Começou o seu mandato há cerca de meio ano (Maio 2023). Quais as áreas que estabeleceu como prioridades?
O meu mandato é, na verdade, o mandato das Nações Unidas aqui em Cabo Verde. É avançar com o desenvolvimento sustentável do país. As Nações Unidas fizeram a avaliação do quadro de cooperação de 2018-2022, o UNDAF, e os resultados dessa avaliação enformaram o quadro de cooperação actual (2023-2027), que se iniciou este ano, e que contempla três pilares. O primeiro, são as pessoas, é o desenvolvimento com rosto humano e inclui a educação, saúde, protecção social, com um olhar muito específico nos grupos mais vulneráveis, porque a agenda de ‘não deixar ninguém para trás’ está mais forte do que nunca. Temos sete anos para acelerar, para realmente tentar incluir as pessoas que estão a ficar para trás em Cabo Verde e no mundo todo. O segundo pilar tem a ver com o desenvolvimento económico sustentável e contempla dois subprodutos: um direccionado especificamente para a diversificação da economia e outro focado no tema das mudanças climáticas, ou seja, o tema ambiental. É de notar que o tema ambiental perpassa os três pilares, é absolutamente transversal, mas foi definido mais detalhadamente para ter um resultado específico nessa área. O terceiro pilar tem a ver com o apoio ao país para reforçar os aspectos de governança e coesão territorial. Um forte aspecto aqui é a redução das assimetrias regionais – o que também tem a ver com o princípio de ‘não deixar ninguém para trás’, nem deixar nenhuma região para trás. Então, esses são os três pilares macro para os cinco anos de quadro de cooperação. Gostaria de destacar o processo como o plano de cooperação foi construído, que foi muito particular e hoje é uma referência em vários países. Não só foi muito participativo, como foi forward looking [orientado para o futuro], definindo claramente o que queremos alcançar até 2030. Fez-se um exercício, que muitos escritórios estão adoptando, que é o foresight [visão de longo prazo] e esse processo contou com a participação da sociedade civil, do sector privado e do governo, abrangendo de forma abrangente diversos sectores da sociedade. E um aspecto interessante é que, ao mesmo tempo, o país desenvolveu o PEDS 2.
Que está alinhado.
Super alinhado. Deixou-me muito feliz, quando fui nomeada para Cabo Verde, ver que o PEDS 2 está absolutamente alinhado com os ODS. Cabo Verde, além de ter uma visão muito clara para o desenvolvimento, tem uma visão absolutamente alinhada com a Agenda 2030, construída pela sociedade como um todo, sob a liderança do governo, e aqui das agências das Nações Unidas. Outro destaque é o aumento de agências da ONU cooperando com o país. Antes eram 15 agências, fundos e programas. Hoje estamos com 19, algumas das quais, tradicionalmente, não tinham uma colaboração próxima com Cabo Verde. Então, além de Cabo Verde ter um programa, claro, super alinhado com os ODS e a Agenda 2030, reforçou também a capacidade das Nações Unidas no país. O programa de cooperação actual, prevê 115 milhões de dólares, como meta de financiamento. Anualmente, desenvolve-se um plano operacional de trabalho e no início de 2023 foi feito um planeamento de 17 milhões de dólares, dos quais conseguimos mobilizar e implementar 14.3 milhões. É importante lembrar que a nossa contribuição não é um empréstimo, é uma doação (grant). Fizemos um balanço e agradecemos a todos os doadores que acompanham as Nações Unidas nesse trabalho, fortalecendo o multilateralismo no país.
Falando do clima. O que é que acha que esta COP28 trouxe para os SIDS e para Cabo Verde em particular?
[NR: entrevista foi realizada antes do término da COP] As negociações ainda estão a decorrer, então ainda é prematuro falar, mas penso que começou muito bem, com a aprovação do Fundo de perdas e danos - foi uma mensagem inicial bonita e também o facto do GEF repensar como poderia apoiar ainda mais o país. Então, começou com financiamento, uma questão-chave. Negociações estão a ainda decorrer, mas como destacou o secretário-geral, o mais importante é o compromisso de manter em 1,5 graus o aquecimento global e reafirmar a necessidade absoluta de reduzir a emissão dos gases de efeito estufa, dos combustíveis fósseis. Esse compromisso dos países através dos seus planos nacionais é crucial e Cabo Verde tem um plano nacional das contribuições muito claro, mas nem todos os países o têm ainda. Outra grande área é a justiça climática, olhar para os países e pessoas mais impactados e vulneráveis às mudanças climáticas. São áreas interconectadas pois o compromisso demandará fundos para a transição de combustíveis fósseis para energias renováveis, uma meta crítica. E Cabo Verde tem uma meta para isso.
E quanto ao financiamento climático, de que forma a ONU tem prestado apoio no acesso ao mesmo?
O sistema das Nações Unidas como um todo, e muito especificamente o PNUD, a FAO e a UNIDO, apoiam o país a aceder a esses mecanismos de financiamento. Trabalhamos com as instituições nacionais, sobretudo com o governo para garantir o acesso, mas também, directamente, com as ONGs, a sociedade civil na área de ambiente. Temos o GEF Small Grants Project, específico para programas relativos ao clima. Temos a advocacia global que reforçamos e que Cabo Verde, como Estado Membro, também reforça.
Mas Cabo Verde tem conseguido aproveitar as oportunidades de financiamento?
Tem, mas precisa de haver mais disponibilidade de fundos a nível global porque são necessários muitos recursos para fazer, por exemplo, a transição energética no país. São preciso volumes grandes para fazer os investimentos ambiciosos, necessários para enfrentar os efeitos da mudança climática. Cabo Verde, como outros SIDS e outros países em desenvolvimento, contribui com 0,2% [das emissões globais] e sofre um impacto grande. Fui a Santo Antão, e no Paul há casas afectadas nas comunidades costeiras. Ou seja, o impacto está a acontecer. O tempo é agora.
Mas é preciso o país ter mais proactividade ou são os fundos que não são suficientes?
Precisa de mais fundos. É preciso não esquecer que Cabo Verde é um país de renda média. Baixa, mas renda média, o que, na lógica actual [traz limitações]. Esse paradigma precisa de ser mudado e o índice de vulnerabilidade vai ser fundamental para tal. A lógica do rendimento per capita, já não funciona há algum tempo já que essa abordagem não reflecte de maneira adequada a realidade. Como tem dito o secretário-geral, não é a melhor forma de distribuir os recursos globalmente. É o que chama de climate justice, assegurar que os recursos venham para quem precisa e sejam recursos concessionais, acessíveis aos países. Estamos a sair de crises complicadas e vivendo conflitos importantes, pelo que a arquitectura global também muda. Então, o secretário-geral tem falado, e falou nesta COP, que é importante esse pacto solidário para o clima, de que países como Cabo Verde irão beneficiar.
No meio desses conflitos e crises, a ONU ainda tem a pujança mundial que tinha? Há quem fale que é um declínio da ONU...
Acho que o multilateralismo nunca foi tão importante. Celebramos 75 anos de direitos humanos e a carta dos DH nunca esteve tão viva e válida. Nunca foi tão importante para lembrarmos a nossa humanidade, que somos da mesma raça humana. Vendo as discussões da COP, por exemplo, fica muito marcada a necessidade de ter esses organismos multilaterais, a ONU e outros, justamente para mediar esses acordos, para que seja feita justiça. Embora as instituições sejam questionadas, é claro para mim que, mais do que nunca, o multilateralismo das Nações Unidas e de outras organizações ao redor do mundo, especialmente na África e Europa, está se fortalecendo. Elas servem são os pontos de convergência, a mesa de diálogo, onde todas as partes são reunidas. Se não fossem as Nações Unidas ou outros organismos multilaterais, quem faria a negociação?
Falou do Índice de Vulnerabilidade Multidi–mensional. Em que ponto está e quais as expectativas?
Está ainda em discussão. Acredito que vai ser muito bom, sobretudo, para demonstrar a vulnerabilidade de países, especialmente dos SIDS. Essa é uma agenda forte para os SIDS, pois a ideia por trás desses índices é facilitar o acesso a financiamentos concessionais e outros tipos de financiamento de maneira mais ágil e demonstrando as suas necessidades. Cabo Verde, por exemplo, tem um espaço fiscal extremamente limitado, é necessário trazer mais recursos para investir em montantes significativos para os investimentos estruturais e estruturantes para que o país realmente possa dar o próximo passo em relação ao desenvolvimento, lidando com a realidade climática no dia a dia, criando a resiliência necessária, do ponto de vista económico, social e ambiental.
É esse o tripé - desenvolvimento económico, social e ambiental que é preciso fortalecer e onde é preciso aumentar os investimentos para que o país possa dar o próximo passo de desenvolvimento.
Mas não há expectativa de quando o MVI estará concluído?
Não sabemos. Está em está em negociação, mas vamos ter em Maio, em Antígua e Barbuda, [a 4.ª Conferência sobre SIDS] e esta será uma grande agenda que vai ser discutida.
Ainda muito ligado ao ambiente: a insegurança alimentar. Sabemos que a FAO tem apoiado nesta problemática, mas de uma forma mais geral, como tem sido o apoio das NU?
Tanto a FAO como o PAM, o WFPI, como outras agências também que trabalham com a erradicação da pobreza, directa e indirectamente, têm trabalhado nesse tema da segurança alimentar. A FAO assinou este ano um novo marco de cooperação com o país, que tem um volume de 38 milhões de dólares para ser investido em programas de agricultura. Na perspectiva de complementar os mandatos das Nações Unidas, na área de agricultura, tenho visto programas muito interessantes. Vemos, por exemplo, o UNIDO, que trabalha com a indústria, a apoiar na transição energética, utilizando a energia fotovoltaica para trazer água - e aí entra também a FAO, sempre em parceria com o Ministério de Agricultura e Ambiente, do governo local, dos municípios, das associações locais…. Estive em Porto Novo, e fiquei impressionada com a irrigação gota a gota. Uma resposta para o tema da segurança alimentar é ter novas tecnologias. Não precisa ser super high-tech. Painel solar e gota a gota são soluções que já existem, que precisam ser implementadas para fortalecer a produtividade agrícola e da pecuária no país.
Mas esses pequenos projectos continuam a ser agricultura de subsistência.
No âmbito da agricultura, mas também na pesca, há uma pesca artesanal e uma agricultura familiar que continua e que tem que ser fortalecida, mas trabalhamos nas duas perspectivas. Trabalhamos também na agro-indústria, o processamento, o agregar valor à produção agrícola ou pecuária, para que sejam feitos maiores rendimentos. Sabemos, porém, que há no país, a questão da conectividade entre as ilhas. Vimos, por exemplo, a fazenda de camarão, em São Vicente, um programa que foi apoiado pelo UNIDO, mas está com apenas 40% da produção de camarões. Tem capacidade de produzir muito mais, mas tem que poder escoar a produção. Então, tem que se pensar os food systems… Há seis transições para os ODS definidas pelos “super-experts” e todas dizem muito a Cabo Verde. A primeira transição são, precisamente, os food systems. É pensar a produção de comida de uma maneira mais alargada, mais justa e mais sustentável, ou seja, amiga do ambiente. Isso existe em Cabo Verde. Visitei, no Fogo, um programa da FAO com o Ministério da Agricultura e Ambiente no qual se que criam uns bichinhos que comem as pragas do milho. Entendi, quando cheguei, como a sociedade cabo-verdiana, os líderes políticos e o sector privado tratam as Nações Unidas, porque estas sempre estiveram de mãos dadas com este país. E continuam. Então, esse exemplo que dei, é uma agricultura amiga do ambiente, ajudando o agricultor. Para mim, isso são novas tecnologias. Novas tecnologias, não é só high-tech.
E as outras transições?
A segunda é energia limpa e acessível. A terceira é a transição digital, garantir a conectividade digital e também aqui há um foco específico na transição digital, na visão que o governo e a sociedade têm, claramente. A quarta é a educação, assegurar uma educação de qualidade, e aqui temos em Cabo Verde um desafio crítico que é garantir que os adolescentes terminem o ensino secundário e garantir que tenham acesso a uma formação profissional. Outra transição é o trabalho decente, digno, e a protecção social. A sexta, são as mudanças climáticas e a preservação da biodiversidade e, em muitos países, poluição. São essas transições, que são chamadas os aceleradores e que estão em sintonia com as propostas de Cabo Verde.
Uma crítica na economia azul e economia verde, mas também na transição digital, é que se fala muito e faz-se pouco.
Acho que todos nós estamos num momento em que queremos acelerar e penso que Cabo Verde, o que se sente, é essa necessidade, porque as pessoas têm pressa. Agora, acho que o país tem marcos muito claros de desenvolvimento e políticas muito claras e a implementação está a acontecer. Pode-se questionar o ritmo, mas está a acontecer. Mas é importante frisar que o contexto global não tem favorecido os países que têm feito mais esforços e é o caso de Cabo Verde. O contexto não ajuda. O país tem uma meta e uma visão clara, sabe o que quer fazer, precisa é dos meios para a implementação. É aquilo que se falou na COP: fundo de perdas e danos, rever como vai ser o GEF.... Garantir que o dinheiro destinado aos países chegue efectivamente e seja operacionalizado é um desafio significativo. Quando o país prioriza o capital humano, a erradicação da pobreza e aumenta os investimentos em protecção social, são medidas concretas para ampliar essas acções, como evidenciado no orçamento de 2024. Agora, sabemos que precisa ser feito mais. Sempre digo, precisamos fazer, de uma maneira geral, em todas as partes, mais, melhor e mais rápido. Eu acho que o desafio é esse.
Passando para a área social - igualdade de género, saúde, justiça, educação ... há algum projecto em curso que destacaria?
Vários. Fizemos um balanço e foi bom ver onde estamos. Então, por exemplo, há todo o trabalho que estamos a fazer para apoiar a erradicação da pobreza, e aí temos, sobretudo, a OIT e o PNUD a trabalhar muito forte com o governo, o Banco Mundial, e outros parceiros como a União Europeia e a Cooperação Portuguesa. Penso que fortalecer esse trabalho, especialmente a nível descentralizado nos municípios, é fundamental para alcançar a meta do governo de erradicar a pobreza extrema até 2026. Estamos, pois, muito próximos do governo na implementação da Estratégia Nacional de Erradicação da Pobreza (ENEP). Também é importante reconhecer os avanços do país na área social, por exemplo na saúde. O país está em processo de conseguir o certificado de eliminação da malária, o que é um passo enorme, primeiro, para a saúde das pessoas que vivem no país e os que o visitam. Isso será um impulso também importante para o turismo. Quando olhamos os ODS, em saúde e educação, vemos avanços impressionantes, ao longo da história. O facto de atingir zero casos autóctones de malária é digno de valorização, considerando o contexto africano. A inclusão de crianças com necessidades especiais nas escolas também é um destaque positivo, com 80% da meta atingida em 2023.
Falando em crianças. Trabalhou muitos anos na UNICEF, como vê a situação da criança em Cabo Verde?
A criança tem um grande desafio que é o tema da violência. Referi-o nos “16 dias de activismo contra a violência contra mulheres e meninas” e no aniversário da Declaração dos Direitos Humanos que um dos desafios de Cabo Verde é definitivamente o tema da violência contra mulheres e também contra crianças. Para mim, os índices de violência não condizem com o nível de desenvolvimento de Cabo Verde, apesar de sabermos que violência e desenvolvimento não estão necessariamente interconectados. Mas, o facto é que precisamos dar respostas como sociedade, uma mudança de comportamento social e pessoal. Não se pode naturalizar a violência, muito menos a violência contra mulheres e contra crianças. Para mim, é um tema crítico. Outro tema crítico, que já abordei, é garantir todos os meios para a conclusão da educação secundária. Criar um ambiente protector na família, nas comunidades, nas escolas para que ela se estimule a continuar e ter sucesso escolar. E para os jovens, criar oportunidades, tanto de treinamento vocacional, como de trabalho decente. Temos dez agências a trabalhar com jovens aqui em Cabo Verde, que é um segmento da população que precisa de uma atenção muito especial.
E como é coordenação entre as agências?
Cada vez mais forte, cada vez mais sólida. A própria reforma das Nações Unidas é sobre como complementar e uma coisa que tem me alegrado muito nas viagens nas ilhas
que fiz até agora, é ver esses programas conjuntos e a complementaridade de um mandato de uma agência com a outra. Temos grupos de coordenação temática, o que tem ajudado muito, e estamos também a discutir com os parceiros de desenvolvimento. Temos um, por exemplo, para a pobreza. A erradicação da pobreza extrema até 2026 é uma meta ousada de Cabo Verde, mas é uma meta possível, porque sabemos onde estão, temos o cadastro único, aumentou-se já o programa de protecção social, há vários parceiros a apoiar esse trabalho, como já referi, e há uma coordenação específica dentro do Ministério da Família. Ou seja, os elementos estão aí. Também entre os parceiros de desenvolvimento há coordenação e fico muito feliz de estar num país em que há essa abertura dos parceiros. E tem de ser assim, porque nenhum parceiro sozinho vai dar a resposta que o país precisa. Precisam estar juntos, coordenadamente, apoiando e levando a voz de Cabo Verde para o mundo. Importante informar que temos um sistema on-line chamado UN Info (uninfo.org) – uma plataforma com todas as informações do trabalho das Nações Unidas em Cabo Verde, contendo os detalhes do programa, das acções que estamos implementando no terreno, parceiros financiadores, etc. As pessoas podem ver o quadro geral e os detalhes por agência, por ODS e por município. É uma ferramenta importantíssima para gestão e prestação de contas nos países.
Em suma, e para concluir, como estará Cabo Verde em 2030?
Acho que este país, sobretudo depois da análise que fizemos, tem um potencial grande. Precisamos agora é de estar do lado do país, do lado do governo, do lado da sociedade cabo-verdiana, para justamente impulsar um outro passo para o desenvolvimento, que é necessário. Mas é necessário esse acesso a esse financiamento em grande volume para fazer as grandes mudanças estruturais, que ainda precisam de ser feitas. Não é só vontade política, requer recursos… Eu acho que Cabo Verde pode contar uma história muito bonita em 2030.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1150 de 13 de Dezembro de 2023.