Em carta datada da passada sexta-feira, 28, e dirigida ao Presidente da Assembleia Nacional, Austelino Correia, o chefe de Estado justifica a sua posição destacando a necessidade de clarificação sobre as razões da transferência.
“A não ser que sejam melhor explicitados, não resulta claro quais são os reais motivos de alteração do status quo. Particularmente, não se explica por quê é que o FSGIP veria a sua supervisão reforçada, caso fosse a AGMVM a entidade responsável para o efeito”, lê-se na carta, que foi divulgada no site oficial da Presidência da República.
O diploma
A proposta de Lei em causa contempla a alteração do artigo 21.º da Lei n.º 65/IX/2019, de 14 de Agosto, que cria o Fundo Soberano de Garantia do Investimento Privado (FSGIP).
Aquando da criação, e tendo em conta que a actividade de concessão de garantias facultada pelo FSGIP é uma actividade financeira, previu-se que este fosse supervisionado pelo BCV. Entretanto, com a mudança recentemente votada no Parlamento, o FSGPI passa a ser supervisionado pela Auditoria Geral do Mercado de Valores Mobiliários (AGMVM), em vez do Banco Central.
O diploma da alteração, como cita a carta do PR, justifica que a mesma decorre da política do Governo “de reforma do Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Colectivo, que tem como principal objectivo proceder à sua actualização, no que toca ao papel e aos deveres dos agentes do mercado”, mas também “atribuir à AGMVM a competência para processar contra-ordenações” tal como previsto nesse Regime.
Nesse quadro é “reconhecida a mais-valia da AGMVM” em “reforçar a credibilidade das garantias a prestar pelo FSGIG”, diz.
Ora, no entendimento do PR, as razões apresentadas não sustentam a transferência da competência de supervisão do FSGIP, do BCV para a AGMVM.
Argumentação PR
Conforme justifica José Maria Neves, o BCV dispõe de competências legais de supervisão, nomeadamente em termos de matéria contra-ordenacional, iguais ou até superiores às que o governo pretende implementar. É ainda um órgão com experiência acumulada e expertise, “para além de dispor de muito mais recursos (humanos, materiais, tecnológicos, etc.) do que a AGMVM”.
O PR salienta também o facto de AGMVM, apesar da sua autonomia funcional e administrativa, funcionar na dependência do Governador do BCV.
“Ou seja, não goza do mesmo grau de independência que o BCV, para além de depender financeiramente desta instituição para poder funcionar”, explica.
O facto de o FSGIP ser alimentado com recursos “provenientes de contrapartidas de dívidas de terceiros” (TCMF) – o que no seu entender é uma “particularidade, eventualmente única no mundo” – reforça a sua posição, de que se deve manter a competência do BCV de supervisionar o FSGIP. Isto, pelas garantias que esta instituição dá relativamente à qualidade e rigor da supervisão das instituições financeiras” e também porque o BCV “está melhor posicionado para o acompanhamento da operacionalização de um instrumento financeiro tão complexo como é o FSGIP”.
Posto isto, eo PR partilhou as suas reservas com a Assembleia Nacional, devolvendo o diploma ao Parlamento, “na expectativa de uma melhor análise e ponderação”.
Reacções dos partidos
A decisão do Presidente da República foi recebida de forma diferente pelos partidos. Embora com posições diversas, as três forças políticas com assento parlamentar encaram com maior ou menor “normalidade” o processo, conforme declarações à RCV.
Na arena “social”, as posições divergem. Na mesma peça da RCV, Avelino Bonifácio considera também o BCV como o “fiscalizador” natural do fundo.
“Sendo o FSGIP uma instituição que faz parte do sistema financeiro nacional”, para o economista “é natural que esteja sob a supervisão do BCV “, situação que já “estava prevista no diploma da criação do Trust Fund”.
Observando que os motivos da alteração não foram “aparentemente” esclarecidos de forma convincente, Bonifácio recorda que a lei vai retornar ao parlamento o que poderá indicar um possível veto político, caso o diploma não seja reapreciado. Contudo, como relembra também, o veto não é definitivo uma vez que, vetado, o documento regressará ao parlamento. Se novamente for confirmada a alteração, ela irá ocorrer.
Entretanto, e apesar dessa possibilidade de devolução e veto estar aventada nos poderes do PR, pela Constituição, para Adalberto Silva (Betú) trata-se aqui de ingerência do Presidente em matéria que é exclusiva do Executivo, sob resposta positiva do parlamento.
O economista, em post publicado no seu Facebook acusa assim José Maria Neves de estar “a querer dar cartas até nas Medidas de Política/Administração do país”.
O antigo deputado lembra que, de acordo com a constituição, “quem define, dirige e executa a política geral do país é o Governo”, e este responde politicamente perante a Assembleia Nacional. Assim, caberá ao PR é garantir o cumprimento daquilo que são as funções estipuladas pela Magna Carta.
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Breve historial do FSGPI
Em 2019, foi extinto o Trust Fund, tendo os seus recursos sido divididos entre dois fundos então criados: o Fundo Nacional de Emergência (10 milhões) e pelo FSGIP (90 milhões de euros). Estes fundos têm, assim explica José Maria Neves, “uma particularidade, eventualmente única no mundo: os seus recursos são provenientes de contrapartidas de dívidas de terceiros. Ou seja, foram os recursos do Trust Fund (activos) cujas contrapartidas (passivos) eram os TCMF detidos pelo BCA e BCV que foram transferidos” para os novos fundos.
Há cerca de um ano, entretanto, clarificava o governo que os recursos do Trust Fund não eram “propriedade do BCA ou do BCV, ou de qualquer outro detentor de TCMFs”. Ademais, “as Leis que criam o Trust Fund, os TCMFs e o FEED não determinam que a recompra de TCMFs seria feita com recurso ao activo líquido do Trust Fund”.
Quanto ao FSGPI, o fundo tem um capital inicial de 90 milhões de euros a que se somam 10 milhões de euros de fundo de garantia parcial.
O FSGPI foi criado com o objectivo de facilitar o acesso ao financiamento externo às empresas cabo-verdianas, com dificuldades em encontrar financiamento junto da banca comercial, permitindo-lhes acesso ao mercado externo bancário e de capitais para financiarem investimentos de maior envergadura.
No passado dia 26 de Novembro o Parlamento aprovou a proposta de lei, agora devolvida à Assembleia, que procedia à primeira alteração à Lei nº65/IX/2019 de 14 de Agosto que cria o FSGIP. O diploma foi aprovado com votos a favor do MpD e da UCID. O PAICV votou contra.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1053 de 2 de Fevereiro de 2022.