Foi em 2006 que surgiu no mercado a primeira vacina contra o HPV. Nesse ano, e durante os dez que se seguiram (em 2016 foi ultrapassado pelo cancro da mama), o cancro do colo do útero foi o carcinoma com mais incidência e aquele que mais matava em Cabo Verde
Qual a relação? Quase todos os cancros do útero são provocados pela infecção por HPV, e a vacina previne 70% destes cancros (bem como outros cancros). Com o surgimento da vacina, este tornou-se pois o primeiro, e por enquanto único, carcinoma que pode ser prevenido por meio da imunização.
2007
Um ano depois da introdução da vacina no mercado, falou-se pela primeira vez da vacina no EI. Num artigo de opinião intitulado “Políticas Públicas. Onde Param?” o então colaborador e hoje director do jornal, Humberto Cardoso, partia de várias acções levadas a cabo contra o cancro de mama para alertar para o problema do cancro do útero no país, “o mais frequente e mortífero” em Cabo Verde.
O autor apontava denotar-se a esse nível, “ um grande défice em termos de prevenção ”, e criticava que ao se projectar, em Cabo Verde, “uma campanha de prevenção de cancro de mama, não se faça em simultâneo uma campanha para prevenir o cancro com maior incidência, o do colo do útero. O público alvo é o mesmo: mulheres”.
Aliás, actualmente, as campanhas anuais no âmbito do Outubro Rosa, já apelam à prevenção dos dois cancros. Mas voltando ao artigo de 2007. Recordavam-se aí as evidências que mostram que a maior parte dos cancros do colo do útero eram causados pelos tipos 16 e 18 HPV, que é transmitido por via sexual. E portanto, a sua prevenção seria mais simples do que “o de mama cujas causas são diversas e de natureza mais complexa.”
“Testes de citologia com relativa frequência, designadamente os chamados papanicolau, evitariam muitos casos. As vacinas colocadas no mercado desde de Junho de 2006 pela Merck já levaram muitos países a assumirem a necessidade de vacinar todas as meninas”, antes do início da vida sexual, escrevia o autor, que exortava ainda ao melhor uso de recursos por forma a se “equipar instalações de saúde, em todas as ilhas, com meios de análise que permitam o diagnóstico em tempo dessa doença, traumatizante e mortífera, para a mulher cabo-verdiana”.
2011
Em 2011, numa reportagem de Ilda Fortes, o EI destacava que o cancro do colo do útero era a principal causa de morte entre as mulheres que morreram com carcinoma em Cabo Verde. “Mais difícil de detectar e tratar que o cancro de mama, tem como cura mais segura a prevenção.”
Na peça é enfatizado o facto de ser um cancro muito associado “às doenças sexualmente transmissíveis, sobretudo HPV”. Era igualmente salientado que 99,7% dos casos da doença têm essa associação, estando “relacionados com uma infecção que a mulher teve por HPV no passado”.
“O risco de desenvolver cancro do colo do útero depende do tipo de vírus e da persistência da infecção”. Dos muitos tipos de HPV, 30 afectam a área genital e entre esses “alguns provocam mudanças nas células de revestimento do colo do útero” que caso não sejam tratadas, se podem tornar células cancerosas, explicava.
Entretanto, como também sublinha o texto, já existiam “vacinas para prevenção da infecção”.
Mas, na altura, escrevia-se: “Apesar das grandes expectativas e resultados promissores nos estudos clínicos, ainda não há evidências suficientes da eficácia da vacina contra o cancro do colo do útero. Sendo assim, a vacinação não dispensa o exame preventivo”.
Ou seja, reforça-se, como fundamental o acesso à citologia para detecção dos casos, não propriamente da infecção, mas das alterações nas células, bem como outros exames.
2013
Em Novembro de 2013, novamente, o EI voltava ao cancro do colo do útero numa reportagem agora focada na vacina contra o HPV.
Já vários países haviam introduzido a vacina no seu calendário e o Ruanda, o primeiro país africano fazê-lo, conseguira em 2012 completar a vacinação (em três doses) em 93% das suas raparigas, entre os 9 e os 13 anos. Conseguira-o graças a uma associação, em 2011, com a empresa farmacêutica Merck, que doou dois milhões de doses de Gardasil (a sua vacina) e concordou oferecer, posteriormente, preços concessionais. “Em 2014, a GAVI vai apoiar este programa com um fornecimento sustentável de vacinas pagas”, avançava a GAVI, citada na reportagem.
Em Cabo Verde, a introdução da vacina contra HPV no calendário de vacinação era também uma das metas que constavam do Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário (PNDS) 2012-2016. Contudo, à data da reportagem nenhum avanço tinha sido feito.
“Estamos a trabalhar nesse sentido”, garantia a então Ministra da Saúde, Cristina Fontes Lima, que considerava fundamental essa introdução, assumindo-a como uma ambição pessoal e um propósito do Ministério. Havia a vontade, mas faltava tudo o resto.
“A principal questão – e maior obstáculo - tem a ver com o seu financiamento. No entanto, vários outros aspectos estão também em stand by”, lia-se. Ainda não houvera reunião com os parceiros para delinear um plano de implementação, nem estava definido quantas meninas seriam abrangidas e em que idades. E também não se sabia ao certo quanto é que poderia custar nem como seriam adquiridas as vacinas.
Na altura, já era comercializada nas farmácias nacionais a tal Gardasil, quadrivalente, que protegia contra os tipos os 6, 11, 16 e 18 (NR: não é a adoptada por Cabo Verde, que é bivalente).
“Mas devido ao seu preço é, claramente, inacessível à esmagadora maioria da população. Cada dose – são três - custa 23.550 escudos. A vacina é comparticipada pelo INPS, mas os 10.598 escudos que os segurados têm de pagar do seu bolso é, sem dúvida elevado. Assim, a solução para muitas centenas de cabo-verdianas teria de passar obrigatoriamente pela inclusão dessa vacina no calendário nacional de vacinação. Por outro lado, o governo dificilmente conseguiria pagar, sozinho, tal custo.”, lê-se.
Cabo Verde, com a sua ascensão a país de rendimento médio, deixara de estar elegível para o apoio da Aliança GAVI, ou seja, o país já pagava todas as vacinas do seu calendário.
O UNICEF, parceiro, tentava também interceder junto da GAVI a “fim de permitir que Cabo Verde possa beneficiar deste importante apoio”. Sem resultados, acrescentava-se.
Entretanto, apesar desse trabalho preliminar, o Sistema das Nações Unidas em Cabo Verde situa apenas em 2015, o início das acções.
“Desde 2015, a OMS e o UNICEF vêm trabalhando com o Ministério de Saúde na preparação para a introdução da vacina contra HPV e a elaboração do plano de introdução”, lê-se na página das Nações Unidas/Cabo Verde, no Facebook, por ocasião do lançamento oficial das vacinas, que decorreu esta segunda-feira, 8 de Fevereiro de 2021.
2018
Entre 2013 e 2018 várias peças foram publicadas, insistindo na necessidade da prevenção e detecção precoce. E se os rastreios pareciam estar a melhorar, a vacina parecia ter ficado em stand by. E assim chegamos a 2018.
No âmbito de um protocolo de cooperação para controlo do cancro celebrado entre o Cabo Verde e a Fundação Calouste Gulbenkian, entidade que tem apoiado o país nesta luta, voltávamos à vacina. Depois do PNDS 2012-2016, ela aparece também no Plano estratégico nacional de controlo do cancro, 2018- 2022.
“É mesmo, diria, uma das principais prioridades do plano estratégico. É muito importante!”, destacava ao EI a coordenadora do Plano, Maria da Luz Lima (também presidente do INSP).
Na altura, (Novembro de 2018) ainda não havia data para a sua introdução, estando em curso um estudo sobre a sua viabilidade e sustentabilidade, tendo em conta que seriam comparticipadas a 100% por Cabo Verde. Estudava-se também qual a vacina mais eficaz e a idade das meninas, referindo que geralmente é tomada por volta dos 10 anos.
2019
O governo reiterou e garantiu a introdução da vacina contra o HPV para “breve” no calendário de vacinação, falando de um investimento na ordem dos 200 mil contos. Mais uma vez o EI escrevia sobre o Cancro do Colo do útero, e sua “eliminação”.
Lia-se numa reportagem de Maio. “O que têm em comum os países que se espera virem a conseguir “eliminar” o cancro do colo do útero na próxima década? Um programa de vacinação contra o HPV, mas também programas de rastreio para detecção precoce eficiente.”
Ou seja, ambos se complementam. “Se é verdade que em 100% dos casos de cancro do útero está presente o HPV, as vacinas disponíveis só protegem contra cerca de 70% dos cancros”, recordava-se.
No mesmo ano, em Outubro, o EI alertava que desde 2016 o cancro da mama ultrapassava o cancro do colo do útero como aquele que mais mulheres mata.
Os números deste último eram: “Em 2015 morreram 29 mulheres com esta enfermidade, em 2016 foram 16, e em 2017 este cancro vitimou 15 mulheres”. Uma diminuição atribuída às práticas adoptadas ao longo dos anos, destacadamente à expansão dos rastreios.
Falava-se também da introdução da vacina contra o HPV, e que “deverá ser feita no próximo ano. O projecto para a sua implementação no calendário nacional de vacinação está concluído e já há verbas disponibilizadas para a mesma no Projecto de Orçamento do Estado para 2020, ontem [15/10/2019] entregue na Assembleia Nacional”, escrevia-se.
Mas a vacina, devido à pandemia, não chegou em 2020. Chegou agora e vai começar a ser aplicada em massa em Abril. Finalmente.
O HPV
O HPV apresenta cerca de 200 serotipos, que atacam tanto o homem (pénis, uretra) como a mulher (colo do útero, vagina, vulva). A maioria dos subtipos está associada a lesões benignas, como verrugas e entre 80 a 90% das infecções são passageiras e desaparecem de forma espontânea, por acção do próprio sistema imunitário. No entanto, certos tipos são encontrados em praticamente todos os cancros do útero. A infecção por HPV é transmitida sobretudo por contacto sexual, sendo a DST mais frequente. Estima-se que 75% das mulheres, a nível mundial, contraiam a infecção em determinado período das suas vidas. A vacina contra o HPV pode evitar 70% dos cancros do colo do útero e outros. É também aconselhada para rapazes, reduzindo acentuadamente os tumores penianos e os anais.
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Vacinação em massa vai começar em Abril
O Lançamento oficial da vacina contra o HPV ocorreu esta segunda-feira, 8 de Fevereiro. E a partir do próximo mês de Abril começará a vacinação mesmo em massa. É nesse mês que está prevista também a chegada de mais doses.
Trata-se de uma vacina bivalente, que protege contra os tipos 16 e 18 do HPV, os mais comuns.
Como explica Ivanilda Santos, coordenadora do Programa Alargado de Vacinação, a introdução desta vacina estava prevista para 2020. Contudo, devido aos constrangimentos causados pela pandemia da covid-19, as primeiras 10 mil doses esperadas, só recentemente chegaram ao país.
“As vacinas que temos são de 2020. As referentes a 2021 vão chegar em Abril”, data aliás, em que como referido, é iniciada a vacinação em massa.
No calendário nacional de vacinação fica, agora, plasmada a toma da vacina para todas as meninas, ao completarem 10 anos.
Assim, este ano serão já vacinadas todas as meninas dessa idade – um total de pouco mais de 5000. A vacina é tomada em duas doses, mas tendo em conta que as tomas deverão decorrer com pelo menos 6 meses de intervalo, e mais vacinas estão para chegar, não haverá constrangimentos.
Além destas crianças, será também lançada uma campanha para que meninas de mais de 10 anos recebam a vacina. É uma campanha excepcional, feita em praticamente todos os países que introduziram a vacina. Em termos de idade máxima – que varia de país para país – a previsão em Cabo Verde é que sejam contempladas as meninas até aos 14 anos.
Isto porque a idade é definida tendo em conta os estudos sobre o início da actividade sexual - a vacina tem de ser tomada antes do contacto com o vírus. De acordo com os dados mais recentes, providenciados pelo III Inquérito Demográfico e de Saúde Reprodutiva (IDSR), a idade de início da actividade sexual dos cabo-verdianos ronda os 14 anos.
Meninos, só no privado
Em Cabo Verde só as meninas serão contempladas com a vacina de forma gratuita.
Isso não quer dizer que os meninos não podem tomar a vacina. Muito pelo contrário. Devem. A única razão por que não está prevista no calendário cabo-verdiano, para meninos, é de ordem financeira. As meninas são as mais afectadas pelo HPV e não há condições para comprar doses para todos.
“Uma única vacina de HPV é o preço da metade das 11 vacinas que temos em Cabo Verde”, contabiliza a coordenadora.
Assim, é aconselhável, para quem puder pagar, comprar vacinas para os filhos. As mesmas são comparticipadas pelo INPS.
Quanto às vacinas do programa alargado de vacinação, de acordo com informações passadas aquando do lançamento institucional das vacinas, estas custaram cerca de 130 mil dólares ao Orçamento do Estado e contam com o apoio de parceiros internacionais, nomeadamente a UNICEF.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1002 de 10 de Fevereiro de 2021.