Quase, quase no fim do II trimestre do ano passado, as escolas encerraram. Uma entrada antecipada nas férias de Páscoa com a esperança de retorno um par de semanas depois. Não foi assim. Veio o estado de Emergência, o confinamento e a correria de tentar manter algum vínculo entre alunos e ambiente escolar recorrendo a meios remotos, tele-aulas e distribuição de fichas.
Depois, em Setembro, os professores retomaram o trabalho, com várias formações preparatórias. E entre Outubro e Novembro, no meio de alguns percalços causados pela pandemia, e muitas medidas de contenção da mesma, todos regressaram à escola. Uma escola diferente, de rosto mascarado, sem brincadeiras no recreio e com menos alunos e horas…
Tudo se readaptou e os professores também. Alguns, contam-nos como tem sido ser professor, em tempos de pandemia.
Uma vez por semana
Ernani Rocha dá aulas ao 5.º e 6º ano numa escola em Sal-Rei (Boa Vista). A mesma onde estava no ano passado quando a covid se tornou pandemia. Mas se a escola é a mesma, o mesmo não se pode dizer do regresso às aulas, que veio carregado de mudanças.
A primeira que o professor destaca, neste “ano que tem sido mais difícil”, é o facto de só ver os alunos uma vez por semana.
A redução simultânea de turmas (divididas em grupos de dias alternados) e horários, significou na prática, que de 4 tempos semanais por turma, cada grupo agora só tenha 1 tempo. “Veja a diferença!”
É suposto, sim, que os alunos trabalhem também em casa, complementando esse tempo presencial. E os professores passam fichas, tpc nos manuais, mas, pelo menos na sua escola, a maior parte das folhas voltam vazias. São poucos os seus alunos que trabalham fora da sala e menos ainda os que são acompanhados pelos pais nesses trabalhos escolares.
Mesmo as aulas da TV Educativa não são seguidas por uma franja imensa dos alunos. Até porque muitos, durante o dia, não têm acesso a electricidade.
Sobram então essas tais aulas presenciais, de 50 minutos semanais, dos quais são retirados apenas 5 a 10 minutos para as “correcções”. O restante é para matéria nova. “É às pressas, temos de corrigir e aproveitar o máximo do tempo, é muito complicado”, lamenta o professor Ernani, à semelhança de outros professores
À substração das horas junta-se, como referido, a divisão das turmas, o que significa que, embora não tenha havido propriamente um aumento em termos de carga horária dos professores, é como se tivessem o dobro das turmas.
“É mais desafiante. Costumo dizer que nós agora somos autênticos gravadores porque nós repetimos, repetimos, e tormamos a repetir as mesmas coisas.”
Na sua escola, hoje, já pouco se faz à distância. No ano passado houve essa tentativa, com fichas a seguir e ser retornadas pelo messenger. Também a delegação escolar da Boa Vista ia entregar as fichas em casa, e depois os alunos enviavam fotos. Mas ... “não deu muito certo, porque a maioria dos alunos não tem acesso à internet”, avalia o professor.
E assim apesar dos constrangimentos, para muitos alunos o ensino presencial é a única opção viável.
Sala, Ar e Zoom
“Nós tivemos de nos adaptar em todos os sentidos”, conta por seu turno o professor Daniel David Ribeiro, do Colégio Letrinhas, no Sal. Mas se, na verdade, todos, mas mesmo todos, os professores e escolas tiveram de se adaptar às novas circunstancias, as adaptações foram diferentes.
Por exemplo, enquanto na Boa Vista (e um pouco por todo o país), Ernani e outros professores do ensino público se debatem como os referidos problemas do acesso à net dos alunos, no privado colégio Letrinhas é possível o recurso alargado aos meios digitais.
Aliás, neste momento, por exemplo, mesmo com as aulas presenciais a decorrerem, uma boa parte dos alunos assiste às mesmas, via plataformas digitais. Não porque tenha havido uma divisão de turmas – estas já eram pequenas –, mas porque a escola fornece essa opção em tempo de pandemia.
E os próprios alunos já se habituaram ao digital. Se no início encaravam como brincadeira, duas aulas depois já entendem que não é.
Perceberam que “aquilo que está a acontecer na sala de aula é o que esta a acontecer na sua sala, e começam já a ter uma outra postura”, revela.
Assim, os docentes deste colégio, que dá aulas da creche ao 12-º ano, desdobram-se entre as aulas online e presenciais que decorrem em simultâneo e com participação remota. E com as novas necessidades surgidas houve uma multiplicação também das horas que os professores passam no colégio.
A par das aulas, via zoom, há aulas gravadas disponíveis online, e todo o material didáctico foi colocado online. “Tudo quanto os alunos precisam, desde o 1º ao 12º ano”, conta o professor Daniel.
Toda esta experiência digital teve na verdade início no ano passado, durante o confinamento, quando já tinha sido feita uma espécie de migração para o digital. E aí ocorreu, tal com em outros lugares, um fenómeno interessante. Com o impulso dado ao uso das novas tecnologias, vários professores ganharam competência nesse domínio aprendendo com as gerações mais novas.
No caso do colégio Letrinhas, uma antiga aluna, que terminou o 12.º ano e decidiu fazer um ano sabático no próprio colégio, foi dando formação aos professores sobre o uso dessas tecnologias. “A partir daí cada qual foi procurar o seu próprio caminho, procurar a sua própria maneira de ensinar” digitalmente, assinala o professor.
Entretanto, para além da aposta no ensino digital, o próprio espaço físico do Colégio sofreu uma modificação, fruto de várias sessões de trabalho de professores e outros responsáveis. Quatro espaços internos ao ar livre, como refeitório e outros, foram transformados em salas de aula ao ar livre.
Os pais
O uso do digital não é só para os alunos. Também é para os pais. E a pandemia impulsionou também o recurso ao Messenger e outros aplicativos para comunicar com estes. Se esses grupos já existiam, no confinamento tornaram-se mais activos… e depois, na maior parte dos casos, a interacção esmoreceu do lado de lá.
O professor Ernani, na Boa Vista lamenta que este recurso não seja mais usado.
“Temos Messenger, eu posso esclarecer [dúvidas], mas não dão a minima para isso…”, critica.
Alguns pais não se interessam. Outros interessam-se. Outros ainda já se interessaram, mas agora menos. Há professores que consideram que, apesar de tudo, as condições adversas da pandemia “estreitaram a relação entre pais e professores”.
É o caso de Maria, professora numa EBI em São Vicente, que recebe inclusive alunos de famílias carenciadas. “Muitos pais fizeram muito esforço para acompanhar” no confinamento. Mais na altura do que agora, é certo.
O ano escolar, recorda, começou mais cedo e Maria juntou-se aos professores que, por todo o país, tiveram formação. “Muitas formações a distância. Aprendemos a trabalhar em várias plataformas e tivemos reuniões através dessas plataformas”, recorda.
O ano lectivo arrancou, então, e as turmas da escola de Maria foram divididas em grupos que vêm todos os dias, por duas horas, em horários diferentes (das 8h às 10h e depois das 10h30 ao 12h30).
As queixas de Maria são semelhantes às de Ernani. “Pensa-se que os professores estão a trabalhar menos, mas acabam por ficar sobrecarregados. Acabamos por dar muitas aulas. Se tivermos 6 turmas, repetimos, 6 vezes a mesma coisa para 2 turnos… e com máscara”.
A máscara
Embora cada vez mais “adaptados” que estejamos todos à máscara, é inegável que ela é uma presença estranha no espaço aula. A interacção com o aluno, que já está debilitada pela pouca convivência com o professor e espaço escolar, também é afectada por este instrumento de protecção.
“Há alunos que, sinceramente, se eu os encontrar na rua, sem máscara, não os reconheço”, conta Ernani. Alunos que nunca viu sem máscara. “Essa interacção aluno/ professor está a perder-se e é uma parte importante…”
E há também a própria questão pedagógica. O professor Daniel trabalha com Expressão Inglesa e confessa ser difícil ensinar, por exemplo, as crianças pequenas, de 4 ou 5 anos, a pronunciar determinada palavra, se elas não conseguirem ver os lábios. Então, embora por norma se use máscaras no colégio, “há casos em que usamos viseira”, diz. No caso descrito, mas também, particularmente, na educação especial, onde praticamente todas as aulas são dadas com viseira.
Tem havido cuidado. O medo de infecções levou às medidas de protecção e higiene, e os professores, receosos pelos alunos, mas por si e pelos seus familiares, tentam fazer vigorar as regras. Preocupa-os porém, o facto de verem os alunos aglomerados e sem máscaras mal saem da escola.
Dentro aulas, para além das medidas gerais, há outras, como conta Ernani, para protecção. “Evitamos por exemplo chamar mais do que um aluno ao quadro, e pegue no giz” e recorre-se mais à participação oral.
Metodologia
Outros professores provavelmente também foram criando estratégias. “Estamos a fazer a nossa adptação em função da nossa realidade. Fomos adaptando as nossas metodologias, o que vai depender também da metodologia de cada professor”, diz o professor da Boa Vista.
E com menos, muito menos carga lectiva, obviamente, houve necessidade de adaptar até os próprios conteúdos programáticos e sua planificação.
“Foi necessário aos professores inventar, reinventar, adaptar, readaptar, criar novas estratégias para poder continuar o programa”, conta o professor Daniel do Colégio Letrinhas, reconhecendo que o facto de serem uma instituição privada os coloca numa situação diferente.
Sobre o ensino público em pandemia, escusa-se a tecer alguma avaliação. “Primeiro pelo respeito que tenho pelo público. Nós somos privilegiados porque somos privados, podemos fazer a gestão diferencial dos nossos serviços, mas acho que para o público não está a ser fácil. Acredito que os professores do público também se estão a adaptar, a ajustar”, avalia.
Fichas, trabalho de casa, são constantes, com conta a professora Maria, de São Vicente. (Mesmo que voltem em branco).
“Uma das orientações do Ministério da Educação é que as aulas têm de ser todas de matéria nova. Damos a matéria e os alunos fazem exercícios em casa. Depois fazemos tipo uma revisão, corrigimos e aí também já temos alguns elementos para poder avaliar os alunos…” conta, corroborando Ernani.
Os conteúdos, revela ainda, são agora planificados de “forma mais específica”.
“Tem de ter uma redução, temos de tentar transmitir de forma ainda mais simples”. E há o facto, realça, de os alunos trazerem ainda lacunas do ano anterior (no qual só tiveram dois trimestres lectivos).
“Temos muitas lacunas para preencher”, principalmente em alunos que mudaram de ciclo, observa.
Lacunas
Desde o ano passado, portanto, que os curricula escolares vão ficando atrasados.
“Penso que iniciamos bem o ano lectivo, mas os conteúdos estavam atrasados. Com o tempo reduzido, também, este ano falhamos mais e mais ainda”, analisa a Prof. Maria.
Neste momento, está a ser feito um levantamento de toda a matéria que não foi (ou será) possível dar este ano lectivo, para enviar para o Ministério da Educação de modo a que ele possa delinear indicações.
“Para fazer o nivelamento e para, nos próximos anos, ver se se consegue ir recuperando. Mas ainda assim vai ser muito complicado recuperar todo o tempo perdido..”, refere, por seu turno, o Ernani.
Talvez no próximo ano se aumento o tempo lectivo, talvez não. Ainda é tudo especulação. Mas a recuperação será lenta e as lacunas são reais.
“São perdas que nós temos a contabilizar. Alguém já tinha dito que um ano de escolaridade que se perde são 10 anos para se recuperar”, como aponta o Prof. Daniel. Saltar conteúdo não é opção.
Professor é professor
Com todos os medos e vicissitudes deste ano lectivo, a verdade, como diz o Daniel, é que “professor é professor”. Sendo que a maioria dos que abraçam esta profissão, segundo acredita, o faz por vocação, “por acharem que pode fazer uma diferença”, não são estes constrangimentos que modificarão a essência.
“Com mais ou com menos dificuldades, a missão é a mesma”, sublinha. “Ano entra, ano sai, e eles estão lá, com todas as dificuldades …”
Também Ernani, salvaguardando que por vezes “a gente cansa”, refere que “nós escolhemos esta profissão, temos de dar o nosso máximo”.
Assim, não é a pandemia que derruba a essência do professorado. E há esperanças de um próximo ano mais “normal”, com mais aulas e ambiente escolar mais interactivo (fisicamente falando).
“Há a perspectiva de, com a vacinação dos professores, voltarmos às aulas normais”, em todo o lado, congratula-se a professora Maria.
Os pais agradecem. “Não é só os pais! Os professores também”, diz.
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Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1013 de 28 de Abril de 2021.