Na reconstrução da qualidade do ensino o enfoque deve ir para o ensino básico, disse o antigo ministro e actualmente consultor, formador e conferencista. Victor Borges, que geralmente evita discutir a educação em público e participar em debates – porque geralmente são monólogos colectivos como o próprio referiu – recordou uma provocação antiga no início da intervenção: “Cabo Verde arrisca-se a ter analfabetos com a sexta classe”.
“Tem de se elevar os níveis das aprendizagens básicas: leitura, escrita, capacidade de compreender o meio envolvente, o raciocínio lógico-matemático”, explicou o antigo governante.
Elevar os níveis e eliminar os paradoxos. Como referiu Victor Borges, o primeiro de todos tem a ver com as ambiguidades em relação à língua.
“A língua materna, a língua do ensino e encontramos esta salada na sala de aula, onde misturamos discursos nacionalistas, culturalistas, etc. Baralhamos a relação pedagógica, quando o país tem uma língua oficial de ensino e temos esta situação complicada. O professor, sob o pretexto que os alunos não entendem, ensinam em crioulo, mas às vezes é porque também ele não está à vontade com a língua portuguesa, só que este tema é tabu, ninguém fala. E ele ensina em crioulo para depois avaliar em português”.
Se houve evolução – e houve – também há ainda muito a fazer para que a educação se assuma como um elemento fundamental e transformador. Ou seja, como referiu o actual formador e coordenador do curso de liderança e inovação na gestão do desenvolvimento do Instituto Pedro Pires para a Liderança, progressos sim, mas também desafios inúmeros.
Os desafios
Victor Borges, que é e foi membro de conselhos consultivos e de administração de várias organizações internacionais com intervenção no domínio da educação/formação, incluindo o Instituto da Unesco para a aprendizagem ao longo da vida e o conselho executivo da Unesco, apontou diversos problemas que têm de ser resolvidos na educação cabo-verdiana.
Entre eles, a avaliação e revisão profunda do sistema e práticas de formação de professores. “Para exemplificar, a escola que forma professores, na biblioteca não tem os manuais que são utilizados na escola. Isto é, não se utiliza os manuais nos programas para capacitar os professores. É um pouco como formar um cirurgião sem bisturi, ou um carpinteiro sem serra”, disse.
Mas há outras questões a resolver, segundo o antigo ministro da educação. Por um lado, a promoção, o enquadramento e a avaliação da utilização do currículo. “E quando eu digo currículo, quero dizer o enquadramento geral, os programas, os manuais, os materiais didáticos, tudo isso completa o currículo no seu sentido holístico. Os professores não utilizam os manuais em Cabo Verde e preferem ditar apontamentos”, referiu.
Por outro lado, a procura da eficácia externa ou da relevância da educação. “A educação é para desenvolver competências pessoais, para desenvolver a pessoa, para prepará-la para a vida activa. E se é para prepará-la para a vida activa, eu tenho, a partir de um determinado momento, que alinhar com as necessidades, não digo do mercado, mas da sociedade, da actual e da futura”.
Cada um no seu lugar
Num debate que, segundo a organização, é uma oportunidade única para analisar e refletir sobre os avanços e os desafios que Cabo Verde enfrenta nas áreas da educação e da inovação tecnológica ao longo das últimas cinco décadas, Victor Borges sublinhou, na sua intervenção que há outras áreas que têm de ser melhoradas.
Distinguir a função docente da função gestão escolar, é um dos aperfeiçoamentos a fazer. “Não podemos continuar a pegar em professores e a nomeá-los directores de estabelecimentos de ensino, o que acontece com frequência. Perdemos o bom professor e ganhamos um mau director de escolas”.
A solução? Especializar as escolas, “um espaço onde há docentes, há gestores, etc.”. Além disso, defende Victor Borges, é preciso um amplo programa de capacitação, de quadros em termos de planeamento, gestão, inspecção, coordenação pedagógica, desenvolvimento curricular, avaliação, “para termos o domínio do processo educativo”.
O dinheiro e a política
Este ciclo de conferências-debate para reflectir sobre o percurso de Cabo Verde nas últimas cinco décadas é uma iniciativa de um grupo de investigadores e intelectuais cabo-verdianos e pretende falar dos avanços e dos desafios que se colocam ao desenvolvimento do arquipélago. Dez temas, ou seja um debate todos os meses até o final de Junho de 2025.
Neste mês de Outubro, Victor Borges trouxe para cima da mesa mais duas questões relacionadas com a educação. Para começar, o financiamento. “Precisamos do verdadeiro debate sobre o financiamento da educação em Cabo Verde, que é algo que deveria ser incontornável, mas temos o talento de nos esquivarmos a esse debate e ajuda pública ao desenvolvimento ajuda-nos a navegar, a fazer o slalom entre os problemas sem os tocar”.
Depois, a política. “O último desafio”, disse o antigo ministro da educação, “a construção de um consenso político mínimo. Se continuarmos nessa lógica de que a minha identidade política ou partidária se baseia em acções autodeterminadas sem olhar à esquerda, ou que a minha identidade se limita a ser contra só porque é o outro que fez, às tantas temos um problema e poderemos ser apanhados de surpresa. Vamos adiando assim as soluções de fundo que o sistema precisa”.
“A educação foi, em certa medida, sequestrada pelo jogo político eleitoral. Não tocamos em nada que pode parecer eleitoralmente complicado”, resumiu Victor Borges.
Como concluiu o antigo ministro da educação, o abandono escolar é um problema que tem a ver também com a qualidade da escola pública. “E qualidade significa professores, gestores, recursos, porque ninguém produz qualidade sem recursos”, finalizou o antigo ministro da educação, na conferência que decorreu na Biblioteca Nacional, na Praia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1196 de 30 de Outubro de 2024.