Alta demanda e baixa oferta de um serviço essencial, mas cujo acesso ainda é limitado

PorSheilla Ribeiro,2 nov 2024 8:50

Viviane Moura, Fonoaudióloga
Viviane Moura, Fonoaudióloga

A fonoaudiologia, ou terapia da fala, fundamental no tratamento de distúrbios de comunicação, fala e audição, tem-se tornado cada vez mais procurada em Cabo Verde. Apesar da crescente demanda, especialmente entre crianças com transtornos de desenvolvimento da fala, principalmente devido ao excesso de exposição às telas, transtornos do espectro autista e outras condições neurodesenvolvimentais, o acesso a esse serviço especializado ainda é restrito para muitos.

Ao Expresso das Ilhas, a fonoaudióloga, Viviane Moura, afirma que um dos maiores desafios enfrentados pelos profisisonais da área no país é a dificuldade de encontrar espaço para exercer a profissão no sector público.

Viviane explica que, após anos de formação e estágio obrigatório, os profissionais encontram um cenário desanimador.

“Chegamos a Cabo Verde após anos de estudo e realizamos o estágio obrigatório durante seis meses, mas após isso, não temos para onde ir. O Ministério da Saúde alega nunca ter verba para contratações, apesar da enorme carência destes profissionais e de uma lista de espera gigantesca nos serviços públicos”, aponta.

Essa escassez de oportunidades contrasta com a realidade do sector privado, onde, apesar de haver a possibilidade de exercer a profissão, surgem outros desafios.

“No sector privado, os utentes não têm tanta capacidade financeira para cobrir os gastos de um atendimento contínuo, recomendado especialmente para pacientes com danos neurológicos ou condições atípicas, que necessitam de acompanhamento semanal”, explica.

Falta de apoio institucional

A ausência de concursos públicos para fonoaudiólogos nos últimos quatro anos reflecte a falta de prioridade dada à terapia da fala pelo Governo, segundo a profissional.

“O nosso Governo tem um orçamento de 9,84 milhões de contos para a saúde, mas não prioriza a necessidade de fonoaudiólogos. Muitos profissionais acabam voltando para os países onde se formaram ou buscando outras oportunidades devido à falta de estabilidade financeira”, lamenta.

Na mesma linha, a fonoaudióloga refere que as seguradoras, como a Garantia e o Instituto Nacional de Providência Social (INPS), não cobrem os custos dos tratamentos fonoaudiológicos, o que limita ainda mais o acesso dos pacientes.

Contudo, Viviane Moura defende que os profissionais não podem diminuir os custos dos seus serviços, pois já são disponibilizados a um valor muito abaixo do que deveriam.

Aumento da procura

Nos últimos anos, tem-se observado um aumento na demanda por serviços de terapia da fala, tanto no sector público quanto no privado, conforme avança Viviane Moura.

Os hospitais públicos, como o Hospital Universitário Agostinho Neto e o Hospital Regional Santa Rita Vieira, possuem listas “enormes” de espera devido à escassez de profissionais contratados.

“Há uma demanda elevada, especialmente por casos de transtornos de comunicação, danos neurológicos e transtornos do neurodesenvolvimento. No sector privado, a procura também é alta, mas apenas uma minoria tem condições financeiras para arcar com os custos”, relata.

Viviane salienta que a maior demanda por serviços de fonoaudiologia em Cabo Verde vem de crianças.

“Houve um aumento exacerbado de casos de transtornos de desenvolvimento da fala, especialmente relacionados com o uso excessivo de telas, transtornos do espectro autista e outros transtornos do neurodesenvolvimento” explica. No entanto, também se observa uma crescente procura por parte de adultos e idosos, especialmente após AVCs, cujas sequelas muitas vezes afectam a fala e a comunicação.

Além disso, a fonoaudióloga sublinha que há uma busca significativa por parte de profissionais que utilizam a voz como ferramenta de trabalho, como professores, advogados, jornalistas e cantores.

“Com o aumento de AVCs na população cabo-verdiana, tivemos, nos últimos anos, uma alta procura de adultos e idosos, além de uma forte demanda por parte dos pais, preocupados com o desenvolvimento dos seus filhos”, completa.

Principais patologias em Cabo Verde

A Fonoaudiologia abrange todas as faixas etárias. Por esta razão, explica a especialista, há procura de todos os tipos, desde o nascimento com crianças com dificuldades para amamentação até aos transtornos de fala após um Acidente Vascular Cerebral (AVC).

As patologias mais comuns que requerem terapia da fala em Cabo Verde estão ligadas a transtornos do desenvolvimento da fala em crianças, transtornos da fluência, transtornos vocais e danos neurológicos.

“As condições mais prevalentes são os atrasos no desenvolvimento da fala, especialmente em crianças com transtornos do espectro autista, transtornos da fluência, como a gagueira, e transtornos de fala relacionados a AVCs, como apraxia e disartria”, explica Viviane.

Nesse aspecto, a fonoaudióloga enfatiza a importância de uma intervenção precoce, tanto para crianças quanto para adultos, especialmente em casos de danos neurológicos.

No entanto, a ausência de políticas públicas voltadas para o rastreamento de necessidades e a conscientização sobre o desenvolvimento infantil faz com que muitos pais e encarregados de educação busquem acompanhamento tardio.

“Quanto aos adultos com danos neurológicos, aos que possuem uma capacidade financeira procuram um acompanhamento privado, mas, os demais acabam por ficar assim à mercê da sorte, pois não há profissionais disponíveis no sector Público para tantos utentes”, diz.

Escassez de profissionais?

Segundo Viviane Moura, embora haja um número razoável de fonoaudiólogos formados, o problema reside na falta de contratação, sobretudo no sector público.

“Não há uma escassez de profissionais, mas sim uma falta de oportunidades de emprego no sector público. Apenas as ilhas de São Vicente e Santiago contam com fonoaudiólogos no sector público, o que gera uma sobrecarga de demandas nas duas principais ilhas, pois recebem pacientes de todo o país”, precisa.

Ainda acrescenta que a maioria dos profissionais da área acabam migrando para o sector privado ou para o exterior, em busca de melhores condições de trabalho e estabilidade financeira.

“Não há escassez de profissionais, há sim uma escassez de contratacção no sector público. O nosso governo deixa a desejar, no que tange ao suporte para os profissionais na área da Fonoaudiologia”, assegura.

Sensibilização e consciencialização da população

Apesar de a fonoaudiologia existir há mais de 14 anos no país, ainda há uma lacuna na sensibilização da população sobre a importância da terapia da fala.

“Muitos não sabem do que se trata ou nunca ouviram falar da profissão. Não há um sistema governamental que nos dê suporte para divulgação e sensibilização em grande escala”, explica Viviane.

A terapeuta ressalta que, actualmente, a consciencialização sobre a terapia da fala tem crescido, graças ao trabalho dos meios de comunicação social, que têm desempenhado um papel crucial nessa tarefa.

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HBS com dois fonoaudiólogos para toda a região Barlavento e alta demanda

O Hospital Baptista de Sousa (HBS), em São Vicente, regista uma alta demanda pela fonoterapia, mas conta actualmente com apenas duas fonoaudiológas que atendem toda a região Norte do país.

Ao Expresso das Ilhas, a fonoaudióloga do HBS, Lainy Nascimento, explica que a unidade hospitalar não oferece terapia da fala, mas sim fonoterapia.

“Não temos terapeutas da fala, mas temos duas fonoaudiólogas”, afirma. A profissional aponta uma crescente demanda por esse serviço, que atende uma variedade de casos, desde crianças com malformação e doenças neurológicas até adultos com sequelas de AVC e outras condições.

A alta procura deve-se principalmente ao facto de o HBS ser um Hospital Central que atende toda a região Norte de Cabo Verde. Além disso, a procura no serviço de audiologia também é significativa, abrangendo exames e tratamentos auditivos. “Fazemos exames audiológicos e tratamento nesse sentido, e temos tido bastante procura”, frisa.

A lista de espera para o serviço é organizada por meio de uma triagem, priorizando casos urgentes ou de urgência média.

“Consoante o encaminhamento médico, fazemos a triagem e, a partir daí, o paciente é chamado conforme a necessidade”, diz Nascimento. Actualmente, o tempo de espera no HBS é relativamente curto, girando em torno de 15 dias a um mês para que o paciente tenha acesso ao serviço, conforme garante a especialista.

O público infantil é o que mais busca atendimento no HBS. “Temos um vasto número de pacientes infantis em tratamento. A grande maioria dos pedidos para este serviço são de crianças”, revela.

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Como exemplo, cita que cada fonoaudióloga atende, em média, 28 consultas semanais, sendo a maioria composta por pacientes infantis. “Das 28 consultas, tenho três ou quatro adultos, o resto é tudo infantil”, reitera.

A duração do tratamento varia conforme a condição do paciente. Casos de desvio fonético, por exemplo, tendem a ser resolvidos em cerca de seis meses.

“Há pacientes com transtorno do espectro autista, por exemplo, que ficam na terapia por muito tempo”, especifica.

O HBS, segundo Nascimento, têm recebido muitos casos de crianças com atraso no desenvolvimento da fala, que estão relacionados com o uso excessivo de telas.

Entre os adultos, os pacientes com sequelas de AVC constituem uma parcela significativa dos atendidos.

O trabalho das fonoaudiólogas não se limita ao atendimento ambulatorial. Também actuam nas enfermarias, cuidando de pacientes com dificuldades de alimentação e deglutição, como bebés prematuros com problemas de sucção e adultos com disfagia.

“Trabalhamos com eles para minimizar as chances de bronco aspiração, que é quando a comida vai para as vias respiratórias em vez de ir para o estômago”, esclarece.

Entretanto, com apenas duas fonoaudiólogas para atender toda a demanda da região Norte, a carga de trabalho é elevada.

“A demanda é cada vez maior e somos apenas duas profissionais para todo o Barlavento. Isso é humanamente impossível”, afirma Nascimento.

A especialista menciona que, apesar do suporte de um colega da Delegacia de Saúde, a situação continua difícil.

“Conseguir dar seguimento e atender à população com qualidade, com um número tão alto de pacientes e com uma demanda tão grande, é difícil”, declara.

A escassez de profissionais faz com que as consultas sejam espaçadas e, por vezes, o atendimento fique comprometido.

“Temos feito um óptimo trabalho, sem modéstia, mas que poderia ser muito melhor e mais preciso com outros profissionais actuando na área”, considera, sugerindo que, se houvesse pelo menos um fonoaudiólogo por ilha, o impacto seria muito positivo. “Gerir a falta de pessoal é o mais difícil”, conclui.

O cenário apresentado por Leiny Nascimento ilustra os desafios enfrentados pela fonoaudiologia no HBS e destaca a necessidade urgente de mais profissionais para garantir um atendimento mais rápido e eficaz à população da região.

O Expresso das Ilhas tentou saber da situação no Hospital Universitário Agostinho Neto. Entretanto, até ao fecho desta edição não obteve respostas ao seu pedido.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1196 de 30 de Outubro de 2024.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,2 nov 2024 8:50

Editado porJorge Montezinho  em  3 dez 2024 16:20

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