No ano passado, por esta altura, disse que as medidas implementadas estavam a permitir uma maior rapidez na justiça e que o ano de 2023/2024 seria diferente. Porém, os relatórios do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e Conselho Superior de Magistratura Judicial (CSMJ) apontam um aumento das pendências. O que está a falhar?
Estamos num processo. A aposta fulcral é a modernização da justiça e modernizar a justiça é tratar a justiça no digital. Desde que assumimos funções, em 2021, temos trabalhado para estabelecer um Sistema de Informação da Justiça (SIJ) que permita melhorar a produtividade dos tribunais sem comprometer a qualidade das decisões. O compromisso que assumimos na altura foi de trabalhar com base no SIJ existente. Fizemos a avaliação do sistema implementado em 2014/ 2015 e ao longo de praticamente um ano, trabalhámos com o NOSi para identificar os problemas que acabaram por redundar no fracasso do SIJ. Após a identificação dos constrangimentos, solicitámos ao NOSi uma proposta técnica e financeira, que foi trabalhada em conjunto com uma equipa de técnicos do Ministério da Justiça e dos Conselhos Superiores. Deste processo, resultou a contratação do NOSi para o desenvolvimento da plataforma, dado que a análise concluiu pela necessidade de desenvolver um sistema desde a base, em vez de melhorar o existente. Por esta razão, toda a expectativa criada em torno do funcionamento do SIJ no ano passado não se concretizou, pois as condições e a própria decisão política mudaram. Queremos um sistema que funcione de facto, que traga resultados, que contribua para reduzir a morosidade e as pendências processuais, e que contribua para a redução do stress nos tribunais. Daí que, estamos com algum atraso na implementação do SIJ, mas esse atraso é justificável e foi uma boa decisão. Estamos a trabalhar um novo SIJ, não com base no SIJ que existia.
Quanto tempo agora para ter esse novo SIJ operacional?
A plataforma já foi desenvolvida, para minha satisfação e de todos os operadores judiciários. Estão concluídos os módulos para a primeira instância e para a Relação, e neste momento está-se a concluir o portfólio do Supremo Tribunal de Justiça. Durante esse tempo, além da criação das infra-estruturas de base (internet, equipamentos, etc.), trabalhámos as infra-estruturas legislativas, ou seja, a base legal necessária para dar suporte ao SIJ. Uma lei recentemente aprovada no Parlamento, juntamente com a regulamentação em sede do Conselho de Ministros, estabeleceu esse suporte.
Também desenvolvemos o sistema de informação para o processo penal, para que funcione dentro da plataforma, assim como o sistema de informação para o processo civil. Além disso, foi necessário formar os operadores judiciários, o que exigiu tempo, pois tivemos de conciliar com as suas agendas diárias num período próximo ao final do ano judicial, quando todos estão empenhados em maximizar os resultados. De Janeiro a Setembro deste ano, demos formação aos operadores judiciários, incluindo a Ordem dos Advogados, instituição fundamental para a administração da justiça. Neste novo ano, o SIJ já está em produção, e os relatórios dos Conselhos Superiores referiram-se a esta matéria, o que significa que estamos prontos para operar. Além disso, é necessário implementar o certificado digital, para que cada operador tenha confiança no acesso ao sistema. A base do desenvolvimento do processo está nos tribunais, e cada operador deverá ter acesso ao processo por meio de uma senha de entrada. Este passo, em parceria com o SISP, está em andamento. Enfim, há uma série de procedimentos em curso, e aguardamos a proposta dos Conselhos Superiores e da Ordem dos Advogados, conforme previsto por lei, para que possamos declarar oficialmente o funcionamento do Sistema de Informação de Justiça.
Mas qual a previsão para essa declaração oficial?
A previsão é que aconteça o mais brevemente possível, e queremos que seja ainda este ano. Como o sistema já está em produção, isso é viável. No entanto, ainda precisamos aguardar a auditoria interna do NOSi, que também já está em curso. Assim, declararemos brevemente a entrada em funcionamento do SIJ, o que trará ganhos substanciais para o sistema judicial. A justiça está em transformação, e a modernização ocorre em vários sectores, não apenas nos tribunais. Estamos a modernizar os registos e notariado, serviços essenciais para a vida dos cidadãos. Esses registos são, diria, o cérebro do Estado e da sociedade, pois é onde temos todos os registos, desde o nascimento até à morte: actos notariais, escrituras, criação de empresas, etc. Tudo isso está interligado ao sector da justiça. Em breve, vamos lançar o portal da justiça. precisamos da aprovação da lei que cria oficialmente o portal, o que permitirá oferecer serviços online, como a requisição de documentos e o pagamento online. Além disso, poderia falar também da modernização dos serviços prisionais, onde desenvolvemos um sistema de informação e gestão prisionais…
Insistindo ainda na questão das pendências. Além do SIJ, tínhamos vários outros investimentos - como a instalação de um centro-piloto de arbitragem na UniPiaget, o campus de Justiça, ou o Instituto de Medicina Legal - que foram apresentado como iniciativas que iriam ajudar a reduzir as pendências…
E vão ajudar. Há que dar tempo para que os resultados possam ser verificados. O impacto virá. A par com o SIJ, estamos a desenvolver os mecanismos alternativos de resolução de litígio, com a instalação, para breve, do centro [nacional] de arbitragem e mediação. O edifício está pronto, estamos à espera dos equipamentos de gravação e outros materiais e Recursos Humanos. Nesta fase, estamos a nomear o coordenador do centro, pelo que esperamos que comece a funcionar ainda este ano. Pretendemos ter os mecanismos alternativos de resolução de litígio na Praia, em São Vicente e no Sal. Mas há todo um trabalho a montante. Foi necessário revisitar o quadro legal e dar formação aos árbitros e mediadores. Instalando o centro, estamos a trabalhar, concomitantemente, a lei da arbitragem sucessória. Vamos remeter o direito sucessório para a arbitragem: a partilha, o inventário de bens pós-morte… É uma matéria que precisamos resolver, porque temos verificado, ao longo de anos, conflitos familiares prolongados, bens e prédios a deteriorar-se e muitas vezes, um herdeiro que se apropria dos bens comuns, prejudicando os demais herdeiros. Então, vamos ter a lei de arbitragem sucessória, transformando este modelo e equiparando-o ao funcionamento das sociedades comerciais. As decisões serão tomadas com base na votação da maioria, ao nível do Centro Nacional de Arbitragem. Além disso, estamos a criar arbitragem de investimentos internacionais, tendo em conta que Cabo Verde é um país de turismo. Teremos centros de arbitragem com cariz para a área laboral, a administrativa, investimentos e a sucessória. Portanto, vamos direccionar para esses mecanismos alternativos questões que actualmente são encaminhadas à justiça tradicional, que muitas vezes é demorada. A vantagem desses centros de mediação e arbitragem é que as decisões são mais rápidas. Agora, indo ao cerne da questão que colocou: porquê tantos investimentos e ainda fracos resultados? É uma questão que também eu coloco, mas tenho a convicção que esses resultados virão brevemente. Recorde-se que estamos a implementar um plano de redução das pendências, que prevê a diminuição das pendências em torno de 20% a 30% por ano. Isso significa que os tribunais terão que produzir mais, mas esse esforço terá que ser acompanhado por mecanismos alternativos de resolução de litígio, e, nomeadamente, pelo Instituto de Medicina Legal. Este Instituto tem um impacto muito grande. É só ver o número de exames, autópsias, de intervenções em diversas áreas, para subsidiar a justiça. Isso acaba por contribuir para a redução da morosidade e para a clareza e clarividência das decisões judiciais. Também estamos a trabalhar na melhoria da informação jurídica.Temos protocolos com várias entidades em todos os municípios e estamos a implementar um plano para informar a população sobre os seus direitos e obrigações. Conhecendo-os, há margem para se reduzir o índice de litigiosidade, que continua a ser muito grande. Não é concebível que um país com menos de 500 mil habitantes tenha por ano, só a nível do judicial, em torno de 13 mil processos. Se calhar, seria necessário um estudo do porquê de tanto litígio. Por isso, precisamos de trabalhar a justiça preventiva, pois este é um fenómeno em cadeia. Por outro lado, há a questão da gestão dos Conselhos. Por exemplo, o relatório mostra que registar uma queixa no MP pode levar de 5 a 6 meses. Isso quer dizer que muitos dos processos que estão agora debitados no relatório 2023/2024, são processos que vêm de 2022.
Isso levaria a outra questão: como se justifica levar meses num procedimento que devia ser imediato?
O MP terá que responder isso, não a Ministra. Mas, essa é uma questão a que também o SIJ vai dar vazão. Com o SIJ, esses processos vão entrar directamente. E estamos a implementar um número único no SIJ para que as queixas recebam um número que as siga até o final do processo. Actualmente, uma queixa possui números diferentes nas várias entidades e instâncias, o que pode dificultar o acompanhamento do processo. Uma das vantagens do SIJ vai ser esse número único, que será gerado no MP. Esse número vai servir para as partes, para os advogados, que vão poder fazer consultas, e para os recursos.
E os processos já entrados? Vão ser digitalizados?
Temos um projecto de digitalização, que já apresentámos para financiamento. No entanto, não vamos aguardar até que o financiamento esteja disponível. Temos algumas centrais de digitalização que serão deslocalizadas para os tribunais, a fim de que esses 65 mil processos pendentes no MP possam ser digitalizados e integrados no SIJ.. Com todos os processos no sistema digital, isso melhorará, inclusive para as estatísticas, o acompanhamento e a tipificação.
E quanto à questão da data de entrada do processo. Há anos que se fala que se deve ter em conta a antiguidade.
Esta é uma questão que está a ser tratada através da Lei de Inspecção. Com base na boa cooperação tanto com o CSMJ, quanto o CSMP, trabalhámos um pacote legislativo que, a ser implementado, terá ganhos substanciais. Desde logo, trabalhamos a alteração às orgânicas dos Conselhos Superiores, o que é importante, porque há matérias que precisaríamos de densificar e permitir que os Conselhos tenham mecanismos outros de melhor fazer a gestão das magistraturas. Esse pacote legislativo contempla também as novas Leis de Inspecção Judicial e de Inspecção do MP. O que é que se quer? Accountability. Ninguém está acima da prestação de contas. A avaliação considerará o número de processos pendentes de 10 ou mais anos, ou 5 ou mais, resolvidos pelo magistrado, bem como os processos complexos resolvidos e o histórico das suas decisões em recurso, analisando o sucesso, ou não, do magistrado. Estamos a propor vários instrumentos para essa avaliação, sendo o primeiro ponto a criação de serviços de inspecção que funcionem, respeitando a lei que exige um inspector superior e três inspectores. No entanto, enfrentamos um défice de recursos humanos. Estamos a propor um concurso extraordinário para recrutar magistrados de topo.
Todos se queixam da falta de Recursos Humanos. Reconhece-se, então, essa carência?
Sim. De 2021 a esta parte, temos agora o primeiro leque de formados: 14 procuradores e sete juízes, que neste momento estão na fase de estágio.
Basicamente, vão substituir quem sai.
Vão substituir quem sai, mas, repare-se que o problema nem sempre é orçamental. No ano passado, por exemplo, o CSMJ abriu um concurso para o recrutamento de 14 juízes e só conseguiu sete, por falta de qualificação. A culpa será do sistema, possivelmente do próprio sistema de ensino. É uma questão que precisa de atenção. Mas, acho que tentar colocar a tónica na falta de recursos, não é um perspectiva correcta, porque acho também que há condições de produzir mais com o que temos. Basta observar que alguns produzem muito, enquanto outros produzem pouco; uns alcançam avaliações de Bom com distinção, e outros apenas de Suficiente. Essa disparidade precisa de ter consequências e aí entra a Lei de Inspecção, que vai aferir a produtividade dos magistrados e, também, sobre a longevidade dos processos. Mas, como disse, teremos de fazer promoções extraordinárias para as duas magistraturas de modo a criar condições para um melhor funcionamento.
Como vamos conseguir isso quando a “oferta” é tão pequena?
Daí a razão pela qual estamos a trabalhar para ter, no próximo ano, o Centro de Jurídicos e Judiciários, que é fundamental para o sistema da justiça no seu todo. Já concebemos o diploma que foi partilhado nas Jornadas da Justiça que realizámos recentemente. Foi uma discussão muito boa em torno da necessidade de termos esse Centro para que possamos treinar os magistrados em exercício, mas também criar condições para os que vão entrar. Os pretendentes às magistraturas vão ter que se submeter ao Centro, para se prepararem melhor antes de se candidatarem. E estamos a conceber este centro como um centro pluridisciplinar, reunindo as várias necessidades do sector da justiça, pois, sendo um país pequeno, não é viável criar vários centros especializados. O centro vai servir também para a formação de conservadores notários, oficiais de justiça, oficiais das conservatórias e agentes de segurança prisional. Estuda-se ainda a possibilidade de, a Ordem querendo, incluir a formação de advogados. Assim que o estatuto do Centro for aprovado, uma comissão instaladora desenvolverá um currículo multidimensional para os diferentes subsectores, com o objectivo de colocar o centro em funcionamento em 2025. Mas o plano estratégico aprovado já prevê o recrutamento, com a contratação de mais 17 magistrados até 2030. Essa planificação está em andamento e será monitorada ao longo do tempo. Porém questiono: com mais magistrados, teremos melhores resultados? Há que fazer funcionar a inspecção.
E quanto os ganhos do Campus da Justiça?
A criação de melhores condições, de que se fala, é igualmente importante, e a infra-estruturação da justiça é um dos eixos em que temos estado a trabalhar. Actualmente, estamos na segunda fase do Campus da Justiça que permitirá à comarca da Praia ter melhores condições para operar. Antes, havia a queixa da falta de salas de audiência. Hoje, cada juízo no Campus tem uma sala de audiência. É verdade que ainda enfrentamos algumas dificuldades, porque um grande número ainda de juízos, de crime e de trabalho, ainda continua no Plateau, onde o espaço é exíguo. Por isso, estamos a acelerar o processo de infra-estruturas judiciárias, principalmente no Campus da Justiça, para que toda a comarca funcione com uma rede e infra-estrutura adequadas, proporcionando melhores condições e segurança para os magistrados. Um ambiente de trabalho positivo é importante, mas é necessário avaliar o desempenho, pois sabemos que, em algumas situações, apesar das boas condições, há pessoas que apresentam baixa produtividade.
Tem havido muitas alterações, mas nada que mexa com a Constituição. Esta arquitectura judicial, tal como foi concebida, ainda serve?
Esta arquitectura ainda está em implementação. Houve a revisão constitucional de 2010, aprovou-se o pacote da reforma [da Justiça] em 2011, e várias das soluções constantes no pacote só vieram a ser concretizadas em 2016. O impacto tarda a chegar, porque houve muitos atrasos na implementação da reforma. Tivéssemos, por exemplo, implementado antes a instalação dos tribunais de relação, hoje teríamos outros resultados. Estamos a fazer agora e ainda há correcções a realizar, mas não necessariamente ao nível da revisão constitucional. É por isso que temos o referido pacote legislativo, incluindo as leis orgânicas dos dois Conselhos Superiores, os Estatutos das duas magistraturas e a Lei da Inspecção que já vão dar entrada no Parlamento. Inclui ainda a nova lei de organização judiciária, que responde a exigências dos cabo-verdianos, principalmente dos operadores judiciários, com a criação do juízo de instrução [criminal na Praia]. Concomitantemente, estamos a trabalhar a justiça administrativa que exige uma nova configuração da lei da Organização Judiciária. Isso implica a necessidade de criar juízos administrativos, pelo menos na Praia e em São Vicente, para responder à demanda. Esta questão está contemplada na proposta para aprovação. Portanto, são reformas, correcções, que estamos a fazer. Além disso, precisamos de trabalhar a parte que tem a ver com os processos executivos. Não consigo vislumbrar, nos relatórios dos Conselhos Superiores, quantos processos executivos temos pendentes. O relatório faz menção a processos que aguardam impulso dos advogados, processos que aguardam penhora, mas falta uma contagem precisa. Essa informação é importante para ajudar a considerar a criação de um juízo de execução. Tendo esse juízo, poder-se-á resolver o problema, mas temos que mexer no quadro legal: a Lei de execução tem que ser objecto da alteração. Estamos a modernizar os registos e notariado, tendo já em vista as alterações que iremos introduzir na lei de execução. Isso permitirá que os tribunais acedam aos registos prediais, comerciais e automóveis, agilizando o processo. Havendo uma decisão judicial, o que, às vezes, cria sentimentos de insatisfação para com a justiça é a sua efectividade. Há a sentença, mas as pessoas não as conseguem executar. As partes mais astutas muitas vezes conseguem evitar a execução, utilizando estratégias como transferir bens para familiares ou atrasar a entrega de informações bancárias, o que complica o processo de penhora. Há uma série de coisas que acontecem. Estamos a trabalhar para enfrentar essas questões, pois sabemos que quem deve, especialmente aqueles condenados com sentenças transitadas em julgado, tem de pagar. Se não pagar, tem que haver consequências. Tem que ter um cadastro, pois a acumulação de dívidas gera conflitos sociais. Por exemplo, alguém que arrenda um imóvel e não paga a renda, acaba por mudar-se para outro sem resolver a situação. Precisamos acabar com essas práticas. Dei esses exemplos, mas há muitos outros.A abordagem deve focar no combate à criminalidade e na prevenção; se a prevenção falha, a repressão torna-se necessária.
Em geral, os processos crime são resolvidos mais rapidamente, mas o volume de processos crime em tramitação superou o de processos de natureza cível no tribunal. Como analisa este dado?
Tem também a ver com pendências nos registos do MP. Mais de 5 mil processos que estavam para registo estão a entrar no processo crime. Claramente, faz diferença.E, se analisarmos os relatórios, notamos que o quarto juízo crime na Praia teve uma produção extraordinária. Este juízo foca-se no crime de furto de energia. Precisamos ponderar entre a importância deste crime e os casos de VBG ou de agressão sexual contra menores. Definirmos que estes crimes devem ter prioridade sobre o furto de energia implica uma decisão a ser tomada. Já levantei este tema, falei com a administração da EDEC, porque a pessoa é condenada, e a empresa fica com a condenação, no papel, mas o que realmente importa é recuperar o dinheiro. Justifica-se a criminalização do furto de energia ou seria mais apropriado remeter esse delito para a esfera da contra-ordenação? Se considerarmos essa alternativa e revogarmos a lei, poderíamos reduzir o número de processos criminais nos tribunais, uma vez que quase mil processos anuais resolvidos advêm de crimes de furto de energia. Por que não libertar o quarto juízo para cuidar de crimes mais graves? São soluções que não dependem somente da Ministra da Justiça, mas também de outros sectores e da visão que se tem que a Justiça. A justiça tem que existir, mas nem tudo tem que ir para os tribunais e é esse entendimento que temos de promover. Então, temos que arranjar outros mecanismos.
Também vemos nos relatórios uma grande diferença entre a produtividade das Comarcas.
Por isso, a discussão sobre a produtividade dos tribunais deve centrar-se não apenas na necessidade de mais recursos humanos, mas também na organização interna e na eficiência. É comparar a produtividade e entender por que há um desfasamento significativo entre as comarcas. Por exemplo, a comarca da Boa Vista é um modelo a ser seguido, pois não tem processos pendentes.
Mas também não tem um grande volume de processos…
Não tem só a ver com o volume. Outras comarcas também deveriam estar na situação zero pendentes. A Boa Vista utiliza os instrumentos que estão à disposição dos tribunais, como a videoconferência. Tem arguidos na Praia, no Sal ou em Santa Cruz e realiza audições através de videoconferência. Já instalámos o sistema de videoconferência em todas as comarcas, mas poucas têm aproveitado essa ferramenta.
Mas está a funcionar em todas?
Funciona. E se não está a funcionar, os Conselhos terão que monitorar. Não é Ministério da Justiça. A única excepção é a cadeia do Fogo, onde o sistema está instalado, mas não funciona porque não temos rede de internet. A empresa exige um custo elevado para a instalação, um investimento que não temos, mas temos de arranjar soluções. Por exemplo, levar o recluso da cadeia para o Tribunal de São Filipe para realizar a videoconferência, em vez de se deslocar à Brava.
Falando da parte mais política, qual é a fatia do Orçamento do Estado de 2025 destinada à Justiça?
Não vamos ter ganhos substanciais comparativamente com o OE de 2024. No ano passado, tivemos um bónus à volta de 13% comparativamente com o ano anterior. Este ano, a perspectiva é que seja [um aumento] menor, o que é uma preocupação, porque a justiça é fundamental para a estabilidade e a democracia, além de ser um pilar essencial para o desenvolvimento do país. Há que investir mais e dar mais importância ao sector da justiça no OE, porque precisamos introduzir reformas que possam impactar a vida do sector.
Dentro dos recursos limitados que há, quais as prioridades?
As prioridades são muitas. Precisamos modernizar e investir na investigação criminal e nas infra-estruturas judiciárias. Estamos a mobilizar recursos, indo ao mercado, contraindo empréstimos para que possamos terminar as obras do Campus de Justiça e ter palácios da Justiça em Porto Novo, Sal, Boa Vista, Maio e São Miguel. Precisamos de ter o Tribunal de Relação de Barlavento, que neste momento partilha o espaço com a comunicação social em São Vicente, a funcionar num espaço próprio. Sempre afirmamos que é preciso criar melhores condições de funcionamento e segurança para o Tribunal de Relação de Barlavento. Esta preocupação persiste há muitos anos, mas a concretização tem sido lenta, pois não depende apenas do Ministério da Justiça. Tentámos arrendar um espaço, mas não conseguimos encontrar uma opção adequada. Temos um edifício da Polícia Judiciária, mas precisamos de instalar a Relação com a Procuradoria. Então, precisamos de dois edifícios adjacentes. Para isso, estamos em procedimento com o património do Estado, a aguardar a resolução dessa situação para afectar o imóvel adjacente, permitindo assim a realização das obras necessárias. Estamos a trabalhar com uma empresa na alteração do projecto para adequá-lo a uma instituição judicial, criando todas as valências necessárias. Mas não posso nem assumo datas, porque dependerá, em grande medida, dessa afectação do imóvel. Assim que o espaço estiver afectado, o Ministério da Justiça estará pronto para avançar para garantir um espaço digno para o Tribunal de Relação de Barlavento.
E que outros projectos seria importante levar a cabo?
É preciso reformatar, por exemplo, o sistema penitenciário, reduzir os gastos, mas para isso há que investir. E o investimento tem que ser um investimento com impacto, e não aos poucos. Por exemplo, trabalhamos um projecto de empregabilidade de mão de obra reclusa, para o qual precisamos de financiamento. Se conseguirmos financiamento, os reclusos vão passar a trabalhar dentro e fora do estabelecimento regional, vão gerar receitas que têm um impacto positivo ao nível do OE, aliviando-o. A ideia é levar pequenas indústrias para as cadeias. Na cadeia Central da Praia, aliás, em todas as cadeias, temos jovens com muitas capacidades que, com uma boa formação, podem produzir e auto-sustentar-se. Os impostos dos cidadãos cabo-verdianos custeiam actualmente as despesas dos estabelecimentos prisionais. Porque não introduzir reformas ao nível da agricultura, criação de gado, artesanato e pequenas indústrias nas cadeias? Com uma gestão reformulada e cadeias auto-sustentáveis, poderíamos aliviar o orçamento público. É esse o meu desejo: um investimento impactante, contínuo, que permita, num ano, transformar o sector da justiça. Contudo, faltam-nos os recursos necessários. Então, queremos recursos impactantes. Um ano de investimentos para o sector da justiça.
Outras áreas certamente também alegarão que precisam de mais recursos…
Sim, claro. Temos a saúde, temos a educação, temos outras áreas e é por isso que não posso exigir muito. Eu estou a dizer o que precisaria, o que gostaria de ter, mas não tenho, nem posso exigir porque o Estado não tem condições de me dar mais. É dentro desta lógica que estamos a falar.
Já falamos de problemas, de iniciativas em curso, mas há coisas que estão bem. Para acabar, um apontamento positivo, que foi levantado pelo Presidente do CSMJ no Fórum de Justiça. “O relatório da Iniciativa Global contra o Crime Organizado concluiu que Cabo Verde é o país africano melhor preparado para enfrentar o crime organizado”. Como vê esta “avaliação”?
Primeiramente, porque o nosso sistema judicial pode tardar, mas funciona. Funciona do ponto de vista daquilo que são já as medidas repressivas, quando chega ao poder judicial. E funciona porque também temos um tribunal independente. Temos um sistema que, apesar das suas deficiências, dá garantia aos cabo-verdianos. Os cabo-verdianos confiam no sector da justiça, e é fundamental, que haja este entendimento de que a justiça é um pilar essencial do Estado de Direito. Com uma justiça cada vez mais independente e produtiva — algo em que temos trabalhado — podemos combater o sentimento de impunidade que surge quando a justiça tarda. É crucial que a justiça trabalhe para mudar essa percepção… Essa avaliação também se deve ao trabalho de investigação criminal, que começa com a polícia científica — a Polícia Judiciária. Temos investido na polícia científica e no reforço laboratorial. Além disso, estamos a trabalhar em sistemas no âmbito do Registo e Notariado, com a implementação de um sistema biométrico para garantir a segurança documental. Esse sistema é útil para a Polícia Judiciária na investigação criminal, na questão da falsificação de documentos. São investimentos que estamos a realizar.
E a nível de intervenções internacionais, tendo em conta que é transnacional?
O crime organizado não tem fronteiras. Temos cooperação com vários países, como Portugal, Espanha, Estados Unidos, e com a União Europeia para enfrentar problemas como o tráfico de drogas, lavagem de capitais, tráfico de pessoas e armas. Participamos em fóruns internacionais e recebemos missões de assistência técnica, destacando a parceria com o UNODC, que tem sido fundamental. Temos trabalhado continuamente, e os resultados obtidos são fruto do trabalho desenvolvido pela própria Polícia Judiciária. Contudo, há ainda muito por fazer, apesar das nossas limitações. Somos vulneráveis pela nossa condição de ilhas, pela localização geográfica e pelos recursos escassos. O governo tem investido em melhorias, incluindo a aquisição de meios aéreos para vigilância da nossa zona económica exclusiva, o que é essencial no combate ao tráfico de drogas, à migração ilegal e ao contrabando... São várias as iniciativas que temos em andamento.
Há todo um sistema que funciona contra esse crime.
Há e estamos a trabalhar. Por exemplo, ao nível da lavagem de capitais, temos a Comissão Interministerial de Lavagem de Capitais e a Unidade de Informação Financeira (UIF), que é a Inteligência Financeira. A Comissão Interministerial, que tem na sua composição várias entidades, tem vindo a funcionar. Aprovámos a ENCAVE, que é o Plano Estratégico de Combate à Lavagem de Capitais. Estamos a trabalhar neste momento a sua implementação. Recentemente, encerrámos um curso ministrado no âmbito da cooperação com o Luxemburgo para os integrantes da Comissão Interministerial. Neste momento, estamos a trabalhar num pacote legislativo para alterar o quadro legal relacionado com a lavagem de capitais, financiamento do terrorismo e proliferação de armas. Também estamos a reforçar os estatutos da UIF, consolidando-a como entidade de inteligência financeira. Em 2019, o país foi avaliado e agora, em Novembro, iremos apresentar um [novo] pedido de avaliação. Criámos todas as condições necessárias para uma avaliação positiva e acreditamos que, com todo o trabalho que se tem feito, vamos ter bons resultados. Trabalhamos também a temática do tráfico de pessoas. Temos a Comissão de Combate à Violência, que tem na sua composição várias entidades públicas, e está na orgânica do Ministério.
Não se ouve falar aqui em tráfico de pessoas, mas sabemos que existe.
Existe, e é uma temática que estamos a colocar na agenda. Criámos o Observatório de Tráfico de Pessoas, o Observatório, que está em funcionamento, e aprovamos um plano de combate a esse crime. No próximo dia 4 de Novembro, vamos dar posse ao conselho directivo do observatório. O observatório irá colaborar com a Comissão de Combate ao Crime Organizado para destacar a questão do tráfico de pessoas. É importante esclarecer que o tráfico de pessoas vai além do conceito comummente entendido. Não se trata apenas de desaparecimentos; a mendicância, o trabalho forçado e a prostituição também se enquadram nessa definição. Estamos a trabalhar para abordar essas várias situações na nossa sociedade. É claro que temos de ter uma base de dados, trabalhando também com a própria Polícia Judiciária, que tem vindo a trabalhar com a CEDEAO. Temos sistemas de partilha de informações ao nível da nossa sub-região, a par da Interpol. Temos outros sistemas também na nossa sub-região, de partilha de informações que nos vão ajudar, por exemplo, a perseguir indivíduos que escapem à justiça em Cabo Verde. É necessário implementar mecanismos para acompanhar essas pessoas. Já tivemos casos de indivíduos com processos judiciais que, devido a erros processuais, saíram das prisões e que nos dias seguintes já estavam longe, utilizando vias informais. Então, precisamos continuar a trabalhar nesta questão, e vamos estabelecer um quadro de cooperação para a partilha de informações com os países vizinhos, de forma que, em situações críticas, esses países possam ser alertados e estejam vigentes.
Então foi justa esta esta distinção?
Foi justa porque é o reconhecimento do trabalho que se tem vindo a fazer. Mas temos consciência de que precisamos fazer mais, mas precisamos também de meios. Com mais meios faz-se um melhor combate, mas temos também dificuldades financeiras. Logo, a cooperação internacional é essencial, e temos vários países que nos apoiam com meios materiais, equipamentos e formação, o que nos tem ajudado. É bom que o país mantenha uma imagem limpa a nível internacional em matéria de lavagem de capitais.Que seja um país que se esforça para combater a criminalidade organizada, pois a grande criminalidade tem um reflexo directo na pequena criminalidade. Onde há tráfico de drogas, por exemplo, há menores que usados para a passagem de drogas, que acabam até por ser consumidores e praticar delitos. Isso resulta em um ciclo de vida, levando esses jovens a instituições como o ICCA ou o Centro Orlando Pantera e, depois, às prisões.Estamos a trabalhar para quebrar esse ciclo, começando por garantir o acesso à educação. Precisamos criar um sistema que impeça o abandono escolar, que é o primeiro desafio que o país tem. O abandono já é baixo, mas estamos a trabalhar para que o reduzir a zero, porque, como se costuma dizer, o lugar da criança é na escola. Mas também precisamos trabalhar as famílias. Temos famílias desestruturadas, que não se ocupam daquilo que é o seu papel de mãe ou de pai. Quando as crianças são abandonadas, acabam por deixar a escola e ficam vulneráveis à exploração para actividades criminosas. Estamos a combater essa realidade num trabalho conjunto entre Ministérios da Justiça, da Família e Inclusão Social, da Administração Interna, da Educação e da Saúde. Há uma interligação entre as várias estruturas governamentais, e o nosso objectivo é reduzir as vulnerabilidades associada à presença de crianças na rua. Há cerca de um ano e tal, trabalhamos no regime jurídico para crianças e adolescentes em perigo, definindo claramente o papel da sociedade, da família, famílias de acolhimento e centros de acolhimento e também a formação profissional desses menores…
A reincidência, conforme indicado pela senhora ministra recentemente, diminuiu. Porém, observamos um aumento da pequena criminalidade como roubos e furtos. Estamos a enfrentar o surgimento de uma nova geração de pequenos criminosos?
Há fenómenos novos, mas esta questão, como eu disse, tem a ver com o registo de queixas no Ministério Público. Muitas queixas que estão no relatório de 2023- 2024 vêm de anos anteriores. o que indica uma cadeia de processos que se arrastam de ano para ano devido a ineficiências. Essas ineficiências vão ser combatidas, como referi, com a implementação do SIJ. Vamos resolver. É verdade que temos estado a trabalhar para a redução da reincidência. Esse trabalho tem sido feito de uma forma constante, e anualmente várias acções são desenvolvidas em todas as cadeias do país. Temos implementado programas específicos para trabalhar com os agressores, por exemplo. Temos programas o agressor sexual (o programa PASS quefoi desenvolvido pela Comissão Nacional de Direitos Humanos e Cidadania), o agressor de VBG, o homicida, a pequena criminalidade... Já temos reflexos positivos, como a redução da reincidência criminal. Segundo os estudos em 2018, era à volta de 33%, agora é em torno de 21%. Também trabalhamos com associações - a Associação Hotu Rumo, a Igreja Católica com o projecto Reerguer e várias outras entidades em programas educativos e formação profissional para esses reclusos, principalmente os que estão na faixa etária de 16 a 21 anos. A nossa população prisional é jovem, por isso temos investido um grande esforço em trabalhar com esses jovens, preparando-os para a vida fora da prisão. Portanto, são vários os programas que temos estado a desenvolver, a par daquilo que também é fundamental, que é colocar esses jovens a produzir, pois isso gera melhores resultados. Desenvolvemos um projecto de produçao de música nas cadeias, e temos artistas a produzir e fazer gravações na cadeia e outros, que já saíram, que o fazem fora. Temos formação profissional em várias áreas: eletromecânica, mecânica, TIC, horticultura. Temos frutos positivos, mas queremos ter impactos maiores nos próximos tempos, razão pela qual há todo um trabalho que tem que ser feito ao nível da própria gestão prisional, para que possamos reduzir a população prisional, que é nosso grande objectivo.Há muita de mão-de-obra activa nas cadeias, e precisamos libertar esses indivíduos, mas primeiro devemos prepará-los para a reintegração na sociedade. Para isso, é fundamental trabalhar com as empresas. Desenvolvemos um programa chamado 'Mesa de Diálogo', que visa sensibilizar empresários a acolher reclusos e ex-reclusos como estagiários e funcionários. Por exemplo, uma empresa recebeu de uma assentada seis ex-reclusos. E temos vários outros, já com formação profissional, que estão a trabalhar. Alguns estão a frequentar o ensino superior, com financiamento do Ministério da Justiça, e outros com o 12.º ano terão a oportunidade de ingressar na universidade após cumprirem a pena. Comprometemo-nos a apoiar essa formação. Além disso, oferecemos educação nas cadeias e no Centro Orlando Pantera, até ao 9.º ano, uma vez que a população prisional apresenta altas taxas de analfabetismo. Temos a responsabilidade de alfabetizar os reclusos, levá-los ao sistema de ensino até o 9.º ano. É nosso desejo até, inclusive, ensino superior à distância nas cadeias. Uma outra temática importante é a implementação de pulseiras electrónicas.
Como está essa iniciativa?
É uma matéria que está em implementação. Já aprovamos o quadro legal no Parlamento, estamos a trabalhar a regulamentação. Vamos ter verbas no OE 2025, e vamos abrir o concurso. É uma matéria nova, mas, após trabalho que levou algum tempo, já temos o TDR . Assim, em 2025 vamos implementar a pulseira electrónica, com ganhos para o sistema prisional e para o sistema judicial.
Conseguem garantir a monitorização?
Vai ser um sistema que garanta a monitorização, com georreferenciação, é um sistema completo, bem delineado. Vamos reduzir a população prisional, porque os tribunais vão passar a aplicar esta medida, a par de outras medidas alternativas que já têm estado a aplicar. Também trabalhamos nas penas alternativas através da unidade a isso dedicada da Direção-Geral de Serviços Prisionais e Reinserção Social, que colabora com os tribunais nas situações em que estes entendam por bem dar oportunidades a essas pessoas.
Essas medidas alternativas têm estado a ser aplicadas? Havia alguma resistência dos juízes.
Agora, estão a aplicá-las em todas as comarcas. Temos técnicos sociais a trabalhar em todas as comarcas, colaborando com os tribunais. As penas alternativas têm estado a aumentar. Os tribunais têm dado oportunidades, e a baixa taxa de reincidência nos casos de penas alternativas demonstra o sucesso dessa abordagem. Isso é vantajoso para todo o sistema, pois as pessoas em cumprimento de penas alternativas contribuem para a comunidade e têm mais facilidade em reintegrar-se na sociedade, ao mesmo tempo libertamos, em parte, os estabelecimentos prisionais, que já estão superlotados. A propósito disto, estamos a realizar obras na cadeia central da Praia, onde serão construídas mais 48 salas com sanitários, em conformidade com as Regras de Mandela, visando a humanização das cadeias. Aumentamos substancialmente o número de técnicos sociais, além de criminologistas, psicólogos e assistentes sociais, e os resultados positivos que temos obtido são fruto do trabalho deste grupo coeso, com pessoas muito bem preparadas E com resultados. É só ir, ver e constatar aquilo que é a Cadeia Central da Praia hoje.
Leia a versão alargada da entrevista publicada na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1196 de 30 de Outubro de 2024.