Mulheres em tempos de guerra

PorSara Almeida,13 mar 2022 10:20

Mães, filhas, soldados, refugiadas, abusadas, resistentes… Numa guerra há muitas mulheres e muitos papéis. A guerra na Ucrânia veio mais uma vez mostrar o carácter sexuado dos conflitos armados, em que as mulheres são as principais vítimas, mas também agentes activos importantes, inclusive, cada vez mais, a nível militar.

Estima-se que o número de refugiados que fogem da guerra na Ucrânia chegue hoje, dia 9 de Março, aos 2 milhões. Um número que, embora comum em várias regiões do mundo, não se via na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, pelo menos em tão curto espaço de tempo.

Vão a pé, de carro, de comboio para os países fronteiriços, em particular a Polónia e a Roménia, e são essencialmente mulheres e crianças, até porque os homens ucranianos, entre os 18 e 60 anos são obrigados a ficar, para defender o território.

Anya é uma dessas mulheres, que enchem os noticiários ávidos de rostos humanos. O marido ficou na Ucrânia, para lutar, e ela chegou à Roménia sozinha, com um filho nos braços e outro por nascer – está grávida de oito meses.

E como ela, há imensas outras mães, que junto com os filhos chegam aos pontos de refugiados, num fluxo incessante que foge do conflito.

Essas mães foram aliás o tema escolhido para a mensagem do Papa Francisco relativa ao Dia Internacional da Mulher:

“Olhando para Maria com o Filho nos braços, penso nas jovens mães e nos seus filhos que fogem das guerras e da fome ou que esperam nos campos de refugiados. São tantos!”, escreveu Francisco, no Twitter, orando por concórdia no mundo.

Mulheres-mães

Se uns fogem da Ucrânia, muitos ficam e outros voltam. O El País conta a estória de Natalia Bialetska que emigrou para Espanha há cinco anos com duas filhas e um filho. O rapaz, de 23 anos, regressou agora à Ucrânia para defender o seu país natal. De vez em quando telefona, e cada vez que o aparelho toca, Natalia entra em sobressalto. Apesar do sentimento de solidariedade com a pátria, o medo de perder o filho é assolador. “Hoje voltei a pedir-lhe que volte” a Espanha, conta. Quere-o fora da guerra.

Todas as mães querem. E a preocupação, como em todas as guerras, não vem só do lado atacado. O lado “agressor” sofre igualmente. Também as mães russas imploram aos filhos que regressem. Muitos russos na frente de combate na verdade, como conta o Washignton Post, nem sabem porque aí estão e pelo que lutam. Assim, mulheres na linha da frente na Ucrânia instigam-nos a telefonar às suas mães e explicar-lhes por porque lutam. É o efeito humanizador e desmotivador, perpetrado por mulheres, como esforço de guerra. Neste caso de paz.

Mulheres-resistência

Enquanto umas partem da Ucrânia, outras ficam. Algumas, como Larysa, de 34 anos, que mora em Kyiv com o pai e a mãe. A mãe está em remissão de cancro, e deve ter acesso constante à sua medicação. Não podia partir. É preciso cuidar da família.

Outras ficam a ajudar as tropas, nos trabalhos de “bastidor” como tecer redes de camuflagem para esconder tanques e soldados ucranianos. Outra ainda cozinham e dão apoio não só aos soldados como a quem ficou para trás e precisa de apoio e tratam dos feridos.

Enfim, papéis que desde sempre as mulheres tiveram nos conflitos. Eles vão para a frente da batalha, elas ficam para trás cuidando de tudo, mantendo as famílias e as comunidades unidas, e, por vezes, fazendo o trabalho de retaguarda de apoio às tropas.

Não são vítimas. São suporte essencial.

Em guerras de grande escala e longas, como a Segunda Guerra Mundial, foram inclusive elas que mantiveram economias inteiras, substituindo os homens em todos os sectores anteriormente masculinos. Na altura, porém, ainda numa esfera privada. Ou então, em trabalhos de espionagem. De qualquer forma, longe do confronto violento.

Hoje na Ucrânia assiste-se a um fenómeno que era então, e ainda hoje, residual. Muitas mulheres estão a oferecer-se como voluntárias para a resistência armada à invasão russa e recebem, pela primeira vez na vida instrucção militar. Mulheres de todas as idades. Tornou-se viral, por exemplo, o vídeo de uma voluntária de 79 anos Valentyna Kostyantynovska a aprender a disparar uma Kalashnikov. Mas há muitas, muitas mais.

Mulheres-soldado

Os tempos mudam. Para além das voluntárias armadas, a Ucrânia conta hoje também com um significativo número de mulheres no seu exército. Desde 1993 que é permitido que integrem as tropas, mas foi em 2014 que, quando a Rússia anexou a Crimeia, que o seu número aumentou. Depois, em 2017 as forças armadas ucranianas permitiram que as mulheres se alistassem oficialmente em 62 posições de combate. Até então, muitas mulheres soldados formavam aquilo a que chamam um “batalhão invisível” - vital para o esforço de guerra do país, mas ignorado pela sua elite militar, conta o Wall Street Journal. Segundo esse jornal, as mulheres, um total de 32 mil, constituem agora cerca de 15% do pessoal militar. E muitas podem ir para as tais posições “da frente”.

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“Quando se abre o serviço militar às mulheres, é como dizer que os tempos são realmente desesperados: Até as mulheres têm de lutar”, disse, também ao WSJ, Jenny Mathers, professora sénior da Universidade de Aberystwyth, no País de Gales, que estuda o género e a guerra. “Isso é uma mudança psicológica e simbólica”.

Foi o que aconteceu já em 2014 pela fragilidade das forças ucranianas face à Rússia. E basta ver o cenário mundial e a história da guerra para perceber as palavras da investigadora.

Mulheres combatentes sempre houve, mas também sempre foram uma minoria e/ou último recurso, pois as guerras são entendidas como um espaço masculino (aliás, próprio de uma cultura patriarcal).

E mesmo hoje, apesar de uma maior presença feminina nos campos de batalha, estas continuam não só em muito menor número como são excluídas dos cargos mais altos dos exércitos. Mesmo que, por exemplo, nos EUA, as oficiais mulheres tenham passado de 9,8% em 1980, para 16,3%.

Ademais, há ainda muitos países em que postos na linha da frente de conflitos estão vedados às mulheres. Isso acontece mesmo em Israel onde o serviço militar é obrigatório também para elas. Lembra ainda o Politike que emboras as mulheres integrem batalhões de combate no país [mas não na linha da frente], elas são dispensadas de todos os serviços após se casarem ou se tornarem mães.

Nas nações que permitem essa integração na linha da frente, o número de soldados do sexo feminino em tais cargos tende a ser pequeno. No caso do Canadá, por exemplo, apenas 310 mulheres foram mobilizadas para o Afeganistão em postos de combate entre 2001 e 2011, ou 8,3% dos soldados canadianos, de acordo com um artigo do Politike.

As mulheres são, portanto, outsiders nas forças armadas e na guerra, em todo o mundo.

Mas estudos mostram também diferenças a ter em conta, em relação aos homens: Oficiais mulheres com filhos pequenos registam níveis significativos de ansiedade no período que antecede a partida para missões. Tal é devido à pressão para preparar o que é necessário para filhos, parceiros e parentes, até ao seu regresso.

Mulheres-políticas

No parlamento ucraniano, as mulheres ocupam 21% dos assentos e o país tem dado passos significativos em todas as dimensões de equidade de género.

E também as mulheres na política também têm saltado para a “linha da frente”, motivando as suas compatriotas. Num país (de cerca de 44 milhões) onde, de acordo com a primeira-dama, Olena Zelenska, há mais dois milhões de mulheres do que de homens, esta tem elogiado as mulheres, incentivando-as a continuar a resistência à invasão.

“A nossa actual oposição tem um rosto particularmente feminino”, escreveu a primeira-dama, nas redes sociais. Palavras acompanhadas de imagens de mulheres ucranianas activas no conflito.

Também as publicaçõesda deputada Kira Rudik se tornaram famosas. Numa delas, vê-se a deputada, em Kiev, trabalhando no seu escritório com uma Kalashnikov ao lado. Kira diz ter aprendido a usar a arma logo após a invasão russa. Em outras postagens, tem incentivado directamente as mulheres a lutarem como os homens.

Mulheres-violentadas

Quando se fala de mulheres em zonas de conflito, há uma barbárie que tem acontecido desde sempre, em todo o mundo: os crimes sexuais.

Até agora nada foi confirmado independentemente na Ucrânia, mas há já denúncias de violação de ucranianas por soldados russos nas cidades ocupadas. Foi o próprio ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, quem o denunciou no passado 5 de Março durante um encontro virtual internacional.

Como referido, apesar desta informação carecer de verificação, os crimes sexuais são usados como táctica de guerra, sistematicamente.

Recorde-se, por exemplo, o Nobel da Paz em 2018, atribuído a dois activistas contra a violência sexual como arma de guerra, pela importância de se falar deste tema.

Um dos galardoados foi o médico congolês Denis Mukwege, que dedicou a sua vida a reparar e tratar os danos físicos de milhares de mulheres que foram brutalmente violadas pelos grupos armados na República Democrática do Congo, e a denunciar esses factos. Foram mais de 300 mil as mulheres que passaram pela sua clínica e o seu trabalho e acção humanitária são reconhecidos em todo o mundo.

A outra galardoada foi Nadia Murad, ex-escrava sexual do Estado Islâmico no Iraque. Nadia foi uma das mulheres da minoria yazidi a ser escravizada pelo EI, situação a que conseguiu fugir ao fim de três meses, em 2014. Desde então tornou-se activista pelos direitos da sua minoria. Estima-se que 3 mil mulheres yazidis tenham sido vítimas de violação e outros abusos por parte dos extremistas no Iraque.

Por todo o mundo as informações, mesmo sem números ou estimativas, são arrepiantes. Em Myanmar, por exemplo, as violações são sistematicamente utilizadas pelos envolvidos em conflitos étnico-religiosos no estado de Rakhine e Shan.

Em 2011, durante o conflito da Líbia que depôs Khadafi, houve acusações de que facção do coronel estava inclusive a distribuir preservativos e Viagra entre os seus soldados para que estes “saíssem e violassem”, como confirmou na altura, Susan Rice, embaixadora dos EUA na ONU.

Há relatos de campos de violação, campos de prisioneiros onde as mulheres eram sistematicamente violadas, na Bósnia-Herzegovina (1992 -95). Terá havido milhares de vítimas.

Na Guerra da Independên­cia de Bangladesh (1971), em apenas nove meses, foram violadas entre 200.000 e 400.000 mulheres.

Estes são apenas alguns exemplos de uma longa história mundial de vítimas de violações como arma de guerra.

Mulher-objecto

Voltando à Ucrânia. Em relação a outros conflitos armados, o risco que as mulheres ucranianas agora correm não parece ser tão dramático como que decorrem neste momento, em outras partes, mas que estão menos mediatizados. Há menos probabilidades de serem mortas, há corredores humanitários que tentam ser criados, há, do outro lado da fronteira, alguma organização e apoio que não se encontra em muitas regiões do mundo. Porém, isso não significa que estas mulheres não estejam também numa situação de imensa vulnerabilidade, que merece atenção, por exemplo, a nível eventuais agressões sexuais, e também de tráfico humano.

Já se sabe como os conflitos potenciam essa problemática e os relatos de bandos de criminosos que se aproveitam da vulnerabilidade das ucranianas começam a surgir. Há relatos de mulheres e famílias que aceitam transporte aparentemente “gratuito” para outros países, e são confrontadas, depois, com a necessidade de o pagarem com serviços.

Há também outra objectificação que as mulheres ucranianas têm sofrido às mãos das tropas russas. À medida que a invasão avança, há relatos de soldados russos, que usam a aplicação de encontros online Tinder, para encontrar mulher da terra invadida. Parece haver uma dissonância cognitiva em que por um lado os tropas estão conscientes da ameaça que representam, mas não têm empatia para com o que essas cidadãs ucranianas estão a passar.

O Pornhub, um dos maiores sites de pornografia do mundo, apresenta nas suas Tendências de Pesquisa palavras relacionadas com o conflito, conta o Mainecampus. “Moscovo” surge como tag que envolve a dominação masculina de uma força agressora. O lado feminino leva geralmente um termo degradante.

São vídeos, continua a notícia do site americano, que “transmitem exactamente aquilo a que se destinam; a ideia de que não só explorar indivíduos vulneráveis é aceitável, mas também capitalizar as dificuldades desses indivíduos para obter gratificação sexual é algo a ser desejado”.

Mães, filhas, soldados, refugiadas, abusadas, resistentes. Há muitos e complexos papéis da Mulher nas guerras… 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1058 de 9 de Março de 2022. 

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Autoria:Sara Almeida,13 mar 2022 10:20

Editado porAntónio Monteiro  em  27 nov 2022 23:27

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