Covid-19/Inclusão : O que muda na vida de pessoas com deficiência auditiva?

PorSheilla Ribeiro,4 out 2020 9:21

Não é novidade que a pandemia da COVID-19 afectou a todos. Entretanto, para as pessoas com deficiência auditiva, que antes já enfrentavam várias dificuldades na comunicação com a sociedade, a pandemia elevou e expôs as vulnerabilidades. Isso, em todo o mundo. Por cá, diz a intérprete Adelsa Tavares que os surdos querem ter acesso a todas as informações sobre o novo coronavírus, pelo que apela a uma maior aposta na linguagem gestual, por forma a se passar todas as mensagens e para que ninguém fique de fora. Já a Escola Eugénio Tavares, que lida com crianças nesta situação, já está a reenquadrar-se no contexto da pandemia.

Em declarações ao Expresso da Ilhas, Adelsa Tavares começa por dizer que, no início da pandemia, as pessoas com deficiência auditiva sempre perguntavam o que se estava a passar depois de verem, e não entenderem, as notícias na televisão.

“Trocávamos ideias num grupo de Messenger porque na televisão as informações não eram transmitidas na linguagem gestual. Então passei a seguir mais as notícias para depois fazer vídeos em casa, filmados pela minha filha de 8 anos, e partilhar com eles no grupo de Messenger”, prossegue a especialista, completando que depois aceitou o desafio de partilhar esses vídeos no próprio Facebook, o que, diz acreditar fez-lhe ser convidada para as conferências de imprensa sobre a Covid-19, “já que é muito importante para os surdos terem esta informação de modo a se prevenirem e prevenir os outros”.

Adelsa Tavares, com alunos surdos incluídos nas turmas normais, afirma que as pessoas com deficiência auditiva querem ter acesso a todas as informações. Segundo diz, ela tem recebido mensagens de outros lugares da ilha de Santiago e mesmo de outras ilhas de pessoas com deficiência auditiva reclamando porque acham que são os intérpretes que não querem interpretar para eles.

“A forma como mandam a mensagem é sempre a mesma “porquê é que não foste à conferência de hoje? Hoje eu não vi na TV a língua gestual”. Isso mostra que eles seguem as notícias, principalmente os mais maduros”, acrescenta.

Esta intérprete acredita que um espaço para este grupo de pessoas no telejornal seria bom. Adelsa Tavares afirma que recebe relatos de pessoas com deficiência auditiva afirmando que com as interpretações sentem-se mais autónomas.

Uso de máscara comum atrapalha

A expressão facial é um dos elementos chaves para que as pessoas com deficiência auditiva possam perceber a mensagem, tanto é que em outras paragens já se está a disponibilizar máscaras com viseira labial. Por cá, Adelsa Tavares está a pensar em adquirir máscaras adaptadas às pessoas surdas.

“Mesmo para nós que ouvimos, a comunicação com máscara é mais difícil porque apesar do contacto visual sempre estamos habituados a ver o movimento da boca da pessoa que ajuda a perceber melhor as palavras, principalmente quando há muito barulho. Para as pessoas com deficiência auditiva é muito mais complicado porque na língua gestual os movimentos e as expressões fazem parte da gramática gestual”, explica.

Segundo diz Adelsa Tavares, sem a expressão, apenas o gesto é insuficiente para uma massagem ser bem passada e bem-recebida, sem ruído na comunicação.

“Há uma empresa no País que já se disponibilizou para produzir esse tipo de máscara, até já me mostraram uma máscara transparente, diferente das de tecido. Essas máscaras são essenciais não só para as pessoas surdas, mas também para aqueles que com eles trabalham e na escola seria bom que os professores e alguns colegas de turma tivessem essas máscaras”, explica.

Ainda nas suas declarações, Adelsa Tavares que fez bacharel em serviços sociais, com especialização em educação especial e é também licenciada em Língua Portuguesa e Estudos Cabo-verdianos, diz ser “importante” que as pessoas invistam na língua gestual porque, do contrário, será sempre uma barreira para as pessoas com deficiência auditiva.

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“É preciso saber comunicar com as pessoas surdas para que tenham acesso a toda a informação e conteúdo que lhes são passados. Mas, para mim, é uma área que ainda não é muito valorizada, mesmo nós os profissionais por vezes acabamos por nos sentir um pouco desmotivados pelo trabalho. Não são todas as instituições que nos valorizam, se não for vontade e amor à profissão acabamos por desistir”, completa.

Maior engajamento dos pais

O gestor da escola Eugénio Tavares, que trabalha na cidade da Praia com o ensino das crianças com necessidades especiais, especialmente com alunos surdos, diz que a escola está a trabalhar no sentido de garantir uma maior integração de alunos surdos neste contexto de pandemia, mas lamenta a falta de engajamento de pais e encarregados de educação.

“Os professores têm tido formações, sessões de esclarecimentos. O que pedimos é mais engajamento dos pais. Estes vivem um pouco distantes, fazem pouco esforço para apoiar os filhos, particularmente os alunos surdos”, afirma Jorge Rodrigues, completando que, com base na inclusão, a escola dá a esses alunos todas as condições que os outros alunos têm.

A escola, segundo relata, acolhe todos os alunos surdos da cidade da Praia e das regiões mais próximas e todos, garante, estão “razoavelmente equipados” em termos de materiais audiovisuais, apesar de que o áudio para eles não diz muito.

Em tempo de pandemia

“Durante o período de confinamento os alunos tiveram aulas online através de grupos do Facebook que já existiam. Antes já funcionávamos muito com os pais dos alunos através de grupos. Na altura foi muito mais útil porque permitiu aos alunos enviarem os seus trabalhos, recebemos o feedback dos pais, enfim. Mas, infelizmente como todos os outros pais alguns são desleixados e não ligam muito, mas o esforço dos professores foi tentar através dos grupos estar sempre em contacto com os alunos, mantê-los sempre com exercícios para fazerem e depois acompanharam pela televisão que foi o que se viu”, conta.

Para Jorge Rodrigues, as aulas pela televisão “foram boas”, porém, refere, para crianças surdas a caixinha de intérprete era “muito pequena” e foi um “pouco mais complicado” para elas acompanharem as aulas.

“Não acho que deveria haver uma aula específica para alunos surdos, porque a nível da escola não oferecemos aulas específicas, a inclusão diz que devem ter a mesma condição dos outros alunos, então, é tornar pelo menos a caixa de intérprete maior. Que ocupe um pouco mais de espaço na televisão”, defende.

Plano de contingência

Este gestor dá conta que há um plano de contingência ao nível da escola do agrupamento de Achada Santo António, com foco em alunos surdos, especificamente, que têm muito mais professores por alunos do que as outras turmas.

“Por exemplo, num total de 33 alunos operamos com 6 professores. Cada professor tem mais ou menos um máximo de oito alunos por turma. Alguns, como são poucos demais, por exemplo há turmas do terceiro e do quarto ano que, no ano passado, tinham apenas três alunos. Então, neste caso juntamos mas ainda assim operamos com dois professores”, prossegue Jorge Rodrigues.

Mas, diz este responsável escolar que “nunca vai ser uma tarefa fácil”, quando se fala de alunos com necessidades especiais auditivas. Aliás, exemplifica, que no ano lectivo passado a escola recebeu cinco alunos surdos e que, além da surdez, tinham também problemas de mobilidade.

“Um deles sofre de paralisia cerebral, um outro tem problemas de visão e com uma grande dificuldade em se movimentar. Inclusive, dava dois passos e caía, então os professores tinham de carregar o aluno para o levar à casa de banho, davam comida na boca, entre outros cuidados. Dá para imaginar que agora, no contexto da pandemia, onde não pode haver contacto, os professores serão obrigados a tocar nos alunos, neste caso, nos dois alunos a que me referi”, adianta.

Na verdade, esclarece, há três alunos nestas condições. Entretanto, completa, um já está mais desenvolvido, uma vez que consegue “andar melhor”.

“Mas ainda temos dois que são mais dependentes dos professores. Neste caso, é muito mais complexo para nós, é uma questão de desinfectar as mãos porque se não houver contacto a criança vai ficar abandonada e isso não permitimos. Por estas razões temo-nos reunido à procura de melhores soluções”, diz.

Um outro plano que a escola Eugénio Tavares traçou para estes alunos está relacionado com a disponibilização de máscaras especiais que facilitem a leitura labial.

“A língua gestual tem uma componente forte que é o movimento dos lábios que têm de acompanhar, na medida em que os alunos começam a compreender muita coisa através da leitura labial. Então, com uma máscara convencional diminuímos a forma desses alunos entenderem o que os professores transmitem. Por isso, temos um projecto no Ministério da Educação para ver se se consegue máscaras específicas para esses alunos. Trata-se de uma máscara de um material parecido com a das viseiras para que possam acompanhar a leitura labial. É um dos desafios que temos a enfrentar e que esperamos conseguir ultrapassar”, explana.

Um outro desafio, “ainda maior” e “que está fora do alcance da escola”, aponta este responsável, está relacionado com a questão dos transportes dos alunos. Segundo explica, os alunos são normalmente recolhidos nas suas zonas com o recurso a uma viatura hiace da associação dos surdos.

“Um hiace transporta uma média de 15 pessoas e, no contexto da pandemia, tem de transportar sete. O nosso carro transportava cerca de 30 alunos, agora não vai ser possível meter 30 alunos num hiace, apertados, já que cada um vem de uma casa e uma zona diferente. Neste momento o nosso grande desafio é conseguir transporte para esses alunos”, esclarece.

Até agora, conta Jorge Rodrigues, a única instituição que já se disponibilizou a ajudar a escola Eugénio Tavares é a Delegação de Educação da Praia.

“Estamos a correr atrás de outros parceiros para ver se nos conseguem ajudar a resolver este problema que ultrapassa a capacidade da escola e do agrupamento resolver”, garante.

Entretanto, no novo contexto pós-pandemia, Jorge Rodrigues avança que não vai haver intervalos entre as aulas e que haverá 30 minutos no fim do dia que é para dar às crianças de comer e as levar para casa.

“Nas outras turmas normais vai haver um intervalo de cinco minutos para a troca de professores, mas no regime de monodocência nem isso haverá. O professor vai criar a sua estratégia suave de integrar as aulas de uma forma mais suave”, informa. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 983 de 30 de Setembro de 2020.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,4 out 2020 9:21

Editado porAntónio Monteiro  em  11 jul 2021 23:21

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