conceber e planificar os espaços; temos de geri-los. Portanto, ao mesmo tempo que tratamos a política da habitação, tratamos a política de ordenamento do território. Já estão ambas definidas e o que dizem? Apontam para um caminho num horizonte de longo prazo. Deste modo, os Governos vindouros conhecerão, com elementos científicos, a situação concreta do País, nesse sector. E, em querendo, é só ajustar as políticas às circunstâncias outras, designadamente financeiras e de oportunidade. O caminho, porém, está, tecnicamente, traçado. Para o efeito, está, igualmente, em fase de finalização o PLANAH, cuja aprovação não aconteceu, ainda, por causa da situação da pandemia que o país viveu neste últimos tempos. Contamos tê-lo publicado muito brevemente. E devo dizer que não temos trabalhado, isoladamente; há concertação estratégica internacional, com a ONU-Habitat, no quadro das orientações estabelecidas pela Agenda 2030.

No que consiste o plano?

Como já temos o diagnóstico, ilha a ilha, concelho a concelho, o plano vem, então, definir os programas, a serem desenvolvidos, o modelo de financiamento e diretrizes para os Planos Municipais de Habitação. O PLANAH propõe um conjunto de programas, designadamente: Um que tem a ver com a legislação e a governança; Um programa de Capacitação dos Municípios; Um programa de Desenvolvimento Habitacional em PPP; Um programa para a provisão de reservas fundiárias e o planeamento espacial; Um outro programa é o PRRA [Programa de Requalificação, Reabilitação e Acessibilidade], que já funciona. Porquê? Porque não íamos esperar que todos os instrumentos (Planos) ficassem prontos, para depois agir. Havia urgências que não podiam esperar, designadamente acessibilidades e requalificação urbana. O PRRA vai continuar dentro do plano nacional e, no futuro, vai ser alargado porque tem três eixos fundamentais ligados, especificamente, à habitação: reabilitação de casas, requalificação urbana e acessibilidades. Não podemos pensar a habitação apenas como paredes e tectos. A questão é muito mais ampla; temos questões como a água, a energia, o saneamento, o espaço envolvente, a mobilidade, etc. Convém acrescentar que, no que se refere, em particular, ao programa das parcerias público/privadas, o Estado não pode assumir sozinho, esta responsabilidade. Tem de associar o sector privado e outros extractos organizados da sociedade civil. Os empreendedores turísticos, por exemplo, temos de os envolver na resolução do problema habitacional, principalmente nas ilhas turísticas. As pessoas não podem trabalhar em hotéis e dormir em barracas! Temos ainda dentro do PLANAH um outro programa para a autoconstrução, em que se vai criar mecanismos de apoio, cooperativas, acesso a crédito, para que as pessoas possam construir a sua “casinha” própria.

Mas nos centros urbanos terá de ser diferente.

É claro que dentro dos centros urbanos a situação é um pouco diferente, daí termos de pensar os assentamentos nas zonas periféricas, planificá-los e apoiar os Municípios, na sua implementação.

Por que acha que, desta vez, os resultados serão diferentes?

Porque temos instrumentos para nos guiar. Ninguém vai agir isoladamente, há uma coerência, há uma estratégia de longo prazo, temos um documento orientador, temos programas definidos, temos parcerias, temos responsabilidades definidas, independentemente da pessoa ou personalidade que estiver à frente do sector, em cada momento.

Há pouco falámos do Sal e da Boa Vista. Que soluções estão em cima da mesa para estas ilhas?

A nossa primeira preocupação era a questão das barracas, fomos lá várias vezes, vimos a situação, recolhemos elementos e gizamos uma estratégia e um plano de intervenção. O objectivo é erradicar as barracas. É claro que não tem sido fácil, mas a verdade é que estamos a conseguir e vamos continuar. No Sal, estamos a investir um milhão e trezentos mil contos, só na requalificação urbana do Alto de Santa Cruz e Alto de São João, com a construção de edifícios de raiz para colocar as famílias e com a absorção de parte do Casa para Todos, já demos início ao processo e contamos iniciar o realojamento muito brevemente. Tivemos uma paragem devido à Covid-19, mas vamos retomar o processo, brevemente. Na Boa Vista, a mesma coisa. Já fizemos a zona de expansão nova, parte desse terreno vai ser posto à disposição de empreendedores imobiliários, e vamos continuar. Um aparte, enquanto na Boa Vista circunscrevemos o Bairro da Boa Esperança, no Sal, no Alto de Santa Cruz e no Alto de São João, não conseguimos fazer isso, porque os bairros são mais dispersos, o que vai permitindo o surgimento de novas barracas. Essa é uma das dificuldades que temos neste momento, até para saber quem vai para as novas casas, porque estamos a trabalhar com base no cadastro social feito em 2017, que nos permitiu saber, desde a primeira hora, quem vive nas barracas, o seu agregado familiar, os seus rendimentos e planeamos para esse número. Em 2019 quando iniciámos o processo de realojamento constatamos que o cadastro já estava ultrapassado e foi de novo actualizado. Sabe, no meio de tudo isso também há gente oportunista; pessoas que insistem em instalar-se, na perspectiva de serem também beneficiadas.

As necessidades habitacionais para os próximos dez anos serão de 26.412 novas casas, principalmente nas ilhas de Santiago, São Vicente, Sal e Boa Vista. São demasiadas casas e muito pouco tempo?

Tudo dependerá dos recursos. Quando há recursos fazemos. Acredito, todavia, que com a crise actual, os números terão de ser revistos. Mesmo o perfil já diz que têm de ser feitas actualizações de dois em dois anos. À medida que vamos avançando, vamos actualizando os números, que vão corresponder àquilo que o momento exigir.

Um dos dados deste perfil da habitação é que apenas 15% dos cabo-verdianos têm acesso às moradias mais baratas (preço médio de 2.800 contos). Como se explicam estes números?

Porque dependem dos rendimentos. O grosso da sociedade não está em condições e opta pela autoconstrução faseada, até porque apenas 10,7% recorrem ao crédito bancário, portanto, os outros vão fazendo aos poucos.

Outro mercado que ainda não falámos é o do arrendamento. Como será possível garantir acesso ao aluguer de casas a preços acessíveis?

Essa é uma preocupação nossa e com a experiência que estamos a ter com o Casa para Todos pusemos na mesa a questão do arrendamento. O que estamos a fazer? Com base no cadastro social sabemos qual é o rendimento da família, se esse rendimento só lhe permite pagar um valor x, o Estado assume a diferença, que é o que estamos a fazer agora com o Casa para Todos. De um modo geral, a renda deve estar à altura do rendimento da família. Quem tem dinheiro paga a renda que quiser, mas as casas para famílias de renda baixa têm de ter um preço que a família possa pagar, com o Estado a compensar a diferença.

É o que estão a fazer agora com o Casa para Todos?

Sim. Temos casas fechadas e essas são as que estão para venda, aliás, nunca se falou de casa para dar, por isso é que há pessoas com casas a 700$ e pessoas com casas a 10.000$, etc.. Quanto às casas da classe A, o Estado decidiu entregá-las aos Municípios, que estão a fazer a sua gestão, algumas mais complexas, como é o caso da Praia, porque a procura é muito grande. O Município, só em pedidos, tem cerca de quinze mil, para pouco mais de trezentas casas. Resolveu fazer um concurso, apareceram cerca de dois mil concorrentes e são situações que terão de ser geridas. Na classe B, em princípio, a IFH não arrenda essas casas, mas estamos a repensar essa matéria. O Estado, da mesma maneira que está a compensar a renda das famílias da classe A, poderá compensar a IFH. O que estamos a pensar? Temos estas casas de classe B que estão com pouca saída, sobretudo as que estão na periferia. O Estado, então, decidiu pegar em mil casas, dos cerca de 1600 disponíveis para a venda, e baixar o preço, entrando com 800 contos para cada jovem que as quiser adquirir, mediante critérios definidos em regulamento. Mas como disse, a procura é baixa. Lá onde as casas estão bem localizadas, vendem-se bem. Quanto às outras, tem sido a passo de caracol. Há que dizê-lo, o dossier Casa para Todos, é uma “herança” que nos tem trazido enormes problemas. Trouxe problemas ao governo anterior, que não o conseguiu concluir, e traz-nos agora a nós, que temos a difícil tarefa de o concluir.

Voltando à política nacional de habitação, quais serão os princípios orientadores?

Para já, temos o que a Constituição diz, o direito a ter uma habitação condigna. A partir desse princípio, o caminho será termos planos nacionais e planos municipais e, consequentemente, programa e projectos. Em paralelo, devemos ter uma política de ordenamento do território que se ajuste a estes planos, de maneira a termos acesso a terrenos planeados e infra-estruturados. No que diz respeito, especificamente às cidades, é preciso valorizar o terreno em função da altura do próprio edifício, fazendo com que o município, a partir dessa base, possa captar receitas para investir na infra-estruturação pública. Haver planos espaciais que definam claramente a área construtiva, a altimetria, a planimetria e dentro da legislação estabelecer a responsabilidade das partes. No fundo, é um puzzle com diferentes peças, onde cada um terá o seu papel, não entra somente o Ministério, entram as Câmaras Municipais, o sector privado, as famílias, etc..

Do que vai depender o sucesso desta nova política nacional de habitação?

Há que haver uma consciência nacional que este é o melhor caminho, o caminho das boas práticas e que não devemos fugir desse caminho. Que os próximos governos saibam que a política de habitação é uma estratégia nacional e não a estratégia de este ou aquele governo. Do lado das famílias, tem de haver o compromisso de respeitar as regras estabelecidas. Do lado do Estado tem de haver uma estrutura focada na matéria.

A IFH não pode ter esse papel?

Nas condições em que está não pode. A IFH tem de ser recentrada, porque desde que o Casa para Todos surgiu, o governo passou-lhe essa responsabilidade, mas a política de habitação não se resume ao Casa para Todos. O Estado tem de ter órgãos, um órgão directivo, político, orientador, que poderá ser uma direcção geral, e um órgão executor, que poderá ser a IFH, recentrada, ou um outro departamento público. A verdade, porém, é que, do início, a IFH terá sido pensada, para este fim.

Esta é uma política realista, no sentido de ser exequível?

Acredito, sinceramente, que sim. Se noutras paragens foi conseguida, penso que nós também vamos conseguir, desde que as partes se envolvam, desde que haja uma consciência e uma vontade nacionais. É essa consciência que tem de ser construída, reforçada, acreditar que vamos resolver os problemas da habitação com o envolvimento de todas as partes. É um caminho, aliás, que não é imposto; tem sido discutido, socializado e vai sendo materializado, com o envolvimento de muitos. É uma solução trabalhada que vem brotando da participação colectiva. Se assim continuar, chegaremos lá, estou certo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 967 de 10 de Junho de 2020. 

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Autoria:Jorge Montezinho,14 jun 2020 8:25

Editado porAntónio Monteiro  em  14 jun 2020 22:13

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