Quando Carla Grijó chegou a Cabo Verde, a 1 de Setembro de 2021, o mundo recuperava dos efeitos da pandemia. O país reabria aos poucos: ainda havia máscaras, limitações no número de pessoas em reuniões e alguma distância física, mas já não se vivia o confinamento rígido dos meses anteriores.
Chegou numa altura boa, considera. Sentia-se uma vontade generalizada de fazer avançar projectos que tinham ficado suspensos perante a emergência de saúde pública.
No momento em que assumiu funções, retomavam-se as prioridades que haviam sido estabelecidas anteriormente: “metas de desenvolvimento sustentável, de transição energética, de progresso dos indicadores sociais”, entre outros.
A vontade de avançar e superar o impacto que a pandemia tinha tido no país, nomeadamente no Turismo (que representa cerca de 25% do PIB) era grande e partilhada. E esse impulso marcou, recorda, o início do seu mandato.
Nos anos seguintes, o mundo continuou a mudar intensamente. A invasão da Ucrânia pela Rússia trouxe a guerra e crises nas cadeias de abastecimento, agravou-se a crise do multilateralismo, aumentou a tensão geopolítica e o populismo, endureceram-se as políticas migratórias. Mudanças que afectaram todos, à escala global.
Mas em Cabo Verde, defende a embaixadora, “houve sempre um esforço, mesmo durante as crises, de manter o rumo”. E conseguiu-se.
“Na hora di bai”, e olhando para trás, define a sua experiência em Cabo Verde como “muito intensa”, com muitas horas de trabalho, mas também “muito gratificante”. Marcou-a a facilidade de acesso e comunicação com autoridades, sociedade civil e media. Um grau de proximidade e “uma certa informalidade até nas relações” que amplifica os resultados.
“Essa relação de confiança que se estabelece é uma das principais marcas que levo, em termos profissionais”, conta.
Em termos pessoais, não poupa elogios à chamada morabeza. "Poucos lugares no mundo acolhem quem chega como se fosse um membro da família, com relações humanas desinteressadas, genuínas", diz, acrescentando: "Penso que os cabo-verdianos talvez não tenham a noção de como a morabeza é uma marca, uma mais-valia. Essa forma de receber é algo que guardo com muito carinho e que me fará certamente voltar, nem que seja como turista."
Quatro anos e várias mudanças locais e globais depois, chega o momento do balanço.
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Que mudanças trouxeram os últimos anos aos paradigmas da cooperação entre Cabo Verde e a UE?
Mais do que mudanças, acho que houve uma evolução. A nossa cooperação com Cabo Verde foi, até há relativamente pouco tempo, muito focada no programa de apoio orçamental. Negociávamos com o governo as prioridades, onde a transição energética assim como o tema da protecção social e da erradicação da pobreza extrema ocupavam um lugar central. Eram as duas grandes linhas de acção do programa, a par de alguma atenção dada a programas de reforma na governação económica, índices de transparência e outros indicadores deste tipo. A partir da altura em que surge a iniciativa Global Gateway, assistimos a uma alteração na nossa cooperação, pois esta iniciativa procura é mobilizar investimentos em escala, o que não é possível fazer apenas com o orçamento público. Há, no entanto, uma correlação. No fundo, procuramos usar os orçamentos públicos para atrair investimentos de instituições financeiras, como o Banco Europeu de Investimentos (BEI), mas também do sector privado, para conseguir escalar os investimentos necessários.
Cabo Verde tem mostrado capacidade para atrair esses financiamentos?
Cabo Verde tem sido um caso exemplar de sucesso no contexto desta iniciativa. Sendo um país pequeno, com uma população reduzida, conseguiu já garantir mais de 380 milhões de euros.
Tinha-se falado em 300 milhões de euros para os sectores digitais, energético e portuário.
Esse valor já aumentou. O que justifica esse aumento é sobretudo o sector das infra-estruturas portuárias e a chegada de novos actores, dentro da Equipa Europa. Por exemplo, contamos agora com a Agence Française de Développement, que, mercê desta iniciativa Global Gateway, vai reentrar em Cabo Verde após 15 anos de intervalo.
Mas o apoio financeiro é do Banco Europeu de Investimento (BEI)?
É no âmbito da Equipa Europa. Uma parte importante deste investimento corresponde a empréstimos concessionais do BEI, mas o que permite oferecer boas condições de crédito, e reduzir o risco para o BEI, é o apoio do Orçamento da União Europeia: há uma componente de subvenção nos empréstimos soberanos e uma garantia nos do sector privado, como os da Cabeólica ou da CV Telecom.
Como foram definidos os sectores que estão a ser apoiados em Cabo Verde?
Em articulação com as autoridades de Cabo Verde e também resultado do trabalho que já vinha sendo feito no contexto quer do programa de apoio orçamental, quer do diálogo regular no Grupo de Apoio Orçamental, que reúne vários parceiros e permite identificar as prioridades em termos de desenvolvimento económico e diversificação da economia cabo-verdiana. Na energia renovável, por exemplo, já vínhamos fazendo um trabalho substancial no contexto do programa de apoio orçamental, que permitiu apoiar Cabo Verde na definição dos seus planos directores de energia. Todas as componentes técnicas, definidas pelo Ministério da Energia, que permitiram, depois, estabelecer a meta de alcançar 50% de fontes renováveis até 2030. Acho que é possível e agora até já se apontam metas mais ambiciosas. E para que essas metas sejam possíveis, são necessários investimentos. Um grande investimento que se vai concretizar através da Global Gateway é a Pumped Storage Facility (Central de Bombagem Hídrica), na ilha de Santiago. Segundo os especialistas, este era um elo que faltava, porque vai possibilitar que haja um fornecimento estável e regular à rede eléctrica. A energia solar e a eólica são fontes sujeitas a picos [de produção], pelo que é preciso um elemento estabilizador. Esta central é esse elemento. E, com isso, acredita-se poder dar o salto necessário para atingir as metas da transição energética.
Da sua experiência, as prioridades têm sido bem alinhadas com as necessidades do país?
A da transição energética parece-me uma aposta muito evidente. Vai no sentido de tornar o país menos dependente de combustíveis fósseis importados, que são muito voláteis. E o país não tem escala para negociar preços. Portanto, quanto mais autónomo o país for em termos energéticos, mais resiliente se torna também. Além disso, há um nexo entre energia e água, já que praticamente toda a água utilizada é dessalinizada, um processo que consome muita energia. Se o custo da produção de energia baixar, isso terá impacto também no preço da água. Esse efeito pode desbloquear a actividade económica, nomeadamente na agricultura. É um efeito em cadeia: o país ganha mais autonomia também em termos de segurança alimentar. Outro grande investimento em curso é a melhoria das infra-estruturas portuárias. Dada a condição arquipelágica de Cabo Verde, é fundamental. E já que estamos a modernizar os portos, que estes possam também seguir a tendência de uso de energias renováveis e uma maior digitalização dos seus procedimentos. É uma oportunidade não só para melhorar aquilo que está construído em betão, mas para introduzir sistemas mais inteligentes e mais amigos do ambiente.
Abrange todos os portos?
Há uma lista de portos indicada pelo governo de Cabo Verde. A razão pela qual o valor do nosso apoio se vai alterando é porque negociámos um framework agreement, um acordo-quadro, que o permite, à medida que os projectos vão avançando, e permite a introdução de novos projectos. Neste momento, os portos incluídos são Porto Grande, no Mindelo; o Porto da Palmeira, no Sal; e o Porto de Porto Novo, em Santo Antão. Começamos a olhar para a Praia, mas ainda não está incluído no volume financeiro que já conseguimos mobilizar. Mas, como disse, à medida que os projectos vão atingindo maturidade, vamos procurar mobilizar os recursos. A Cabnave, que não referi, também faz parte do pacote.
E há ainda o sector digital.
É uma aposta forte. Pela localização estratégica, passam por aqui vários cabos submarinos de fibra óptica, incluindo o EllaLink, que foi financiado pelo BEI - é uma espécie de Global Gateway antecipado. Mas Cabo Verde está também na lista de países que irão beneficiar de um futuro cabo que ligará a Europa à costa atlântica de África, até à África do Sul. Será um projecto transformador, que permitirá melhorar o acesso à internet em todos estes países africanos, incluindo Cabo Verde. Já está mobilizado também um apoio, na janela do sector privado, à CV Telecom, para melhorar as ligações através de cabos submarinos interilhas. Por enquanto, temos estado concentrados nas infra-estruturas da conectividade digital, e também algum apoio à melhoria da cibersegurança. Entretanto, há uma área de cooperação para a qual temos ideias, embora ainda não tenhamos um programa definido. Refiro-me à formação, capacitação e apoio a empresas do sector digital, que irá permitir criar emprego nesse sector, para cabo-verdianos ou até para nómadas digitais. Cabo Verde está numa posição que lhe permite ser um prestador de serviços na área digital e pode procurar nichos de mercado, nomeadamente no mercado lusófono.
Além destes, que outros marcos é que consideraria que teve este seu mandato?
Um resultado importante, que conseguimos recentemente e que me deixa particularmente satisfeita, foi na área da segurança marítima. Quando cheguei, há quatro anos, todas as autoridades competentes manifestavam o desejo de intensificar o pilar da segurança e defesa da nossa Parceria Especial. Havia já algumas iniciativas em curso, como as presenças marítimas coordenadas, que estabelecem uma presença regular de navios das marinhas de alguns Estados-membros da UE em Cabo Verde, e que têm também um papel dissuasor de actividades ilícitas no mar. Mas para um país marítimo como Cabo Verde, é fundamental ter alguma capacidade nacional de vigilância e intervenção nas águas sob a sua jurisdição. Essa capacidade tem sido limitada. Com a medida de assistência ao abrigo do Mecanismo Europeu de Apoio à Paz,que foi aprovado no passado dia 8 de Julho, vamos poder apoiar Cabo Verde no reforço dos meios. Sempre tivemos programas na área da capacitação, formação, aquisição de meios informáticos e aplicações, mas com o Mecanismo Europeu de Apoio à Paz, que é financiado pelos orçamentos dos Estados-membros da UE (portanto, fora do orçamento da UE), há agora a possibilidade de apoiar com a aquisição de equipamento militar, algo que antes não existia. A medida prevê, em concreto, a aquisição de um Ocean Patrol Vessel, que, em termos coloquiais, é como um segundo Guardião, o que vai permitir duplicar a capacidade de intervenção. Haverá também formação de técnicos, incluindo de manutenção. Penso que Cabo Verde está cada vez mais consciente que não basta ter os meios, é preciso ter capacidade de os manter.
Em relação à economia azul, houve a renovação do acordo de pesca e surgiu o West Africa Sustainable Ocean Program - WASOP. O que é este programa e o que traz para Cabo Verde?
O WASOP tem uma componente da Economia Azul que vai ser gerida a partir de Cabo Verde pela Agence France Expertise, a agência de implementação que foi seleccionada para o efeito. Penso que o lançamento oficial do programa terá lugar durante a Ocean Week, embora já possamos adiantar algumas informações. O programa, que inclui três componentes, terá um valor global de 59 milhões de euros e abrangerá os 13 países costeiros da África Ocidental. Após o lançamento, a agência de implementação deverá dialogar com cada país para definir as prioridades nacionais. Mas, além do WASOP, a própria Global Gateway versa a economia azul. Ao investir nas infra-estruturas portuárias, visa também potenciar as actividades económicas ligadas aos portos. Um exemplo é o Porto da Palmeira, incluído na lista da Global Gateway para responder a uma necessidade referidas pelos armadores: permitir à frota nacional descarregar mais perto do Banco de Nova Holanda, evitando o trajecto até São Vicente. Com infra-estruturas de refrigeração já existentes, a melhoria das condições do porto terá impacto directo na actividade económica deste sector. Penso que é importante mantermo-nos atentos àquilo que são as necessidades expressas pelos diferentes sectores, incluindo o sector privado.
Falámos de vários projectos de grande escala, mas há algum projecto de menor dimensão pelo qual tenha um apreço especial?
Há um projecto pequeno em termos de volume financeiro, mas pelo qual tenho um grande apreço: o apoio às organizações da sociedade civil na prevenção do abuso sexual de crianças e adolescentes. É coordenado pelas Aldeias SOS e envolve outras ONGs e instituições, incluindo o ICCA. Estamos a financiar as organizações com o objectivo de fortalecer o trabalho em rede, o que pode fazer a diferença, até porque desmultiplica os apelos, o diálogo, as entidades que podem apoiar. A prevenção do abuso é uma prioridade que penso ser muito importante para Cabo Verde e já foi assumida pelo governo, que declarou a política de tolerância zero. Temos a noção de que não é com este projecto que vamos resolver um problema com uma magnitude tão grande, que está enraizado na sociedade. Este projecto é uma gota no oceano, e sendo um problema da sociedade cabo-verdiana, só poderá ser resolvido internamente, mas penso que o facto de a UE ter mostrado disponibilidade para apoiar estas organizações, tanto públicas como privadas, ajuda a criar uma dinâmica. Gostaria de sublinhar é que não é em qualquer país africano que seria possível trabalhar um tema tão sensível, porque há sempre o risco de, sobretudo quando são entidades externas, ser visto como estando a ter uma atitude moralista. E não é, de facto, essa a intenção. A intenção é mesmo apoiar entidades que já estão a trabalhar sobre o assunto.
Falando de África, vimos a CEDEAO perder três membros. Que papel acha que Cabo Verde pode ter na relação entre a UE e a região, e até com o continente africano?
Penso que, historicamente, Cabo Verde é um daqueles países que tem, desde logo, um efeito demonstrativo. Aliás, este ano, em que se celebram os 50 anos da Independência, é um bom momento para reflectir sobre as apostas que fez: o investimento no capital humano, no desenvolvimento humano no geral e na consolidação da democracia. Tudo isso acabou por traduzir-se em ganhos, não apenas no plano político, mas também na economia e na sociedade. Quando comparamos Cabo Verde com outros países da região, vemos que há uma diferença bastante contrastante. Como os países são diferentes, obviamente, não se pode esperar que as soluções que foram ensaiadas em Cabo Verde se possam transpor directamente para outras realidades. Mas, acho que o país tem também um papel, quase de mediação: é um multilateralista nato. Cabo Verde nasceu, no fundo, de uma ideia multilateral, com muito apoio da comunidade internacional, em especial das Nações Unidas. Então, penso que tem essa capacidade, porque fala a partir da própria experiência, que é uma experiência africana, sobre como o multilateralismo pode produzir resultados. Além disso, neste momento precisamos de mais vozes moderadas, que é justamente o que está a faltar, de forma geral. E Cabo Verde é uma dessas vozes. Mesmo que possamos não estar a prestar atenção, porque tendencialmente os extremos fazem mais ruído e acabam por ocupar mais espaço na atenção mediática, essas vozes moderadas vão construindo pontes e soluções. Mesmo no contexto da CEDEAO, que é a pergunta que me colocou, penso que Cabo Verde pode ser essa voz. O diálogo é sempre a via de se encontrar soluções. Já tem havido algumas iniciativas nesse sentido. Lembro-me, por exemplo, da conferência [“Liberdade, Democracia e Boa Governança”], na ilha do Sal, em Abril de 2024, em que esteve presente o Representante Especial da UE para os Direitos Humanos. É um exemplo. Vai haver no início de Setembro, uma conferência da UNESCO para a qual vão ser convocados vários países da região, sobre o tema da desinformação. Acho que o território de Cabo Verde é uma espécie de terreno neutro para se poder ter uma conversa menos carregada, com morabeza, sobre estes temas.
Falou do multilateralismo. É sabido que está em crise.
De facto, o multilateralismo está sob ataque, mas sinceramente não vejo outra forma dos países resolverem problemas que nos afectam a todos sem ser pela via do multilateralismo. Um exemplo recente: participei na abertura de uma pré-conferência no Tech Park, na Praia, que prepara outra maior a ter lugar em 2026, em Dakar, sobre o uso de satélites incluindo europeus, para criar sistemas de Early Warning (alerta precoce) para desastres naturais. São sistemas que salvam vidas, prevenindo também perdas materiais. Esta iniciativa, apoiada pela UE, que envolve também a União Africana e várias entidades africanas, é um exemplo claro de como o multilateralismo é necessário. As alterações climáticas não são um risco futuro: são uma realidade. E é preciso usar a ciência e a tecnologia para adaptar e proteger as populações. Claro que um país rico pode criar o seu próprio sistema e ficar por aí. Mas faz todo o sentido se pudermos partilhar esses conhecimentos e essa tecnologia com outras regiões e criar sistemas regionais e nacionais que possam fazer o mesmo. Quando se diz que o multilateralismo está em crise, é verdade. Mas ainda funciona em iniciativas como esta. E precisamos de mais exemplos assim, para que as pessoas não desacreditem. Porque, de facto, não há outro modelo. As alterações climáticas, o crime transnacional, não conhecem fronteiras. Se não houver formas dos Estados cooperarem, não há forma de combater estes desafios que são globais e são comuns de forma eficaz.
E como antevê o futuro da relação entre Cabo Verde e UE?
A relação é muito sólida. Quando cheguei, muito fruto da pandemia, que foi um corte relativamente longo, e também devido à rotatividade nas instituições, sentia que Cabo Verde não estava muito no radar de Bruxelas. Hoje está. Já não preciso de ir a Bruxelas chamar a atenção para Cabo Verde. Isso acontecia também porque há uma tendência, que não é só europeia, é geral, de dar mais atenção aos países onde há mais problemas. Mas hoje são os próprios colegas, em Bruxelas, que usam Cabo Verde como exemplo, pela sua democracia estável, pelos índices de desenvolvimento humano, pelos 50 anos de percurso notável que transformaram um país antes considerado inviável num país de rendimento médio-alto. É notável. Mas, sobretudo, é olhar Cabo Verde como uma ponte entre a Europa e África. Um país que compreende os dois lados e que pode ajudar a Europa a comunicar melhor com os seus parceiros africanos. E também um país que é um bom “laboratório” para testar soluções e experiências, como é o caso das energias renováveis. Então, vejo um futuro promissor para as relações entre Cabo Verde e a UE. Temos muitas frentes de cooperação abertas, que, claro, vão exigir investimento, não só financeiro, mas também investimento pessoal e político, de um lado e do outro. Mas é só olhar para os resultados: há uma tendência natural para Cabo Verde e a UE fortalecerem as suas relações.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1234 de 23 de Julho de 2025.