“Há incoerência jurídica e incoerência política” no veto ao PCFR

PorSara Almeida,14 set 2024 9:01

Amadeu Cruz, Ministro da Educação
Amadeu Cruz, Ministro da Educação

O último ano lectivo foi marcado por protestos dos professores e várias negociações. A tensão entre sindicatos e o ministério da Educação, o maior empregador do país, continua, e o veto do Presidente da República ao Plano de Carreiras, Funções e Remunerações (PCFR) tornou-se um tema central deste início de 2024/2025. Em entrevista ao Expresso das Ilhas, o Ministro da Educação contesta a fundamentação apresentada para o veto, defendendo não haver violação da Lei de Bases da Educação e apontando a incoerência jurídica e política da decisão. Amadeu Cruz passa também em revista alguma das principais reivindicações dos professores, com a actualização salarial e as reclassificações, entretanto já atendidas, e critica a postura intransigente dos sindicatos. “Se não fizermos esforços de convergência, nunca chegaremos a nenhum entendimento”, lamenta. A conversa foi também momento de balanço dos resultados escolares do ano lectivo anterior e ponto de situação para a reforma educativa em curso que este ano chega à recta final: o 12.º ano.

O ano lectivo passado foi marcado por negociações e protestos dos professores. Comecemos por aí. Que retrospectiva?

Temos sempre procurado dialogar com os sindicatos. Só no ano transacto, realizámos mais de 10 encontros com os sindicatos. Entendemos que há reivindicações justas e outras nem tanto. O nosso dever é acolher essas demandas, analisar e tomar decisões em linha, tanto quanto possível, com os objectivos da governação e das políticas educativas, e também numa aproximação às expectativas dos professores, de acordo com as possibilidades do país. Enfrentámos, de facto, no início de 2023-2024, algumas manifestações, ao longo do ano fomos dialogando e terminámos já num clima de pacificação das relações com os sindicatos.

Tivemos, a meio, o não lançamento das notas…

Sim, no segundo trimestre. O não lançamento de notas é um acto ilegal. É um acto que foge às regras democráticas e temos de respeitar as leis do país. O governo não se opõe às reivindicações de uma forma frontal, são normais em democracia. Aliás, tratámos todos os professores em pé de igualdade, independentemente de terem ou não participado nas manifestações e nas greves ou de criticarem o governo ou o ministro. Agora, usar os alunos como escudo para suportar e fazer valer reivindicações, pensamos que é ilegal e inconstitucional. Daí que, após várias tentativas de diálogo, tivemos que accionar a inspecção geral da educação. Os processos estão em andamento.

Quantos professores estão envolvidos nos processos disciplinares?

Cerca de 200, 250 no máximo. Que não lançaram efectivamente as notas, foram quatro. Esses quatro professores serão notificados, vamos ver em que moldes, mas não podemos deixar passar em branco. Neste caso, temos de impor a autoridade pedagógica, inspectiva, e a própria autoridade do Estado, e iremos tomar as medidas disciplinares que se impõem. Para nós, o mais importante é ter um clima de diálogo democrático, sereno nas relações, num processo de moderação e de tolerância, e que nós esperamos que outros titulares de cargos políticos também, que podem até ter mais responsabilidade, possam também agir no sentido de pacificação da sociedade cabo-verdiana.

Em Maio foi anunciada uma nova tabela remuneratória, que apaziguou a situação, mas também houve reclamações. Uma delas era que só entraria em vigor em Janeiro.

Tentámos chegar a um entendimento com os sindicatos, em Novembro de 2023, que não foi possível na altura. Portanto, também não foi possível incluir, no Orçamento do Estado de 2024, dotações para acomodar o impacto orçamental desse ajuste salarial. Sempre estivemos disponíveis para acordar uma tabela remuneratória, discutimos e avaliámos a possibilidade de um efeito retroactivo e faseamento da aplicação da nova tabela. Depois, chegámos à conclusão de que seria melhor, em vez de um faseamento que iria até 2026, concentrar a implementação, todo o impacto orçamental, em 2025. Comunicámos esta decisão aos sindicatos e chegámos a entendimento com o SINDEP e o SIPROFIS, no sentido de termos a tabela remuneratória, com um salário base dos professores com licenciatura de 91 mil escudos. O memorando com os dois sindicatos só não foi assinado porque surgiu a questão dos professores com o grau de mestre e doutor. Foi a única questão. Nós absorvemos a generalidade das observações e das sugestões que estão nos pareceres do SIPROFIS e do SINDEP. Entretanto, o SINDPROFIS não apresentou o parecer atempadamente. Convidámos o SINDPROFIS para uma reunião conjunta e este sindicato não participou. Penso que não é necessário extremismos, mas sim um espírito de diálogo. O Ministro procura fazer o máximo para atender as reivindicações dos professores. Os sindicatos têm também de fazer um esforço de convergência, porque se não fizermos esforços de convergência, nunca chegaremos a nenhum entendimento. O extremismo não nos leva a lugar nenhum.

As reclassificações estão concluídas?

As reclassificações dos professores que obtiveram o grau de licenciatura até 2022 estão. Já publicámos todas e já estamos numa gestão corrente. Os professores que obtiverem o grau de licenciatura podem, agora, solicitar a reclassificação e o pedido é tratado individualmente. Portanto, a principal pendência que havia, a reclassificação de professores, foi regularizada até Novembro de 2023, de acordo com o nosso cronograma, acertado com os sindicatos.

Fizemos o balanço, mas a “crise” continua. Tivemos o veto presidencial ao PCFR e os sindicatos já ameaçaram a convocar uma greve no início do ano lectivo.

Penso que os sujeitos políticos, os altos dignitários do país, todos devemos trabalhar no sentido da procura de entendimentos e de alinhamentos dentro da sociedade cabo-verdiana. Não devemos agir no sentido de agitar ainda mais a situação. O Ministro da Educação está sempre nesta toada de procura de entendimentos com os sindicatos, com os professores, não só em matérias salariais, mas em todas as matérias. O veto presidencial é um direito constitucional do Presidente da República. Agora é dar tempo, para ver se há espaço para continuarmos a dialogar e se esse diálogo leva a alguma solução. Penso que todos nós devemos fazer esforços e o Governo faz um esforço enorme. O Ministério da Educação é o maior empregador do país. Qualquer variação nos salários dos professores tem um impacto orçamental extraordinário. A nova tabela remuneratória tem um impacto de cerca de 1,2, ou 1,3 milhões de contos. Portanto, não é porque o Governo não quer, ou Ministro não quer [atender às reivindicações]. O Ministro quer e está disponível para ir ao máximo possível. O meu principal dever é defender os professores, mas temos de ter em conta equilíbrios macroeconómicos e das finanças públicas, que caberá ao Ministro das Finanças explicar melhor.

Falando do veto, o governo já enviou um pedido ao PR a apelar para aprovação do PCFR. Um dos pontos referidos pelo PR, é que ignora a Lei de Bases da Educação, o ponto 3 do artigo 71, ao assumir a licenciatura como opção fundamental. Há violação da Lei de Bases?

O veto presidencial é constitucional, porém não concordamos com os fundamentos jurídicos para esse veto, e já explicamos [publicamente] porquê. O Presidente pode ter outros fundamentos, mas a fundamentação jurídica ...

Há confronto ou não com a Lei de Bases?

Não. Provavelmente não terão lido muito bem a proposta que está no PCFR. O artigo 65 transcreve basicamente o que está no artigo referido da Lei de Bases. O Presidente da República faz referência ao número 3 do artigo 71, mas é, mais precisamente, o número 3 do artigo 72, que refere que cabe ao Estado, neste caso o Ministério da Educação, criar condições para a formação contínua dos professores. Ora, isto está transposto para o artigo 65 do PCFR em apreço, e seguintes, porque o 66 desenvolve [essa questão]. Portanto, não há uma incongruência entre aquilo que está na proposta do PCFR e aquilo que está na Lei de Bases. Antes pelo contrário, até reforçámos no PCFR que, além de criarmos as condições, cabe ao Estado, o Ministério da Educação neste caso, mobilizar meios para financiar a formação contínua dos professores. Os Centros de Formação a Distância já estão instalados, temos o Plano Nacional da Formação de Professores, realizámos acções de formação de professores. Não é uma novidade. Isto [que está em discussão], vem também do Estatuto da Carreira do Pessoal Docente em vigor. E sabemos que o Estatuto em vigor foi aprovado pelo Governo anterior, de que foi Primeiro-Ministro. Sabemos também quem deixou crescer pendências dentro do sistema educativo e deixou que os processos se arrastassem. Portanto, há uma incoerência jurídica e há igualmente uma incoerência política no posicionamento. Entendemos, por uma questão de reserva, que devemos dar tempo ao Presidente da República para reapreciar e apelamos ao senso de equilíbrio e da defesa do interesse público, que deve estar acima de quezílias politiqueiras. Não devemos utilizar o sistema educativo para outras disputas que não sejam as que visam a melhoria das condições laborais e remuneratórias dos professores e, fundamentalmente, a melhoria da qualidade do sistema educativo e do sistema de ensino. Neste quadro estamos disponíveis para o diálogo, já demos os esclarecimentos ao Sr. Presidente da República e o Governo solicitou a reapreciação do veto.

Um dos principais argumentos do Presidente foi que havia muita insatisfação à volta do Plano e seria necessário chegar a maiores consensos, para apaziguamento.

Este é um argumento político. Temos aqui um paradoxo, porque é preciso dialogar, sim, mas não podemos ficar eternamente [no diálogo] sem encontrar uma saída. E enquanto isso, temos os professores, os sujeitos interessados, a aguardar a actualização da tabela remuneratória. O Ministério da Educação submeteu o PCFR à aprovação pelo Conselho de Ministros, para poder ter condições de incluir na proposta de Orçamento 2025 o impacto da actualização da tabela remuneratória. Esta é a única forma que temos para implementar a nova tabela remuneratória. Se ficarmos ad eternum a discutir e à procura de um entendimento - quando já tínhamos até entendimento, pelo menos com o SINDEP e com o SIPROPIS, de que o salário base dos professores com grau de licenciatura seria de 91 contos e todos os outros salários seriam ajustados – não avançamos. Se reabrirmos este processo vamos demorar muito tempo. Quando é que os professores terão um aumento salarial? É preciso aqui algum equilíbrio, não só em termos das expectativas que temos de aumento salarial dos professores relativamente às possibilidades do país, mas também quanto ao timing de implementação. Nós queremos implementar a nova tabela remuneratória a partir de Janeiro, esperamos chegar às condições para esse efeito. Para implementar, temos de ter o decreto-lei que aprova o PCFR promulgado e publicado no Boletim Oficial. E, portanto, respeitamos os direitos e deveres constitucionais do Sr. Presidente da República, o Ministro não pode, naturalmente, interferir nas competências do Presidente da República, mas apelamos ao Sr. Presidente da República para, no quadro de diálogo normal [reverter o veto].

Os sindicatos queixam-se de que não conhecem o diploma final, de que o PCRF vem retirar o estatuto especial da classe docente, o desenvolvimento da carreira é barrado… enfim são várias queixas.

Eu penso que os líderes dos sindicatos devem estudar bem aquilo que dizem, para não estarem a contaminar negativamente a discussão. A carreira do pessoal docente é uma carreira do regime especial, nos termos da Lei de Bases do Emprego público, assim como os médicos, os magistrados, os diplomatas...O pessoal docente está abrangido pelas carreiras do regime especial da administração pública. Está claro e não há aqui nenhuma dúvida. Depois, o facto de estarmos a trabalhar um PCFR específico é exactamente porque estamos na presença de uma carreira regida por um estatuto especial. E, portanto, é uma carreira especial.

E o desenvolvimento da carreira? O texto, em vez de mencionar promoções de 5 e 4 anos, fala de 5 a 10 anos e de 10 anos a 15.

Os sindicatos também têm o dever cívico de explicar as coisas como deve ser. Talvez tenhamos de encontrar outros mecanismos de dialogar com os professores, uma forma mais directa [para evitar confusões]. Queremos sempre dialogar com os sindicatos de uma forma honesta e serena, mas sem deturpações. A proposta de decreto-lei que aprova o PCFR tem artigos que estabelecem as condições das promoções. Quem tenha de 5 a 10 anos de serviço, terá direito a uma promoção. Quem tenha entre 10 e 15, terá direito a duas promoções. E quem tiver mais de 15 anos, terá direito a três promoções. Isto é a regularização das promoções pendentes, que estavam congeladas, não só no sector da educação, mas em toda a administração pública. Quisemos, através desta medida legislativa, corrigir esta distorção e contemplar os professores com essas promoções. Seguimos aquilo que sempre dissemos.

Outra queixa é de que o Governo prometeu rever os montantes da pensão apenas a partir de 2026, e não oferece uma solução imediata para os professores aposentados?

Bom, temos disponibilidade para tratar esta questão, mas não é da competência exclusiva do Ministério da Educação. O Ministério da Educação é a janela de contacto dos professores com a administração pública, mas nós não gerimos o fundo de pensões. Somos um Governo, eu sou um membro do Governo e tenho o dever de trabalhar esta questão, mas não depende exclusivamente do Ministério da Educação.

Então, quais os próximos passos? Se o PR mantiver a decisão de veto, vão voltar às negociações?

Ainda não tomamos uma decisão. Já demonstramos que a fundamentação jurídica não tem consistência. Já mostramos que mesmo o artigo citado pelo Presidente da República, não corresponde àquilo que está na Lei de Bases do Sistema Educativo. Se o Sr. Presidente tiver questões substantivas, estamos disponíveis, mas para já não foi colocada nenhuma. A comunicação do veto não traz nenhuma, portanto ficamos a aguardar serenamente, sem interferir nas competências do Presidente da República, a sua posição final. Em função disso, os passos seguintes não serão uma decisão do Ministro, mas do Conselho de Ministros. Esperamos que não haja necessidade disso.

E para terminar esta questão dos professores, é um problema que não é de agora, não é só da educação, é um problema geral, mas parece estar pior, que é a fuga, as licenças sem vencimento, a saída de quadros. Como está, neste momento, a situação no Ministério da Educação?

Temos tido, anualmente, pedidos de licença sem vencimento, não é de agora. É um direito dos professores, mais uma vez, uma expectativa dos professores que procuram realizar os seus objetivos, o seu plano de vida, o seu projecto de vida e, portanto, nós não temos nenhum comentário a fazer sobre os pedidos.

Mas está aumentar?

Este ano ainda não fizemos um balanço actualizado dos pedidos de licença sem vencimento, mas andamos sempre à volta dos 200 pedidos.

Fala-se de uma vaga migratória?

Tem havido ligeiros crescimentos, sim, isso é normal, decorre das dinâmicas sociais. Temos mais professores, também é preciso dizer, e, portanto, é natural que haja mais pedidos de licença sem vencimento para a emigração. Mas sempre tivemos dificuldades na Ilha do Fogo, por exemplo, historicamente. Temos professores que ingressam no sistema educativo e depois pedem licença sem vencimento, por motivos diversos, e aqui em Santiago também. Nós encaramos isso como um direito dos professores, é legítimo, podem emigrar. O que não podemos é regressar a um sistema em que, para se sair do país, era necessária uma autorização do Estado.

Então o aumento não tem sido muito fora do padrão?

Eu considero que temos conseguido gerir a situação. Até agora, não registámos um incremento extraordinário, exponencial, como alguns dizem. No sector da educação, não temos registado isso, mas há, sim, pedidos de licença sem vencimento.

Fazendo agora um balanço do ano lectivo anterior, em termos de indicadores. O que se salienta?

De uma forma geral, estamos numa trajectória da melhoria a todos os níveis. Temos uma redução das reprovações e do abandono escolar: passamos de 6,1% de abandono escolar em 2016 no ensino secundário, para cerca de 2,1% em 2023. Os dados de 2024 estão a ser ultimados, mas também apontam para de 1,8% a 2,1%. No básico, está abaixo de 1%. São resultados extraordinários que simbolizam também os efeitos das políticas de acção social escolar e de inclusão educativa, o [intuito de] não deixarmos ninguém para trás. Como disse, estamos a registar melhorias genéricas, especialmente do lado das aprovações, no ensino básico e secundário. No entanto, há assimetrias entre meninos e meninas. Temos de fazer um esforço na abordagem das políticas de género dentro do sistema educativo cabo-verdiano, ter políticas direccionadas para combater o insucesso escolar dos rapazes, para podermos ter um melhor equilíbrio na ponta final do sistema educativo. Começamos com mais rapazes e terminamos com uma disparidade bastante acentuada, devido a circunstâncias diversas que temos de combater. De qualquer forma, o balanço que fazemos é de trajectória positiva dos resultados das aprendizagens.Entretanto, vamos entrar agora, em 2024-2025, no último ano da reforma curricular, com a reforma do 12º ano. Introduzimos novos programas das diversas disciplinas em todos os anos, introduzimos manuais até o 9º ano de escolaridade e neste ano lectivo, 2024-2025, vamos ter os manuais do 10º ano e assim sucessivamente, como temos anunciado.

Ainda não há manuais do 11.º ano?

Os programas do 11º ano estiveram em experimentação durante o ano lectivo de 2023-2024. Agora, nesta fase, temos a validação dos programas para podermos desencadear o processo de elaboração dos manuais. O serviço já está contratualizado com um operador externo, está garantida a elaboração dos manuais do 11º e 12º ano, mas é sempre com o desfasamento de um ano. Também com os manuais estamos a seguir este percurso normal, mas pode haver ligeiros atrasos devido aos processos de contratação pública, da adjudicação dos serviços. Vamos ter os manuais do 10º ano na versão digital em Dezembro e no circuito de distribuição nas papelarias, a partir de Janeiro de 2025, se não houver nenhuma incidência negativa. Para além da reforma curricular, temos a implementação do novo sistema de avaliação das aprendizagens, que tem como principal objectivo fornecer elementos de comparação a nível nacional, em termos de avaliação das aprendizagens, para uniformização dos processos pedagógicos. O sistema de avaliação visa ainda a comparabilidade com outros sistemas educativos internacionais . Procuramos o alinhamento quer das matrizes curriculares, quer do sistema de avaliação das aprendizagens, com os modelos mais consolidados, da OCDE, como temos dito sempre. Mas é preciso concretizar um pouco mais. Precisamos que os alunos do 12º ano tenham o perfil adequado para ingressarem no ensino superior nos países que acolhem os maiores contingentes de estudantes cabo-verdianos, sendo Portugal o exemplo mais próximo.

Os primeiros alunos desta reforma sairão para o ano…

Em Junho de 2025, teremos os primeiros alunos a sair da reforma educativa e quando os primeiros contingentes chegarem às universidades, já podemos verificar verdadeiramente se o perfil de saída do 12º ano está em linha com o perfil de ingresso no ensino superior. Nessa altura, poderemos avaliar e, com tranquilidade, se houver disparidades, ajustar um pouco. Uma área que podemos verificar rapidamente é a matemática, e outras ciências exactas cujos conhecimentos são universais. Se um aluno cabo-verdiano, ao ingressar no ensino superior em Portugal, por exemplo, não tiver um perfil equiparado ao aluno que sai do 12.º ano nesse país, temos de ajustar um pouco. Mas esperamos que não haja essa disparidade até porque os programas do ensino secundário estão sendo elaborados em convergência com os modelos europeus, neste caso, de Portugal. Aliás, contamos com o apoio científico e académico das instituições portuguesas e os manuais seguem este padrão.

Entretanto, já foi feita a avaliação da reforma do básico. Quando o relatório vai ser tornado público?

Ainda não validámos o relatório, mas, o que podemos constatar é que há sinais evidentes da melhoria do sistema educativo cabo-verdiano. Dei já alguns indicadores como o abandono escolar e o aproveitamento. Temos também um melhor domínio das línguas. Mas, temos de continuar a melhorar.

Há recomendações?

Há. Por isso, apresentamos uma candidatura aos fundos de parceria global para a educação e estamos a canalizar esses fundos para duas grandes áreas de intervenções. Uma é a consolidação do pré-escolar, visando a sua universalização e obrigatoriedade, outra é a consolidação da reforma no 1.º ciclo do ensino básico obrigatório, para termos bases sólidas em termos de alfabetização para que os alunos possam ter condições de aprendizagem ao longo da vida. Temos sempre de fazer avaliações para podermos tomar as melhores decisões. Tomamos esta decisão de canalizar os recursos para a consolidação da reforma no 1.º ciclo do básico, porque entendemos que ainda é preciso continuar a fortalecer este ciclo.

Faz parte das recomendações.

Faz parte.

Entretanto, uma das grandes apostas da nova reforma seria a área da TIC e outras tecnologias. Esta aposta parece estar a ser lenta, as escolas não têm condições, laboratórios. Enfim, como estamos nas TIC?

Não é bem assim. As disciplinas ligadas às TIC são várias e são disciplinas do plano curricular do ensino secundário, mas TIC, a disciplina central, é uma disciplina obrigatória do 9º ao 12º ano, em todas as áreas. Temos laboratórios tecnológicos e salas de informática nas escolas secundárias, podem ser insuficientes, mas estamos a reforçá-los. Instalámos no final do ano lectivo 2023-2024 44 laboratórios nas escolas secundárias, todas as escolas secundárias do país, e queremos negociar com financiadores um segundo pacote para reforçarmos os laboratórios tecnológicos e garantirmos a sustentabilidade da sua gestão. Estamos a mobilizar financiamentos. As escolas secundárias, todas, têm acesso à internet do Estado, embora seja preciso reforçar a banda larga para que todos os alunos e os professores tenham acesso ilimitado. Portanto, ao nível secundário, consideramos que estamos a cumprir os objectivos pretendidos para a reforma. Todos os alunos, ao saírem do 12º ano têm que ter competências basilares nas tecnologias e isso será cumprido. Queremos colocar as TIC como disciplina obrigatória no 2º ciclo do básico, pelo que todas as escolas no país têm que ter condições para terem aulas de TIC. Não podemos criar um enviesamento dentro do sistema educativo, em que aqueles que estão na periferia ficam cada vez mais na periferia.

As TIC que não faziam parte do currículo a partir do 5º ano?

Sim, é modular sempre. Em algumas escolas não temos condições de infra-estruturas e podemos não ter condições para ter equipamentos. Somos realistas. E o realismo aponta no sentido de apostarmos, cada vez, mais no ensino das tecnologias na fase final do 2º ciclo,

7º ou 8º ano de escolaridade, e depois no ensino secundário.

E quanto às actividades ditas extracurriculares como concursos, e outras?

Está a acontecer e faz parte das orientações do Ministro da Educação. Há, por exemplo, o concurso nacional de leitura. Participamos inclusive no concurso de leitura da CPLP, realizado em São Tomé e Príncipe [em Julho]. Quem ficou em primeiro lugar foi uma aluna do interior de Santiago, de São Salvador do Mundo [Elisiane Cabral]. Temos concursos das línguas estrangeiras, olimpíadas das ciências, da matemática e também actividades na área cultural. Agora, é preciso, de facto, reforçar as actividades extracurriculares. Se, por um lado, estamos praticamente em linha e em convergência curricular com os países mais avançados, em termos da carga horária lectiva do núcleo central das disciplinas obrigatórias, por outro, temos que ter espaço para incluir actividades extracurriculares. Diria que o maior desafio que teremos no futuro próximo será o alargamento da disponibilidade de infra-estruturas educativas para podermos acolher os alunos de manhã e à tarde, como acontece em outros países. Ora, se alargarmos o horário de permanência dos alunos dentro do ambiente escolar, podemos alargar as actividades em diversos domínios, mas para isso precisamos de fazer investimentos. O país precisa de continuar a mobilizar meios e recursos para ampliar a oferta de infra-estruturas educativas.

Mas, de momento, parece haver uma grande discrepância entre as escolas no que toca a essas actividades não obrigatórias. Temos escolas muito activas, mas outras, nada. Como nivelar (por cima, claro)?

Temos escolas bastante activas. Uma das escolas que quero destacar é a escola da Achada Grande Frente, na cidade da Praia, mas temos outras escolas espalhadas pelo país. A escola secundária de Tarrafal de São Nicolau ou a escola de Ponta Verde no Fogo, por exemplo. Há escolas que têm um activismo muitíssimo grande. Portanto, há escolas mais dinâmicas, depende da capacidade de gestão das escolas, mas estamos em processo de criação do Conselho Nacional de Coordenação pedagógica para acompanhar as escolas com uma maior intensidade e uma maior presença efectiva da supervisão pedagógica e, nesse quadro, penso que podemos partilhar as boas práticas que ocorrem nos diversos contextos e ir uniformizando a oferta de actividades extracurriculares, sendo certo que estas actividades, às vezes, são contingenciais ao ambiente que temos.

No que toca ao envolvimento dos pais na vida escolar? Como tem sido?

A própria lei de organização e funcionamento dos agrupamentos é que determina o funcionamento do Conselho da Escola. O Conselho da Escola integra representantes da comunidade educativa envolvente. E portanto, nós temos estado a fazer esforços enormes para termos as escolas todas a funcionar com todos os órgãos. O Conselho da Escola é importante porque permite que haja um diálogo fluído entre professores, pais encarregados de educação, entre a gestão da escola e parceiros da escola, para poderem mobilizar recursos adicionais para aplicar no que for necessário.Isto, sendo certo que cabe ao Estado dotar as escolas de orçamentos próprios para não ficarem na dependência da boa vontade dos parceiros. Mas há uma dinâmica crescente. No início das aulas houve reuniões em todo o país, em todas as escolas. Instituímos o Dia Nacional de Limpeza das Escolas, no sábado que antecede o início das aulas, e que este ano é no dia 14 de Setembro, exactamente para possibilitar uma interacção, uma confraternização entre todos os sujeitos e agentes educativos antes do início das aulas. Mas depois do início das aulas, normalmente tem havido encontros entre a direcção da escola, os professores e os pais encarregados de educação. Tivemos reuniões participadas em quase todos os concelhos. É preciso saudar e reconhecer que os pais têm um interesse crescente no seguimento e acompanhamento dos seus filhos, o que deve ser valorizado e incentivado pela sociedade.

Falamos do ensino básico e secundário. Para terminar, o ensino superior. Já foi anunciada um nova instituição de ensino superior no Sal, temos polos em várias ilhas, temos mais duas universidades religiosas, no total temos 12 universidades. Esta proliferação de polos e universidades não é contraproducente para a sustentabilidade do ensino superior?

É preciso ver a tendência mundial e outros contextos que podem ser comparáveis ao contexto cabo-verdiano. Temos, por exemplo, as Ilhas Canárias, que são um arquipélago.

Mas são Europa, há outros apoios.

Nós temos a nossa ambição é convergir com a Europa e, portanto, temos que ver o que se passa nos contextos mais desenvolvidos e ver se há alguma possibilidade de integração no contexto cabo-verdiano. O ensino superior cabo-verdiano está em processo de consolidação, não é um sistema ainda consolidado. Durante este mandato do governo, a agência reguladora do ensino superior, autorizou o funcionamento de duas universidades de inspiração religiosa, uma católica e outra da igreja do Nazareno. São universidades específicas e penso que a sociedade cabo-verdiana entenderá muito bem que não devemos criar obstáculos à instalação do ensino mais vocacional das religiões e das igrejas que fazem parte da identidade cultural cabo-verdiana.

Mas e quanto às universidades públicas. Temos pólos da UniCV na Assomada, no Fogo, pólos da UTA em Santo Antão…

A Universidade de Cabo Verde tem o seu foco principal na cidade da Praia e é aqui que tem que estar concentrado o seu esforço de desenvolvimento institucional. Almejamos apoiar a UniCV na institucionalização da Faculdade de Ciências Médicas, na Praia, mas nós respeitamos a autonomia das universidades. Não podemos ir contra a autonomia das universidades e a Universidade de Cabo Verde tem autonomia. Portanto, tem um polo na Assomada e procura dar uma resposta circunstancial à Ilha do Fogo, particularmente na área da geologia. Já temos o domínio de investigaçãopresente no Fogo e é preciso ter uma oferta formativa para dar solidez ao polo. Depois temos a Universidade Técnica centrada em São Vicente e cujas referência são as Ciências do Mar e as Engenharias. Tem de se consolidar enquanto Universidade, partindo desta referência estratégica de formação para atender a uma demanda crescente da economia cabo-verdiana e da até procura externa, porque muitas empresas de navegação contratam profissionais em São Vicente, formados no ISECMAR, que é Unidade Orgânica da UTA. Então, temos que consolidar a UTA em São Vicente. Vamos ter no Sal uma oferta direccionada para os domínios do turismo e da aeronáutica para responder às dinâmicas e vocação da Ilha do Sal e de Cabo Verde. Penso que o Instituto Superior da Aeronáutica e Turismo na Ilha do Sal será uma ponta avançada da internacionalização do ensino cabo-verdiano. Pela via da notoriedade turística que a ilha tem, penso que é possível atrair estudantes estrangeiros para estudarem na Ilha do Sal. Portanto, faz sentido do ponto de vista da dinâmica do Sal, do crescimento demográfico, das actividades económicas, do contributo que a ilha dá para o desenvolvimento nacional e da pujança da sua juventude, que possa também ter ofertas que respondam às necessidades do mercado local e às necessidades do país no seu todo. Deste ponto de vista, estamos a consolidar o sistema universitário das universidades públicas. Quanto às universidades privadas, são universidades que enfrentam algumas dificuldades. Nós temos em processamento um concurso para o desenho do modelo de financiamento do ensino superior, com o financiamento do Banco Mundial, mas ainda não desencadeamos a consultoria para podermos ver como encarar o financiamento das universidades privadas.

Mas o Governo tem alguma obrigação de apoiar as privadas?

Não há uma obrigação. O Governo tem o dever de zelar pela solidez e consolidação do sistema universitário cabo-verdiano. Isso faz parte das medidas de política e das políticas públicas. Portanto, temos que trabalhar com as universidades privadas para ajudar as universidades privadas a terem factores de sustentabilidade e de viabilidade. Por isso, temos que ver do lado institucional o que é possível fazer para ajudar as universidades privadas.

Mesmo quando elas concorrem com a pública, em termos de recursos?

O nosso sistema universitário foi construído com base na existência de universidades públicas e universidades privadas, e não podemos reverter uma solução que nos parece que está em linha com os valores da liberdade, das escolhas dos jovens, dos cidadãos de uma forma geral. Os cidadãos são livres de escolherem onde querem frequentar o ensino superior. De todo modo, a concentração do Estado é no financiamento da construção de infra-estruturas, em primeiro lugar. As infra-estruturas da Universidade de Cabo Verde e da Universidade Técnica do Atlântico são propriedade do Estado de Cabo Verde. Depois, é preciso garantir a sustentabilidade das universidades públicas. É um dever quase constitucional e, portanto, temos que financiar. Está no orçamento do Estado, temos que garantir o financiamento, aliás, assinamos o contrato-programa com a Universidade de Cabo Verde exactamente para podermos estabelecer objectivos estratégicos e as metas que pretendemos alcançar com os recursos públicos colocados à disposição da Universidade de Cabo Verde. Porém, não podemos descurar a existência de universidades privadas.

Voltando ao público. A grande novidade do ensino superior, este ano, será essa escola aeronáutica?

Sim, o Instituto Superior de Aeronáutica e Turismo poderá entrar em funcionamento neste ano académico 2024-2025. Mas, como se sabe, isso não depende exclusivamente do Governo, e nem tão pouco da Universidade.

Então ainda não está certo que entre em funcionamento neste ano lectivo?

A questão é ter a própria instituição certificada e acreditada, e a responsabilidade e as competências neste domínio cabem à Agência Reguladora. Depois, tem que ter os cursos igualmente registados. Enquanto não tiver isso não pode abrir. Portanto, sou prudente. A medida de política é no sentido de termos o Instituto a funcionar no Sal. Se vai funcionar, depende dos registos do sistema de regulação que tem essa competência e nós não interferimos na regulação do ensino superior.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1189 de 11 de Setembro de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,14 set 2024 9:01

Editado porAndre Amaral  em  18 set 2024 23:30

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