Sofia Moreira de Sousa, Embaixadora da União Europeia em Cabo Verde : “Solidariedade não pode ser apenas uma palavra”

PorJorge Montezinho,9 mai 2020 10:49

Há mais de 35 anos que Cabo Verde e a União Europeia têm uma relação baseada, antes de mais, numa significativa e contínua cooperação para o desenvolvimento. No seguimento e aprofundamento do Acordo de Cotonou de 2000, Cabo Verde e a União Europeia decidiram reforçar as suas relações de forma singular através de dois instrumentos: a Parceria Especial e a Parceria para a Mobilidade. Hoje, a União Europeia é o principal parceiro de Cabo Verde, inclusive no combate à pandemia da Covid-19. Sofia Moreira de Sousa, Embaixadora da União Europeia no arquipélago, falou com o Expresso das Ilhas sobre o que está a ser feito, sobre a visão da União Europeia para lidar com a pandemia a nível global e sobre a recuperação que virá a seguir.

Os apoios a Cabo Verde aconteceram depois do pedido do próprio governo cabo-verdiano, houve este primeiro apoio de 5 milhões de euros, mas estamos a falar de um apoio direccionado, já se sabe para onde vai.

Exacto. Temos várias acções em curso, muito antes da pandemia a União Europeia e Cabo Verde já tinham uma relação muito forte, com vários projectos, com vários apoios, havia muita coisa que já estava em curso e outras acções que tiveram de decorrer de uma forma mais agilizada e diferente para darmos uma resposta célere a uma situação que enfrentamos todos. Em Cabo Verde recebemos um pedido das autoridades nacionais para anteceder o desembolso do apoio orçamental. A União Europeia, juntamente com Portugal e o Luxemburgo, são os únicos parceiros de Cabo Verde que fazem contribuições aos cofres do Estado, verbas que vão para o Orçamento de Estado e que são subvenções, no sentido que não são empréstimos. São donativos entregues em reconhecimento de progressos alcançados e da intensidade da relação que existe. No caso da União Europeia, somos o maior parceiro, porque a própria parceria com a União Europeia tem um valor muito especial para a UE e em reconhecimento desta união que existe entre a UE e Cabo Verde há um trabalho conjunto em áreas determinadas, acordadas entre as duas partes, e à medida que são feitos os progressos a União Europeia desembolsa contribuições aos cofres do Estado.

Normalmente, esse é um exercício que acontece no final do ano, portanto, este ano avançaram já com esse primeiro desembolso, de 5 milhões de euros, em resposta a esse pedido relativamente às medidas nacionais adoptadas para mitigar as consequências sócio-económicas pandemia.

Muitas pessoas deixaram de ter rendimento, o turismo parou, o sector informal parou, as remessas de emigrantes seguramente serão afectadas também e, portanto, no pacote de medidas adoptado, com o objectivo de apoiar os mais vulneráveis, foi-nos então pedido se a União Europeia podia desembolsar de imediato, o que fizemos, num espaço de semanas. Esta verba foi alocada para o rendimento social de inclusão às famílias que já tinham sido identificadas pelas autoridades como estando em situação de pobreza extrema, à implementação de um regime de rendimento solidário, aliás, o financiamento da União Europeia do ano passado teve o reforço das políticas do INPS como uma das áreas, estes 5 milhões também foram direccionados para a assistência alimentar às famílias em situações de vulnerabilidade e ao reforço dos cuidados a idosos e a pessoas dependentes. Este primeiro desembolso visa precisamente apoiar as medidas nacionais desenhadas pelas autoridades.

No fundo, foi esta antecipação de verbas que permitiu esta resposta tão rápida.

Sim, mas posso também revelar um segredo, conseguimos esta resposta tão rápida porque tenho uma equipa fantástica que inclusive na manhã do dia de Páscoa estava a trabalhar, juntamente com os colegas em Bruxelas, porque muito embora seja uma verba que já estava mobilizada para Cabo Verde trata-se de dinheiro dos contribuintes europeus, que hoje enfrentam uma situação também muito difícil na Europa, portanto, todas estas verbas antes de serem desembolsadas têm uma série de critérios que têm de ser cumpridos, negociados, justificados em relatos que temos de pôr em inglês, enviar para a nossa sede. Enquanto embaixadora, sou a responsável por assegurar a legitimidade destes desembolsos e, portanto, há um trabalho que foi feito, em tempo célere, porque os nossos colegas na sede também estavam alertados para a vulnerabilidade de um país como Cabo Verde, que depende muito do turismo, e acima de tudo um país com quem temos uma parceria e uma relação muito especial. Começámos as primeiras conversas em meados de Março, formalizámos o pedido no final desse mês e foi-nos possível dar uma resposta numa questão de semanas.

Quando se fala em primeiro apoio, fica subentendido que haverá mais. Como referiu, estas verbas dependem de vários objectivos, neste momento, esses objectivos tornam-se secundários quando, no fundo, o que se pretende é combater a pandemia?

A sua questão tem duas respostas concretas. Foi um primeiro desembolso sim, haverá outro no montante que estava inicialmente previsto para Cabo Verde. Como também disse, neste momento os requisitos para haver o desembolso não são tanto secundários, mas no caso de Cabo Verde, e daí a justificação e o trabalhar noite e dia, consideramos que estão cumpridos; falo da fiscalização das contas públicas e depois havia uma série de requisitos que tínhamos acordado trabalhar este ano, por exemplo, a convergência técnico-normativa, que é termos a certeza que as regras na área da farmacêutica são compatíveis e com os mesmos níveis de exigência da Europa, todas as matérias em que temos vindo a trabalhar nos últimos anos também estavam no pacote e a nossa avaliação nos dois primeiros meses era que havia progresso e que as coisas estavam a avançar com o ritmo que deveriam avançar. Claro que em Fevereiro ou Março era impossível alcançar os resultados que esperaríamos ver em Outubro/Novembro/Dezembro, mas atendendo que tudo estava a ir na boa direcção decidimos pelo desembolso da verba total.

Além das verbas previstas, deste desembolso total, haverá espaço de manobra para algo mais?

Estamos a trabalhar para isso. Como imagina, a crise afecta o mundo inteiro, afecta-nos na Europa, afecta os contribuintes europeus, afecta países de forma gravíssima, portanto, não haverá milagres, não vamos ter verbas ilimitadas, mas iremos seguramente, naquilo que estiver ao nosso alcance e tendo em conta a relação especial que temos com Cabo Verde, tudo fazer para tentar algum possível apoio nalguma área que seja mais pertinente.

Apoio europeu que pode ir para lá do apoio financeiro.

Sim. A relação da União Europeia com Cabo Verde é bastante forte, alicerçada em muitas áreas. Por exemplo, Cabo Verde beneficia do sistema geral de preferências, o que significa que produtos com o selo ‘made in Cabo Verde’ quando entram no mercado comum não pagam taxas aduaneiras. Só nove países do mundo inteiro têm esta isenção e Cabo Verde é um deles. Isto não é uma contribuição em dinheiro, mas são milhões de euros que são poupados. Outro aspecto é todo o trabalho que temos vindo a fazer nos últimos anos na convergência técnico-normativa, é uma palavra complicada, mas o que quer dizer é termos regras muito parecidas para que produtos e serviços de Cabo Verde possam entrar no mercado europeu, com níveis de exigência em Cabo Verde semelhantes aos europeus. Também apoiámos bastante a reforma do ensino superior. E depois temos o aspecto financeiro que não é directo para os cofres do Estado, mas que mesmo assim tem uma importância fulcral para o cidadão cabo-verdiano.

Por exemplo?

Por exemplo, os projectos que temos com as ONG. Assinámos, em Fevereiro, com um conjunto de 14 ONG que se comprometeram, cada uma delas, a subcontratualizar com organizações comunitárias, para prestação de actividades a favor dos mais vulneráveis. E agora, com toda esta situação, lançámos um convite a estes parceiros para adaptarem aquilo que tinham previsto para darem resposta urgente ao que está a acontecer. E agora temos parceiros a comprar rações de animais para que os produtores de queijo possam continuar a ter leite, temos parceiros a fazer pequenas obras de saneamento para permitir que bairros com pessoas mais desfavorecidas possam ter acesso a água potável, temos o reforço das linhas de atendimento, em parceria com o ICIEG e parceiros da sociedade civil, às vítimas da violência baseada no género, temos acções de sensibilização em relação às condições de higiéne necessárias na luta contra esta pandemia, temos a entrega de cestas básicas, são imensas actividades. Isto para além dos projectos que temos com as Nações Unidas, ou projectos regionais, dos quais Cabo Verde também é beneficiário. No fundo, trabalhamos com as autoridades nacionais e com a sociedade civil e com as ONG.

É, no fundo, a União Europeia a assumir-se como principal actor actual do multilateralismo.

A União Europeia apoiou entidades como a Organização Mundial de Saúde com um pacote de 114 milhões de euros em Fevereiro, já na resposta Covid, depois reforçou com mais 30 milhões de euros em Março e uma parte do orçamento da OMS aqui em Cabo Verde é financiada pela União Europeia, só para dar um exemplo.

Num momento em que as superpotências estão em tensão entre elas, Estados Unidos e China, por exemplo, num momento também em que os EUA cortam o financiamento à OMS, considera que a Europa pode ter um papel fundamental na liderança do combate a esta doença?

No dia 4 deste mês, a União Europeia convocou uma conferência de contribuições, juntamente com outros parceiros não europeus, no sentido de angariar fundos para diagnósticos, tratamentos e, uma vez existindo, para a disponibilização de vacinas no mundo inteiro. Esta conferência resultou num apoio de cerca de 7.4 biliões de euros. Portanto, não são de negligenciar os esforços da União Europeia em termos de pacotes globais. Este mês, dia 9, celebramos 70 anos da génese da União Europeia, a declaração de Schuman que disse que a paz e a prosperidade alcançam-se muito mais depressa e de uma forma mais eficaz através da união e da solidariedade do que através de guerras e competição. Estes são os valores que estão na génese da União Europeia, os quais, durante estas sete décadas de existência, tem tentado implementar, com altos com baixos, e acreditamos que sozinhos não somos fortes, que para conseguirmos resolver os problemas mundiais, seja a luta contra a pobreza, sejam os problemas do meio ambiente, é preciso haver um esforço de todos. Infelizmente, nem todos os parceiros vêem as coisas assim, mas não é motivo para a União Europeia baixar os braços. Aquilo que esta pandemia mundial veio mostrar é que não serve irradicar o vírus de um país se o país ao lado não o conseguir.

Como disse o Alto Representante da UE, se um vizinho tem problemas, temos todos.

É esta a ideia. Quando falo da parceria com Cabo Verde e quando falo que a União Europeia é o maior parceiro de Cabo Verde no sentido de contribuições que não são empréstimos ao cofre do Estado, ou seja, não há um ónus para as gerações futuras. Mas isto tem um interesse, obviamente, e o interesse que existe não é ‘vamos dar o dinheiro porque queremos que os outros estejam bem’. Claro que queremos que os outros estejam bem, mas porquê? Porque se os outros estiverem bem, nós também estamos. Pensando na parceria com Cabo Verde, a União Europeia é o maior mercado para o turismo, é o maior importador, é o maior exportador, é o maior investidor, portanto, a União Europeia não tem interesse que Cabo Verde não tenha um crescimento sustentável, porque senão todos estes investimentos iriam sofrer. Esta proximidade cultural, histórica, que existe entre a União Europeia e Cabo Verde é o alicerce desta parceria e o investimento que a União Europeia faz nos seus parceiros é um investimento muito interessado e que se pode resumir a: a prosperidade da União Europeia e de Cabo Verde alcança-se quando os dois parceiros conseguirem fazê-lo ao mesmo tempo, que é uma lógica diferente de uma competição. Todo o fundamento da União Europeia é, há desentendimentos? Sim. Há forma de ver as coisas diferente, há políticas diferentes, somos 27 Estados membros, nem todos vêem as coisas da mesma forma, demora algum tempo por vezes a conseguirmos unanimidade, mas quando conseguimos uma posição comum, claramente que essa posição é muito mais forte do que 27 posições diferentes. Daí este empenho numa resposta global.

Mas nessas relações entre a EU e África, presumo que levem em linha de conta as diferenças de contexto, porque estamos a falar de um continente onde, por exemlo, há muitas pessoas em habitações precárias, ou que praticam maioritariamente uma economia informal.

Claramente. Em termos de União Europeia, e pela vontade que temos em trabalhar em conjunto, temos também uma parceria com a União Africana e com as organizações regionais, como a CEDEAO. Além de respostas e apoios que temos a nível bilateral, neste caso a resposta que estamos a trabalhar para apoiar Cabo Verde, existe, em paralelo, a resposta do EU a nível continental e a nível regional. Há também tomadas de posição em contextos políticos, por exemplo, no seio do G7 e do G20 a União Europeia tem sido uma voz muito a favor do perdão da dívida, ou pelo menos, do perdão das taxas de juro da dívida, porque entendemos que os parceiros que tinham economias que estavam a crescer e a tentar desenvolver-se cada vez mais vão sofrer consequências desastrosas com esta pandemia. Por isso, há tomadas de posição muito claras da União Europeia a favor de um mundo mais justo e em que possamos ter uma melhor qualidade de vida.

Acha que é essa a mensagem principal que a União Europeia está a transmitir neste momento? Que a solidariedade não pode ser apenas uma palavra?

Não pode ser e a própria Europa é um exemplo disso. Nós saímos dum pós-guerra e se não tivesse sido a solidariedade entre todos a Europa não se teria reerguido. Há um ditado africano que cito muitas vezes: quem quer ir muito depressa vai sozinho, quem quer ir longe vai acompanhado. Se calhar, às vezes não conseguimos fazer aqueles progressos milagrosos de um dia para o outro, mas o que é preciso são progressos sólidos e que não fique ninguém para trás. É aqui que entra a palavra solidariedade. É claro que em situações de crise, por vezes, o primeiro reflexo de auto-defesa impede que a solidariedade se manifeste, mas quando pensamos um bocadinho, a única forma que temos, realmente, de resolver crises globais tem de ser através da solidariedade, da união e da cooperação. Não conheço outra. É desta forma que trabalhamos com os outros países.

Mas este cenário actual da pandemia não é também um teste à própria União Europeia?

O que está a acontecer na Europa, que tem sido um dos continentes mais afectados, vai ter consequências enormes. Há uma paragem da economia, há o medo das pessoas, e este receio é muito difícil de combater, o regresso a uma futura normalidade, seja ela qual for, não sabemos ainda como vai acontecer. Portanto, estamos numa situação desafiante, não vai ser fácil, mas nestes 70 anos a União Europeia enfrentou tantos desafios e saiu cada vez mais forte. Acredito que seja esta também a saída para a crise actual.

Para além de termos falado do apoio europeu a Cabo Verde, e a nível global, no combate à pandemia, o 70º aniversário da União Europeia foi também uma tema transversal a esta entrevista. No próximo sábado, dia 9, comemora-se o Dia da Europa, desta vez assinalado de uma forma diferente.

Exacto. São 70 anos, uma idade em que temos de pensar no que foi alcançado e nos desafios que temos pela frente e como conseguir vencer esses desafios. As comemorações, este ano, tiveram de ser adaptadas. Na Praia, juntamente com as embaixadas do Estados europeus, estamos a desenvolver uma iniciativa de solidariedade, com parceiros nacionais, como a FICASE e algumas ONG, vamos assegurar a distribuição de algumas cestas básicas a grupos que mais precisam e temos também uma série de acções que os nossos parceiros no terreno têm implementado, as ONG, gostaria de aproveitar a ocasião para lhes deixar uma palavra de agradecimento e de alento pelo trabalho incansável que têm vindo a fazer. E temos um concerto. Lançámos um desafio a uma banda africana que canta em português, os Mi Casa, a bandas cabo-verdianas, as 7 Luas Bands, da Brava e do Maio, temos também o Djodje e os Rapaz100Juiz, que nos vão dar uma hora de alento nestes tempos que requerem alguma esperança. Começamos a transmissão às 18h de sábado [na página do Facebook da União Europeia em Cabo Verde https://www.facebook.com/events/550739505871057/]... e estamos a falar com as operadoras para ver a possibilidade da visualização do concerto ser gratuito e não haver consumo de megas. É uma forma de celebrarmos a união e a solidariedade entre o continente europeu e o continente africano e concretamente a união, muito forte, que existe entre a União Europeia e Cabo Verde. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 962 de 6 de Maio de 2020.

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Autoria:Jorge Montezinho,9 mai 2020 10:49

Editado porJorge Montezinho  em  17 fev 2021 23:21

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