O governo declarou há dias a situação de calamidade para o sector agrícola. Quais foram as motivações?
Primeiramente para cumprir uma formalidade, porque o governo na altura da avaliação do ano agrícola, em Outubro, disse que a situação não era boa em termos de pluviometria e da distribuição das chuvas. Mas, acima de tudo, que a produção não correspondia àquilo que consideramos normal. Ou seja, a produção estava muito abaixo do normal no que respeita à produção forrageira, à situação do milho e feijão e também por causa da água, da recarga dos lençóis freáticos. É evidente que a situação é bastante diferente de concelho para concelho, mas de um modo geral podemos afirmar que as ilhas do Norte – Santo Antão e São Nicolau – estiveram muito aquém daquilo que costumamos ver nos anos normais. No Sul do Fogo, boa parte do Maio, mas, acima de tudo, o sul de Santiago sofreram bastante com a falta de chuva e a sua irregularidade, o que levou a uma fraca produção forrageira e criou problemas para os criadores de gado.
O que é que o governo prevê fazer agora?
Na altura, o governo aprovou um programa de mitigação com um orçamento muito concreto e prevendo que uma boa parte destes recursos sairiam do Fundo Nacional de Emergência. E a nível do sector entendemos que a aprovação do plano, pelo Conselho de Ministros, seria necessária para que o Fundo Nacional de Emergência considerasse esta opção. Mas há formalidades. O Conselho de Administração do Fundo entende que é necessário cumprir em rigor a lei, o que significa que o plano em si não chegava e que era necessário fazer uma declaração de calamidade para que nós pudéssemos aceder aos recursos do Fundo para financiar o programa de emergência.
Este financiamento vai-se traduzir, na prática, em quê?
Com a declaração de calamidade vamos poder assinar um protocolo em que o Fundo Nacional de Emergência transfere recursos para o Ministério da Agricultura para que possamos aplicar nos projectos e intervenções que têm a ver com a mitigação da seca. Eu quero deixar claro que a declaração de calamidade não deixa de ser uma formalidade que está na lei para que se possa aceder ao Fundo Nacional de Emergência e esse fundo vai disponibilizar recursos para que possamos executar o programa que foi aprovado no último trimestre de 2021. A situação de calamidade não é nova. O governo não vem hoje dizer que temos uma grande calamidade no sector agrário, porque houve uma situação nova. Isto vem na decorrência daquilo que já se sabia: a baixa produção agrícola e a baixa pluviometria no país. Que intervenções financiar? Vamos receber 145 mil contos do Fundo Nacional de Emergência e deste valor cerca de 120 mil contos vão para o financiamento de obras que permitem o emprego público nos municípios intervencionados e 25 mil contos vão para a bonificação da ração para os criadores de gado. O resto, o plano de mitigação tem outras actividades designadamente no sector da água, vai ser financiado no quadro dos projectos existentes nestes sectores e que são coordenados pelo Ministério da Agricultura e Ambiente. Portanto, as intervenções para mitigação do mau ano agrícola são financiadas por duas fontes: o Fundo Nacional de Emergência e os projectos concretos que temos no sector da água e que estão inscritos no Orçamento do Estado.
A situação dos agricultores não é fácil. Estes apoios vão traduzir-se em quê? Como é que os agricultores lhes vão poder aceder?
Nós vamos fazer as intervenções que permitem que o agricultor, e aqui temos de dividir entre agricultor como aquele que cultiva e o criador de gado. O criador de gado vai receber apoios concretos em forma de bonificação da ração que vai adquirir e, eventualmente, da palha que poderá comprar para alimentar o gado. E obterá também facilidades por parte do ministério e das câmaras que colaboram com o ministério no sentido de se resolver a questão da água. Nos anos anteriores trabalhamos bastante na recuperação e construção de bebedouros e agora temos muito menos para fazer nesse sentido. Por isso devemos é assegurar a distribuição da água para que os criadores possam assegurar que os animais têm acesso à água. No que respeita aos agricultores, eles vão beneficiar de programas que temos em curso para a melhoria da distribuição da água, temos um programa de incentivo à instalação de rega gota a gota em que o Estado comparticipa em 50% dos investimentos que cada agricultor queira fazer neste domínio. E há outros incentivos que não têm a ver especificamente com a mitigação do mau ano agrícola e que decorrem da política do ministério e do governo. Estou a referir-me às energias renováveis em que temos isenções na importação dos equipamentos, estamos a falar do registo dos solos em que são isentos praticamente todos os procedimentos inerentes ao aumento da segurança jurídica e à propriedade agrícola. Mas falamos também de incentivos financeiros, vamos lançar o programa de retoma ao sector privado em que o sector agrícola vai beneficiar de 300 mil contos só em 2022. Devo dizer aqui que é um programa jamais visto, tendo em conta que o Estado entra com 10% a fundo perdido e o restante o empreendedor agrícola vai pagar, mas de forma bastante proveitosa, na medida em que tem uma taxa de juro que no máximo será de 3,5% ao ano. Isto é algo jamais visto. Por exemplo, as instituições de microcrédito praticam taxas de juro que vão de 1 a 2% ao mês, o que se traduz em 12 a 24% ao ano. 3,5% é uma grande vantagem para os empreendedores agrícolas. Sem contar com um período de carência razoável e garantia da parte do Estado que vai até 80% dependendo da qualidade dos projectos. Isto significa que para o sector privado, a nível agrícola e agro-pecuário e de transformação dos produtos agrícolas há, agora, uma boa oportunidade para agregar valor aos produtos, produzir mais e obter mais rendimentos e também atrair mais os jovens para este sector no domínio das tecnologias onde há muita coisa a fazer.
Fala-se muito na industrialização da agricultura nacional, de transformar a agricultura de um sector de subsistência para um sector capaz de abastecer cadeias de hotéis. Que passo é que falta dar para que isto aconteça?
O programa do governo fala da transformação da agricultura, mas não fala da industrialização. Porque há uma diferença muito grande. Nós temos uma estrutura agrária formada por pequenos agricultores com pequenas parcelas. Provavelmente não vamos poder transformar esta estrutura, os agricultores continuarão com as mesmas parcelas que têm. Agora o que nós estamos a promover é a organização dos agricultores no sentido de criarem cooperativas e empresas agrícolas em que ganham escala e organizem a sua produção e isso visa um maior rendimento e um emprego de maior qualidade. Isto está a acontecer todos os dias, só que a percepção que se tem melhor é quando realizamos ou inauguramos grandes obras. Mas há coisas que não são inauguráveis, mas as pessoas vão melhorando os seus rendimentos e a sua forma de trabalhar, que é o que se pretende e só se consegue a cada dia com medidas, que vêm do agricultor e do Estado a incentivar, para obter resultados a médio e longo prazo. Aqui o que interessa é a política pública, é a direcção que estamos a seguir e os resultados vão sendo conseguidos gradualmente caso a caso. Não se pode dizer que não se está a conseguir. Estamos a verificar que há mais jovens na agricultura, não é verdade que o agricultor não ganha, que é só sobrevivência e subsistência. Há cada vez mais agricultores que estão a obter rendimentos do seu trabalho e isto não decorre, para ser justo, da política exclusiva deste governo. É o trabalho dos sucessivos governos. O que nós dizemos muito claramente é que não estamos aqui para financiar o assistencialismo, mas sim medidas que contribuem efectivamente para uma actividade económica que é a agricultura. A agricultura não é uma actividade social, é uma actividade económica que precisa de ser vista como tal.
A agricultura depende de água e o governo apostou na dessalinização de água para a produção agrícola. Em que fase estamos?
O governo está a apostar na diversificação das formas de mobilização de água para a agricultura e está também a fazer uma forte aposta na governança desse sector da água para a agricultura. Dentro daquilo que chamamos a diversificação das formas de mobilização de água o governo apostou na dessalinização de águas salobras e na reutilização das águas residuais tratadas. Já temos algumas unidades a funcionar, são unidades piloto que fornecem muita informação para a massificação e estamos, dentro do quadro do acordo de crédito assinado com a Hungria no valor de 35 milhões de euros, na fase de conclusão dos estudos técnicos que permitem realizar as obras no terreno. E quando falo de obras físicas estou a referir-me à instalação das dessalinizadoras, das condutas, dos reservatórios. No que respeita às águas residuais tratadas também estamos a trabalhar nos estudos técnicos para que possamos valorizar de forma segura a água de esgoto que chega às estações de tratamento de águas residuais (ETAR) e vai também no mesmo sentido de conseguir a melhor água, fazer a bombagem para reservatórios maiores em zonas a montante e de lá fazer a distribuição para as parcelas de agricultura. Mas aqui o desafio é bem maior tendo em consideração que a localização das ETAR fica muito a jusante o que faz com que tenhamos de investir na bombagem da água tratada. É um projecto de três anos e agora, com os estudos técnicos realizados, vamos acelerar os investimentos e obter os resultados. Devo aqui sublinhar que com todas estas medidas estamos aqui a prever a mobilização de 3,15 milhões de metros cúbicos de água por dia e importa dizer que se trata de uma água que não depende muito das chuvas, porque estamos a falar do reaproveitamento de água já utilizada e das águas salobras que estão disponíveis e que poderão ser exploradas com alguma cautela e servir para a agricultura.
Falava há pouco de projectos agrícolas e da mudança de paradigma no sector da agricultura. Como vê o surgimento de projectos agrícolas privados de produção com o objectivo de fornecer hotéis como aquele que está anunciado para Santiago e Santo Antão?
São iniciativas que o governo saúda como saúda todas as iniciativas privadas que visam o aumento do rendimento, porque com isto vamos ter mais alimentos disponíveis e, com isto, vamos conseguir aumentar empregos no campo. O que o governo vai fazer é ajudar no sentido, não só dos incentivos, mas de aplicar e organizar toda a cadeia de valor dos vários produtos que temos no sector agro-pecuário. Isto depende do financiamento que esses privados irão mobilizar, mas aqui o Estado faz apenas o que lhe cabe que é facilitar em tudo o que diz respeito a infraestruturas e investimentos e licenciamentos para que esses projectos possam realizar-se. Sabemos das dificuldades que os privados têm na mobilização de recursos, especialmente quando estamos a falar de grandes projectos. Alguns deles estão avançados neste processo de mobilização dos recursos e esperamos que consigam e possam realizar esses investimentos.
O primeiro-ministro falou há dias de insegurança alimentar. Quando falamos em insegurança alimentar falamos de quê?
É curioso que as pessoas confundem muito insegurança alimentar com fome. Insegurança alimentar é a situação que cada individuo ou família passa em não ter alimentação, em termos de qualidade e quantidade, suficiente para dizer que está bem alimentado. É uma situação de carência alimentar. E Cabo Verde desde sempre teve problemas de carências neste sentido. Daí que nós medimos todos os anos a vulnerabilidade alimentar das famílias para podermos traçar as nossas políticas. E nós temos, de facto, tido progressos consideráveis. Cabo Verde, sobretudo a partir dos últimos 25 anos do século passado, foi melhorando bastante não só em termos de indicadores, mas também em termos de governança da segurança alimentar. Em termos de indicadores posso dizer que a desnutrição diminuiu de 13,3% em 2009 para 11% em 2018, que a prevalência da anemia diminuiu de 53% em 2009 para 42% em 2018 e se olharmos ainda mais para trás, desde o período da independência até agora, só melhoramos praticamente em todos os indicadores. Isto é um processo longo, porque a segurança alimentar e nutricional é um tema muito transversal que integra várias políticas sectoriais. A segurança alimentar é o reflexo do desenvolvimento dos vários sectores que contribuem para a melhoria do bem-estar da população. Com a pandemia sentimos várias perturbações a nível internacional dos stocks de alimentos, do transporte marítimo internacional, da corrida aos stocks, houve crise petrolífera e isto teve influência nos preços e, portanto, houve alteração nos preços. Tudo isto faz com que alguns produtos sejam objecto de perturbações e oscilações em alta em termos de preços.
Que é o caso dos cereais.
Por exemplo. E esta oscilação faz com que os produtos fabricados a partir dos cereais também aumentem de preço. E esta situação não é só a nível dos produtos alimentares de primeira necessidade, nós vemos isso a nível dos factores de produção na totalidade da indústria. Há uma escalada de preços a que assistimos no mundo inteiro em relação a praticamente todos os produtos, incluindo os bens alimentares de primeira necessidade. O que fez o governo? Durante algum tempo introduzimos uma medida – que só pode ser pontual e muito excepcional – de manter o preço compensando os importadores. E o governo fez isso durante mais de um ano no caso do trigo e um pouco menos no caso do milho e lá conseguimos manter o equilíbrio durante algum tempo. Só que se trata de uma medida excepcional que deve ser descontinuada para deixar o mercado funcionar como manda a lei. Assim sendo, as pessoas vão sentindo, de facto, a retoma dos preços de mercado e o normal funcionamento do mercado. A pandemia veio perturbar o sistema alimentar em todo o mundo, incluindo Cabo Verde, mas com isto não podemos estar a dizer que pioramos em termos de indicadores de segurança alimentar e nutricional em Cabo Verde. Só podemos chegar a essa conclusão mediante estudo e brevemente nós vamos obter dados do último inquérito nacional da vulnerabilidade alimentar das famílias e, obtendo estes dados, vamos tirar as devidas ilações e obviamente introduzir medidas que possam ajudar a manter e alterar pela positiva o estado da situação. Como eu disse, estamos todos perante uma grande perturbação no mundo e isto não significa fome. Cabo Verde viveu situações de fome e mortandade, vendo dizimada uma boa parte da sua população há cerca de 70 anos, na fome de 47. Há muitas pessoas que vivenciaram isso e que estão vivas e certamente que os cabo-verdianos não acreditam, não concordam que estamos a viver essa situação. Há a declaração [do Primeiro-ministro] que leva alguns a dizer que estamos perante a fome. O que nós temos são declarações, aqui e acolá, que visam trazer alarmismo, fraccionar a opinião pública em termos de segurança alimentar e tirar dividendos políticos. Nós pensamos que é uma espécie de agressão para as pessoas que estão a passar por dificuldades. Ninguém que ser chamado de faminto e nós entendemos que quem está em melhores condições não tem o direito de estar a descrever desta forma as dificuldades por que passam as famílias.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1056 de 23 de Fevereiro de 2022.