Que reflexões lhe suscitam o Dia Internacional da Democracia.
Acho que é importante haver uma data para assinalar a democracia. E nunca como hoje que essa importância simbólica e política se manifesta. Nós vivemos um tempo, como é visível, de uma tentativa de cerco à democracia no plano internacional. Nós vivemos tempos de perigos que rondam o ideário democrático e até se podia dizer, através de uma imagem, que o campo democrático, os democratas, as democracias neste momento se encontram numa fase de resistência, de defesa, procurando reorganizar forças para, no momento adequado, retomar a sua afirmação crescente no plano internacional. Basta vermos o que se passa hoje na Europa, na África, o que se passa na Ucrânia desde a invasão russa de há mais de três anos. Se pensarmos também na visível reorganização, no reagrupamento e aglutinação das forças dos países, das personalidades, das autocracias e das ditaduras, nós percebemos que são tempos que não são muito fáceis para quem é democrata e para as democracias. Portanto, eu tenho dito que é como se tivéssemos neste momento a haver a necessidade de uma resistência, mas é claro que a resistência implica acção? Portanto, a democracia, os democratas, os regimes democráticos, têm que continuar a afirmar-se, a explicar-se, a fazer pedagogia, a defender-se, para que esse regime, esse sistema político, esta forma de vida, que é a democracia, possa continuar a ser o fundamento para a criação e desenvolvimento de sociedades livres, de sociedades de homens e mulheres livres. Portanto, haver uma data que é o Dia Internacional da Democracia é importante simbolicamente para nós termos essa advertência permanente de que é preciso lutarmos pelas nossas convicções, pelos nossos ideais já que estamos convencidos de que é em regimes de liberdade que nós somos mais criativos, mais imaginativos e é a democracia que é o melhor cadinho para o desenvolvimento, para a firmação das sociedades, para o progresso e para o bem-estar das pessoas e da humanidade. É a nossa convicção.
O Dia Internacional da Democracia é celebrado desde 2007. Um dos objectivos é promover e defender os princípios democráticos. Como está a promoção e defesa desses objectivos em Cabo Verde?
Eu falei-lhe há pouco do contexto mundial. Eu lembro-me que, no ano 2000, num colóquio sobre o 13 de Janeiro, eu teria dito uma frase, que alguns acharam talvez imprudente ou excessiva, que me parecia que, em Cabo Verde, a democracia é um processo irreversível. E expliquei na altura que é irreversível num certo sentido. Estou convencido, ainda hoje, de que a maioria dos cabo-verdianos tem o entendimento de que o único critério de legitimação do exercício do poder político é o critério do voto popular, é o critério das urnas. E, portanto, para a maioria dos cabo-verdianos não tem nenhum sentido um regresso ao passado. Mantenho essa posição. Mas é fundamental também em Cabo Verde haver a promoção contínua dos valores e dos ideais da liberdade e democracia. Porque há, digamos, esse contexto internacional, que não é muito favorável nestes tempos. E nós não fugimos ao mundo. É claro que nós somos um pequeno país neste grande contexto. E os pequenos países têm vantagens e desvantagens. Sermos pequenos trás desvantagens, de, por vezes, podermos construir o nosso mundo, o nosso pequeno mundo, o nosso modo de vida, um pouco à margem do que se passa lá fora. Mas, ao mesmo tempo, somos influenciados. Sobretudo porque somos um país aberto ao mundo, um país de diáspora, um país de emigrantes. E, portanto, também se sente entre nós um pouco do ambiente internacional. E não é por acaso que eu, há muito pouco tempo, através de um conjunto de conferências, associado a um conjunto de conferências pelo grande politólogo e professor Daniel Innerarity, lancei uma instituição que se chama Iniciativa Liberdade e Democracia, que se destina sobretudo a promover em Cabo Verde, no futuro talvez para além de Cabo Verde, na África Ocidental ou na África de Língua Oficial Portuguesa, para promover a cultura da liberdade e a cultura da democracia. Porque é essa cultura que vai dando alento, vai dando vida ao ideário da democracia, à pedagogia da democracia. Isso é importante hoje cada vez mais perante a investida, a sedução, a sereia das autocracias e das ditaduras. Sobretudo no plano africano. Por exemplo, se nós virmos o que se passa hoje em África, o que se passa na Guiné-Conakry, no Mali, no Níger, no Burkina Faso. Mesmo em outros espaços africanos vemos que a democracia está sujeita a uma espécie de assalto de forças autocráticas que estão numa posição de força. Basta vermos, por exemplo, ainda recentemente, grandes reuniões internacionais de grandes potências e forças que não são propriamente forças da democracia. E, portanto, também entre nós é necessário cerrar fileiras e, portanto, promover a cultura da liberdade, a cultura da democracia. Eu falo sempre desses dois conceitos, porque a liberdade é que é o valor fundamental, é sermos mulheres e homens livres, cidadãos livres. A democracia é o instrumento, é o melhor bocadinho para os regimes que queiram fundar-se nas liberdades individuais.
Qual é o estado da democracia em Cabo Verde?
Eu acho que a democracia em Cabo Verde veio para ficar, mas a democracia em Cabo Verde não é perfeita, como não é em lado nenhum. E nós vemos hoje em Cabo Verde debates na imprensa, nas redes sociais, vemos na picardia entre forças políticas a discussão sobre o estado da democracia. Portanto, nós temos uma democracia, é preciso dizê-lo, porque há gente que parece não acreditar. Mas eu, como tenho a sorte de mesmo agora de sair muito, de estar presente em conferências internacionais, tenho estado, por exemplo, há pouco tempo, em duas grandes conferências internacionais: no Senegal, com estudantes, jornalistas, políticos, deputados africanos, mas também estive em Angola, na Guiné-Bissau, em Portugal, na Itália e no Luxemburgo. Quer dizer, Cabo Verde é visto como uma referência de democracia, em África e fora de África. E, portanto, os instrumentos internacionais de medição da liberdade e democracia colocam-nos sempre em posições privilegiadas: é o país mais livre de África; estarmos entre as trinta democracias do mundo; e a segunda ou terceira democracia africana. Isso tudo tem que ter alguma coisa de verdade. Não pode ser só pelos lindos olhos do arquipélago, ou pelas lindas águas do arquipélago. E eu sinto isso. Eu lembro-me, por exemplo, de estar em Dakar, numa conferência com centenas de pessoas no auditório. Eu era o conferencista inaugural numa conferência sobre o constitucionalismo, governo legítimo, paz e segurança em África. Fui convidado para expor a minha experiência pessoal como Presidente da República no sistema semipresidencialista de Cabo Verde perante um vasto auditório. As referências que faziam sobre Cabo Verde até faziam-me sentir um pouco incondicionado. Eram tantos elogios e até me pareciam um pouco exagerados, mas Cabo Verde era quase posto no céu. Eu que vivo cá, eu que tenho uma vasta experiência de mais de 50 anos de vida política, sei que a nossa democracia precisa ser consolidada, precisa de aperfeiçoamentos, há pilares do Estado de Direito que precisam ser consolidados. Por exemplo, nós temos que aprofundar a independência e a capacitação técnica do Poder Judicial. Nós temos que melhorar, ir mais além na liberdade de imprensa. Temos que construir uma sociedade civil mais forte, mais pujante, uma opinião pública mais sólida. Portanto, são pilares fundamentais dum Estado de Direito. Portanto, temos muitas fragilidades, mas é verdade que somos uma democracia. Porém, há críticas legítimas que são feitas. Por exemplo, o funcionamento da justiça, há críticas feitas ao funcionamento dos transportes, há críticas quanto ao fornecimento da energia eléctrica. São críticas legítimas que eu também faço. Mas isso não pode justificar teses de que temos aqui uma democracia de fachada, uma democracia formal. E há até uns que dizem que não há democracia nenhuma, mas felizmente que são vozes acantonadas, são vozes marginais, até às vezes aparecem pessoas a fazer apologia do golpe de Estado, da ditadura; há quem fale de milícias populares, de tribunais populares, como se isso fosse a solução para os problemas actuais, os problemas de desenvolvimento de que o país enferma.
Portanto, está a dizer que o sistema democrático cabo-verdiano funciona.
Sim, o nosso sistema de democracia funciona, temos instituições que funcionam, não funcionam na perfeição, há deficiências, há insuficiências, há necessidade de aprofundamentos, de aprimoramentos, mas todas as críticas são legítimas no quadro democrático. É uma opção colectiva do povo de Cabo Verde, feita nos anos 90 e 91, de vivermos num quadro de democracia. Portanto, dentro desse quadro, tudo é legítimo do ponto de vista das críticas e é salutar. Mas eu diria que me parece que nos últimos tempos, talvez por haver a proximidade de eleições, há um crescendo de picardia política, de violência verbal. Felizmente que é só verbal, onde se vislumbram alguns segmentos, que eu creio que são claramente minoritários, alguns segmentos que se aproveitam dessas imperfeições, das dificuldades da democracia, de legítimas críticas à governação, para, digamos, tentar passar a narrativa, que é uma expressão que não gosto muito de usar, mas, neste caso, é mesmo a narrativa de que não há democracia em Cabo Verde, é tudo fachada, às vezes num discurso que ingenuamente ou intencionalmente confunde e baralha conceitos. Conceitos que têm a ver uns com os outros. Liberdade, democracia, justiça, igualdade social, são conceitos que se articulam, mas são conceitos, digamos, autónomos. E então é uma espécie de procura da confusão dos conceitos para passar mensagens aparentemente sedutoras e fáceis de consumo para pessoas que estejam incautas, impreparadas do ponto de vista da democracia. Isto da democracia, como diz Innerarity é hoje um sistema cada vez mais sofisticado, e precisa, também entre nós, de uma pedagogia permanente, para explicar os princípios, o que é a democracia, qual é o ideário da democracia, como é que a democracia se articula com a justiça social, com a redução das desigualdades sociais, com a redução das assimetrias regionais, o que é o Estado de Direito, como se relaciona com a democracia e daí a necessidade que eu senti de criar a Iniciativa Liberdade e Democracia Jorge Carlos Fonseca.
Cabo Verde tem merecido avaliações positivas de várias instituições internacionais, mas há críticas internas que põem em causa esses indicadores.
Sim, eu percebo isso. Felizmente vivemos em democracia numa terra de liberdade e parece ser legítimo que haja pessoas que ponham em causa dados fornecidos por instituições internacionais como o Banco Mundial, ou o Banco Africano de Desenvolvimento, ou o Banco de Cabo Verde, ou revistas como The Economist, ou Repórteres sem Fronteiras ou instituições como a União Europeia, o Departamento de Estado Americano. Até leio isso. Bom, eu parto do princípio que seria uma coincidência tremenda todos esses dados estarem errados. Teoricamente, até pode ser, mas seria uma coincidência tremenda, não é? Quer dizer, isso traduz duas coisas: pessoas não acreditarem em nenhuma instituição, ou então, não acreditarem em certos períodos de tempo e noutros acreditarem, consoante, digamos, a cor política do poder em cada momento; ou então há a tal confusão de conceitos de que lhe falei. Eu propriamente, mesmo como Presidente, sempre fiz um discurso de que Cabo Verde tem que reduzir as desigualdades sociais. Temos desigualdades sociais inaceitáveis em Cabo Verde; temos assimetrias regionais irrazoáveis. É uma coisa que eu tenho dito várias vezes: o desenvolvimento que chegou à Praia não chegou à Brava, nem chegou a São Nicolau, nem chegou aos Mosteiros e não terá chegado a São Lourenço dos Órgãos. Portanto, temos um desenvolvimento desigual. Temos que reduzir essas desigualdades, essas assimetrias. Temos que melhorar o nosso sistema de justiça. Uma justiça cada vez mais independente e mais competente. Temos que ter uma justiça relativamente mais célere, onde ela pode ser mais célere, mas, isso não me leva a dizer que estamos a abandalhar o conceito de democracia em Cabo Verde: dizer, por exemplo, que não há democracia em Cabo Verde, ou que não há liberdade. Às vezes fico espantado quando oiço um ou outro intelectual dizer que o país não tem liberdade nenhuma, que é tudo fantasia. Então eu pergunto-me se essas pessoas vivem cá no país, ou se viverão em Marte, ou num outro planeta, ou num mundo de fantasia. Eu, como poeta, sou suspeito para dizer isso, pois quando faço poesia, vivo nesse mundo de fantasia. Mas, quando sou cidadão normal, comum, ou sou um agente político exercendo uma função, a gente tem que lidar com a realidade dos factos. Quando estou em Cabo Verde, ou visito outros países africanos ou mesmo europeus, ou da América Latina, e comparo o nível de liberdade vejo que em Cabo Verde pode-se escrever sobre o Presidente da República, sobre o Primeiro-Ministro, com verdades, com meias verdades, às vezes com manipulação de dados, neste mundo das redes sociais, da influência das redes sociais. Portanto, Cabo Verde é um país muito livre. Agora, temos que fazer melhor. Nós, nestes 50 anos, desenvolvemos muito, crescemos muito, o país é muito diferente do que era em 1975, mas eu continuo a dizer que tínhamos condições para estarmos hoje num país bem mais desenvolvido do que somos neste momento. Podíamos até ter uma democracia mais avançada e um Estado de Direito mais moderno do que temos hoje. Mas não vou dizer que não temos democracia e que não temos Estado de Direito.
Cabo Verde assinala no dia 13 de Janeiro de 2026 os 35 anos da II República cuja data simboliza a transição de partido único para um sistema pluripartidário. Como escreve no seu livro o politólogo português Nuno Manalvo, em Cabo Verde a mudança para a liberdade e para a democracia tem um rosto: Carlos Veiga. Qual é a sua opinião.
Sim, é normal que se procure em cada momento político, em cada fenómeno político, referências. Evidentemente que a democracia tem referências. A luta pela democracia tem referências. O habitual é nós dizermos: a democracia é uma conquista do povo de Cabo Verde. A independência é uma conquista do povo de Cabo Verde. São verdades. Mas estas verdades não podem ocultar outras, pois há protagonistas em todas as lutas. E também a democracia tem. E, obviamente, quando se fala do triunfo da democracia em Cabo Verde, há um nome que vem em primeiro lugar, o nome de Carlos Veiga, porque foi o Carlos Veiga que liderou, de facto, concretamente, o movimento popular e político que, nos anos 90 levou à construção de uma força política alternativa ao antigo partido único e que mobilizou as forças populares. O MpD foi às eleições e ganhou as eleições com uma maioria qualificada de dois terços, maioria essa que levou a um novo Parlamento, a uma nova Constituição, à fundação do Estado de Direito Democrático. Portanto, é natural que a figura de Carlos Veiga deve ser realçada. Ele esteve à frente. Agora, naturalmente, houve vários outros protagonistas da democracia, inclusivamente protagonistas da luta pela democratização, antes propriamente do próprio MpD. A luta contra o Partido Único e pela democratização de Cabo Verde não é apenas dos anos 90. Nos anos 90 é o triunfo da democracia, é a mobilização popular de larga escala, depois de condições internas e externas serem criadas para a abertura, para a participação e para a mobilização popular. Mas houve lutas clandestinas, difíceis, aqui em Cabo Verde, fora de Cabo Verde, em Portugal, na Holanda, nos Estados Unidos, mas aqui também, em pequenos núcleos, em pequenas células, desde os anos de 1977. É por isso que, quando fizemos o balanço dos 50 anos, as pessoas falaram dos acontecimentos de 1977, em São Vicente, as pessoas falaram das prisões em Dezembro de 74, em Tarrafal, os acontecimentos da Brava, de Setembro de 1979, de que aqui pouco se fala, com mortes, com prisões, com detenções ilegais, com tortura. Foi talvez o primeiro caso em Cabo Verde em que houve uma espécie de estado de sítio de facto. Na Brava, em 1979. Os acontecimentos de 31 de Agosto, em Santo Antão, a formação da UCID, lá fora, os CCPD, [Ciclos Cabo-verdianos para a Democracia], a Liga Cabo-verdiana dos Direitos Humanos. Quer dizer, há um processo de luta pela democratização que é preciso conhecermos todos e os democratas em particular, mas, voltando a sua pergunta, quando falamos da democracia em Cabo Verde, o triunfo da democracia em Cabo Verde, quem liderou esse movimento, quem esteve à frente, é evidentemente Carlos Veiga. Isso é indiscutível e tem que se fazer essa justiça e para mim é indiscutível e tem-se de se fazer essa justiça. E para mim, independentemente das críticas que se possam fazer ao nosso Estado de Direito, as insuficiências, as deficiências, as críticas que se pode fazer à governação, sobre os transportes, sobre a energia eléctrica, sobre o funcionamento da administração pública, ou sobre eventuais casos de corrupção. Isto em todas as democracias há, mas a democracia em Cabo Verde abriu os caminhos para a modernização do país. Portanto, eu acho que Carlos Veiga é o nome que está ligado ao início da modernização de Cabo Verde: liberdade económica, liberdade de comércio internacional, investimento estrangeiro, liberdade de expressão, de manifestação, liberdade sindical e greve. Portanto, o país criou as condições para a sua modernização. Se o que temos nos satisfaz, isso é outro problema. Eu, por exemplo, eu creio que devemos ser mais ambiciosos. Temos que encontrar as condições para acelerarmos o ritmo da nossa modernização e do nosso crescimento.
Que perspectivas para o sistema democrático cabo-verdiano depois das eleições de 2026?
Estas próximas eleições, como eu lhe disse, estão próximas, vão-se realizar num momento de muito debate, de muita reflexão, de muita controvérsia, mas creio que vai ser um quadro político partidário que não será muito diferente daquilo que nós temos tido neste momento. Estou convencido que irão ser muito disputadas. Evidentemente que há factores novos, que é a grande utilização das redes sociais. Também, porque já usamos aqui as novas tecnologias, inclusivamente a inteligência artificial. Iremos ter, talvez, uma maior influenciação externa em relação aos nossos processos. E são eleições que acontecem num contexto internacional que eu já lhe defini. É que nunca, na minha perspectiva, nunca como hoje, especialmente depois da invasão russa à Ucrânia, são tão claras como agora, as opções fundamentais. Eu até vou, talvez, com alguma imprudência, dizer o seguinte. Evidentemente que podemos falar da luta contra os efeitos devastadores das mudanças climáticas. Há quem diga que é o maior desafio mundial. Podemos falar do problema das respostas às catástrofes naturais; podemos falar da necessidade de preservar o multilateralismo; podemos falar do combate à fome, que é uma problemática incrível. Da resolução dos conflitos, e às vezes conflitos que nós esquecemos. No Sudão, no Sudão do Sul, na Faixa de Gaza e no Médio Oriente no geral, mas para mim, o fundamental numa visão de longo prazo, o destino da humanidade, do progresso da humanidade, joga-se neste tempo num tabuleiro em que se confrontam duas grandes forças, dois ideários que é a democracia e as autocracias. Nunca isso foi tão claro. E creio, portanto, que em qualquer território onde estejamos, não podemos perder essa perspectiva de termos opções claras: o que é que queremos para nós, para a nossa colectividade e para os nossos países. E, portanto, a afirmação dos valores da democracia, do Estado de Direito, do constitucionalismo, que serão importantes nesse debate e nessa reflexão que serão feitos nos próximos anos, seja em Cabo Verde, seja fora de Cabo Verde. E eu também iria dizer uma coisa que me surpreende um pouco. Que em Cabo Verde, evidentemente para nós, é mais importante aquilo que é imediato. É reconstruir São Vicente, é o problema de criarmos melhores condições para fixarmos em Cabo Verde os melhores profissionais que podem ser necessários para o desenvolvimento de sectores importantes da nossa economia. É importante nós reduzirmos as assimetrias regionais, é preciso melhorarmos e estabilizarmos o sistema dos transportes marítimos e aéreos. Tudo isso é importante no debate, pois nós estamos preocupados com isso. Mas surpreendo-me que não se dê a devida atenção em Cabo Verde às questões que têm a ver connosco, as questões de ordem internacional. Às vezes eu vejo pessoas até pessoas instruídas, com responsabilidades, que falam disso como se nós estivéssemos num outro planeta. A invasão russa não tem nada a ver connosco. E tem a ver. Não é difícil ver isso. Porque a longo prazo, o nosso destino, o destino das nossas opções, também se joga nesse tipo de tabuleiro. E, portanto, estranha-se um pouco, que não haja debates, que não haja comentários. E até às vezes que seja motivo de alguma piada, de alguma chacota. Quer dizer, nós não temos, digamos, uma cobertura e uma protecção seguríssima à nossa volta, para que não sejamos contaminados e influenciados por aquilo que se joga e que se está a jogar no plano mundial. Até porque nós somos fruto da comunidade internacional, fruto da diplomacia internacional, fruto das parcerias internacionais, das opções que fizemos e fomos fazendo em cada momento. Mas, e terminando mesmo, continuo optimista em relação ao futuro de Cabo Verde e, sobretudo, aquilo que eu digo que é uma marca nossa: a nossa democracia, o nosso Estado de Direito. Isso é decisivo, porque, em última análise, o futuro da humanidade será mais ou menos radiante se tivermos sociedades de homens e mulheres mais ou menos livres. O fundamental, até não é o modelo da democracia, ou o sistema de governo. É termos um estilo de vida, um sistema político que sirva à construção de sociedades de mulheres livres e homens livres. Isso está demonstrado: em sociedades de homens e mulheres maniatados, sem liberdade, não há progresso, não há felicidade, não há desenvolvimento duradouro ou sustentável, como hoje está na moda dizer.
O que faz hoje Jorge Carlos Fonseca?
Hoje sou sobretudo um jardineiro da Liberdade e um peregrino da Democracia. Faço conferências e palestras a nível nacional e no estrangeiro sobre constitucionalismo, democracia, Estado de Direito, mas também sobre temas jurídicos de direito penal, de processo penal e também de temas literários. Tenho também publicado livros. Neste momento tenho dois livros que vão sair agora: um livro jurídico de direito penal, que sai agora no mês de Setembro e um literário que deve sair em Outubro. Vim agora do Japão, onde fiz uma conferência sobre segurança alimentar e economia azul relacionados com a paz e segurança em África. Há tempos fiz no Senegal uma conferência internacional sobre Constitucionalismo, Governo Legítimo e Democracia em África. Vou a liceus aqui falar sobre Constitucionalismo Cabo-verdiano, Democracia e Direitos Humanos, vou a universidades aqui e criei a instituição “Iniciativa Liberdade e Democracia”.
Versão completa do texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1241 de 10 de Setembro de 2025.