Imunidade Parlamentar ou o jogo dos equilíbrios

PorSara Almeida,3 fev 2018 6:48

​A Assembleia Nacional levantou, na semana passada, a imunidade parlamentar do deputado do PAICV José Maria Gomes de Veiga. É apenas a terceira vez que isso acontece no parlamento cabo-verdiano. Afinal o que é essa imunidade, o que significa o seu levantamento e quais as consequências do mesmo?

Estas são algumas questões a ter em conta, num momento em que a sociedade civil pede reformas e mais transparência, mas onde a necessidade de equilíbrio dos poderes democráticos se mantém.

José Manuel Andrade, ex-ministro da Justiça, e Amílcar Spencer Lopes, antigo Presidente da Assembleia Nacional, tecem considerações sobre o tema, salvaguardando o cuidado de equilibrar essa prerrogativa importante na função parlamentar com os ensejos de transparência e atendendo ainda ao bom senso político das decisões. A reter, Imunidade e Impunidade não são sinónimos, neste jogo de equilíbrio que é a democracia.

Já se esperava. Já tinha sido inclusive noticiado e dado como certo antes ainda da votação de sexta-feira. Em causa está um pedido de levantamento da imunidade ao deputado José Veiga, para responder como testemunha no processo do Fundo do Ambiente. Um pedido do Ministério Público, que deu entrada na Assembleia Nacional em Maio de 2017.

Por votação secreta, o parlamento decidiu, com 40 votos a favor, 19 contra e três em branco, aprovar a resolução que autoriza o levantamento da imunidade deste deputado do PAICV.

O próprio visado tinha-se posto à disposição alegando que “quem não deve não teme” e salientando ser ele próprio “contra a Imunidade Parlamentar, não obstante estar constitucionalmente consagrada”.

A própria Constituição dá, pois, o privilégio da imunidade aos parlamentares. Mas o que é ela?É, como resume Amílcar Spencer Lopes, um privilégio que vem da tradição parlamentar em diversos países (ver caixa), e que tem o intuito de permitir que os deputados se possam “expressar livremente no combate político que se faz no parlamento”.

José Manuel Andrade especifica que esta resulta “do princípio da inviolabilidade dos representantes do povo, durante o desempenho das suas” funções. Ora essa inviabilidade é “tida como essencial à existência das assembleias legislativas” que “sem liberdade de opinião tornar-se-ia de todo impossível, como impossível seria a respeitabilidade do mandato”.

Não se trata pois, como ambos referem, meramente de um direito disponível do deputado, mas antes, de um privilégio “instituído para a garantia da sua independência e defesa da sua liberdade”, que dignifica este cargo de elevada responsabilidade e facilita o livre exercício das suas funções.


Uma resolução rara

Este privilégio tem sido bem defendido na casa parlamentar nacional. Tanto que está é apenas a terceira vez que a assembleia aprova o levantamento da imunidade parlamentar a um deputado.

A primeira aconteceu em 1992, com o deputado do PAICV, Júlio Correia, para que este fosse julgado no Supremo Tribunal da Justiça por causa de um alegado crime de delito de opinião. Amílcar Spencer Lopes era então Presidente da Assembleia Nacional e segundo se recorda na base do caso estava um artigo de opinião, publicado na imprensa, no qual o deputado contestava uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça.

“Por conseguinte, os Juízes do supremo sentiram-se ofendidos, a própria instituição [sentiu-se insultada], e instauraram um processo ao autor do artigo. Não ao Júlio Correia deputado, mas ao autor do artigo, porque ele não escreveu como deputado, mas como cidadão”, rememora.

Apesar de ter sido referido no parlamento, nas intervenções do PAICV, que José Veiga foi apenas o segundo caso de levantamento de imunidade, José Manuel Andrade recorda um outro.

“Lembro-me do levantamento da imunidade parlamentar ao então deputado Jorge Silva, do Partido do Trabalho e Solidariedade (PTS), em 2003, que tinha sido solicitada e levantada, primeiramente, como declarante e, depois, como arguido”.

Quem avalia os pedidos de levantamento de imunidade é a “Comissão Permanente, que funciona nos intervalos do período de funcionamento das sessões plenárias da Assembleia Nacional”.

Na altura, lembra ainda o ex-ministro da Justiça, mediante recurso do visado, a questão foi levada ao Plenário da Assembleia Nacional, “e mantida a decisão da Comissão Permanente, enquanto durasse o processo judicial. De resto, o próprio se mostrara disponível para colaborar com a justiça”, afirma.

Seja como for, são casos raros. Esta semana, com o caso de José Veiga, o PAICV veio já exigir que todos os pedidos de levantamento de imunidade entrados no Parlamento nesta legislatura sejam avaliados em Plenária. É que, salientou o parlamentar Rui Semedo, a decisão vem, pois, pôr fim a “uma tradição de ‘não-levantamento’ de imunidade”, pelo que esta mudança de postura deve ser aplicada a todos os deputados, incluindo os da maioria, o MpD.

Não sendo correcta, pela lembrança de Andrade, que nos governos do PAICV nunca tenham sido levantadas imunidades, havia, de facto, essa tradição. Também José Manuel Andrade relembra que embora tivessem havido vários requerimentos, “nem todos os pedidos mereceram levantamento de imunidade, quer porque os deputados visados se indisponibilizaram, quer porque, mesmo tendo havido disponibilidade de deputados visados, a própria Assembleia Nacional recusou, após avaliação dos riscos e pertinência, através da sua Comissão Permanente”.

E acrescenta que esses pedidos “foram referentes a deputados de todos os Partidos representados na Assembleia Nacional”.

Entretanto, saliente-se, não é uma decisão que se tome de ânimo leve ou por motivos menores. Há riscos associados que podem até pôr em causa o normal funcionamento da Assembleia. Há, como explica o ex-deputado do PAICV, José Manuel Andrade, “a possibilidade de contracção do direito de liberdade do deputado”. Este fica “condicionado, na sua independência, no exercício de suas funções no âmbito da fiscalização e de crítica em relação à actividade governativa”, que é, aliás, “o apanágio da função parlamentar”.

Contudo, é igualmente de evidenciar “que o deputado, por esse facto, só e somente fica a descoberto da respectiva imunidade em relação ao processo em causa, mas nunca despido da sua imunidade parlamentar em geral”, destaca José Manuel Andrade.


Limpar a honra

“Esta questão precisa ser definitivamente esclarecida”, escreveu José Veiga na sua página do Facebook, dias antes da votação da Assembleia. Um post onde lamentou ainda a exposição que lhe foi dada, tendo em conta que não é arguido, mas uma testemunha no processo. O deputado mostrava assim a sua disponibilidade para ver a imunidade levantada, por forma a parar o que considera ser uma manobra de distracção do governo.

Falando de uma perspectiva geral, também os entrevistados do Expresso das Ilhas destacam que o levantamento da imunidade tem, em relação ao próprio deputado, a vantagem de permitir limpar a sua imagem.

José Manuel Andrade realça dois intuitos que se quer sinalizar quando há levantamento da imunidade. Para o ex-deputado do PAICV, visa-se, por um lado, mostrar “a exemplaridade de colaboração com a justiça”. Por outro, esta atitude, que segundo defende deve ser tomada “sempre com a audição prévia” do deputado, permite “também salvaguardar, de algum modo, a honra do próprio deputado e o prestígio da Assembleia Nacional que, abstractamente, não pode ficar em permanente estado de suspeição, sobretudo nas circunstâncias em que haja forte alarde social.”

“Os deputados, sendo figuras públicas, estão expostos. Um processo – como o de um cidadão comum – é, neste caso, muitas vezes mediatizado. Antes de se chegar à verdade já a pessoa foi condenada mil vezes. Nestas circunstâncias, recuperar o bom nome e a boa imagem, é um processo difícil”, aponta igualmente Spencer Lopes, falando em termos gerais. Mas, se por um lado, o levantamento da imunidade permite pôr cobro ao julgamento e suspeitas públicas, por outro, é a própria imunidade que pode evitar essa exposição.

“Muitas vezes a imunidade justifica-se”, sublinha o ex-deputado do MpD, até para salvaguardar o interesse dos cidadãos em aceder a cargos parlamentares. “Se eu tenho a minha reputação e me disponho a fazer um trabalho público e estou todos os dias a ser confrontado com situações difamatórias, que me deixam perturbado bem como à minha família e ao meu círculo de amigos” sem qualquer mecanismo de protecção, “porquê ser deputado? Isso afasta os melhores, como é evidente”, avalia, sem nunca se referir ao caso concreto de sexta-feira.

Sobre esse caso de José Veiga, considera José Manuel Andrade que a decisão da Assembleia Nacional foi correcta. Isto sabendo que “o mesmo se disponibilizou para ser ouvido como testemunha”, conhecendo “o alarde social e o arrastamento da mediatização do caso”, e tendo em conta que está “em causa a gestão de coisa pública em que abstractamente ele nem sequer é arguido”.

Correcta, “mas, claro, cingido a esse específico processo” e “ainda mais por não se tratar de crime ocorrido no exercício das funções de deputado”, salvaguarda.

O que no entender do antigo ministro do PAICV coloca um problema são as denúncias, já referidas, de que há outros pedidos referentes a deputados da maioria, “nomeadamente como arguido e por crime público alegadamente cometido fora do exercício de funções, em que a Assembleia Nacional decidiu não levantar a imunidade, que não está na disponibilidade do deputado, mesmo que o deputado se tenha mostrado indisponível”.

Isto a seu ver “indicia decisão criticável, por incoerência”, argumenta.

Spencer Lopes, como referido, não comentou o caso de Veiga, mas falando em geral considera que é fundamental que o levantamento, sendo um acto político, não se torne um acto partidário. “Essa é precisamente uma justificação para a instituição da imunidade: não se pode por razões estritamente político-partidárias, de linchamento do adversário para aproveitamento numa situação concreta” aprovar o levantamento.

Quanto ao motivo, a julgar pela estatística, porque o MpD parece ser mais propenso a proceder a resoluções de levantamento de imunidade, observa o ex-PAN e ex-deputado dos democratas, que tal poderá ter a ver com a ideologia.

“As forças em presença têm as suas próprias matrizes ideológicas, e por conseguinte, os seus entendimentos sobre certas matérias. É isso que diferencia os partidos e as forças políticas. Há uma certa tendência para dizer que hoje em dia não há diferenças políticas, que todos estão situados ao centro, que é tudo um pouco do mesmo. No fundo, não é assim, por conseguinte, dependendo da correlação de forças é possível que certos entendimentos prevaleçam numa época e não em outra”, observa, nesta sua leitura sobre os dados.


Sinais do tempo e dominós

A sociedade civil cabo-verdiana apresenta-se cada vez mais pro-activa e a ter em conta algumas dinâmicas que têm surgido nos últimos tempos, impõe-se mudar vários vícios e problemas do sistema e suas instituições. Pelas reacções nas redes sociais e outros círculos, a imunidade parlamentar (por vezes confundida com impunidade) é algo que os cidadãos consideram que deveria ser objecto de mais resoluções, ou até completamente abolida, em prol de maior igualdade entre deputados e cidadãos e melhor combate à corrupção.

Amílcar Spencer Lopes considera que, de facto, há hoje uma mudança a nível global, na forma como certos privilégios e sigilos são encarados, manifesto nomeadamente em novas exigências da sociedade civil.

Assim, de uma forma geral, o ex-PAN avalia que é necessária uma mudança para melhorar o sistema, em muitas vertentes. “É preciso introduzir correcções profundas e por isso que se fala da reforma do Estado. Ora, a reforma do Estado implica não só reformas económicas, ou outras, mas reformar o próprio funcionamento das instituições. Pessoalmente, considero que deve haver uma moralização do sistema. É fundamental que as instituições tenham credibilidade junto da sociedade Cabo-verdiana”, diz, acrescentando que é preciso também dar resposta à referida contestação social crescente. “Há que atender a essas solicitações, por isso se fala na reforma de Estado. Muitas vezes não há é coragem política suficiente, ou vontade, para se realizar a reforma, porque mexe com muitos interesses instalados”, critica.

Reconhecendo a existência de situações em que “as forças políticas utilizam o sistema” a seu favor ou como forma de proteger terceiros, recorrendo para tal, por vezes, aos privilégios previstos, o ex-deputado do MpD entende que no corrente “processo de moralização do sistema” a questão da imunidade “deve ser encarada, e debatida com um espírito aberto e com rigor entre as forças políticas e a própria sociedade”, questionando-se até onde pode ir a imunidade sem que se “torne imprópria aos olhos do cidadão comum.”

“Até que ponto deve ser incondicionalmente garantida”, é a questão central, sendo fundamental definir critérios, aplicáveis a todos, e eventualmente, se for necessário, ter isso em conta na própria revisão constitucional.

Mas, insiste, no que toca à imunidade, que “o que não pode acontecer é haver um aproveitamento dessas circunstâncias para fazer ajuste de contas por questões menores”.

Assim, sobre um eventual efeito dominó despoletado com este caso concreto de Veiga, antevê o ex-PAN que será pouco provável, pelo menos em larga escala. Aliás, se houver uma banalização desse levantamento, mais valeria terminar com essa prerrogativa. “Mas não é certamente o que se pretende fazer”, justifica.

Também sobre um potencial efeito em cadeia, para José Manuel Andrade, “pelo que foi dito no debate havido na última sessão parlamentar deste mês de Janeiro, tratando-se de crime que tenha que ver com votos e opiniões que os deputados emitirem no exercício das suas funções, a imunidade será sempre assegurada”.

Contudo, nos demais casos, pelo discurso do líder parlamentar do MpD, Rui Figueiredo Soares, que tem maioria no Parlamento “(a deliberação da Assembleia é, neste caso, por maioria), o levantamento se fará sempre, doa a quem doer.”

Para o ex-ministro da Justiça e ex-deputado, a ser assim, “inaugurar-se-á uma nova era”, que na sua opinião é errada “pois, a Assembleia Nacional, sempre deve avaliar e decidir, pelo menos, conforme reza o disposto no artigo 170º da Constituição”.


O que diz a Constituição?

Suspensão de mandato, prescrição são também mecanismos previstos contra os deputados, nomeadamente na lei penal e na Constituição, no seu Artigo 170º (na versão revista em 2010), sobre imunidade, que estabelece na leitura de José Manuel Andrade, que “em princípio, os deputados não podem ser detidos ou presos preventivamente, senão com a autorização da Assembleia Nacional, a não ser em flagrante delito, quando ao crime corresponda, no limite máximo, a moldura penal abstracta superior a três anos. Mas, se for movido procedimento criminal contra o deputado e haja despacho de pronúncia ou equivalente, em qualquer crime, mediante pedido do PGR, a Assembleia Nacional avalia e decide se deve ou não suspender o mandato do deputado para responder perante o tribunal. Entretanto, se a moldura penal do crime for superior a oito anos no seu limite máximo, a Assembleia Nacional deve sempre decidir, obrigatoriamente, pela suspensão do mandato do deputado.

Por conseguinte, a suspensão do mandato ocorre, em geral, nos casos de crime cuja moldura penal abstracta seja superior a 3 anos, sempre a pedido do PGR.

Quanto à prescrição de crime em que o deputado esteja eventualmente indiciado, de acordo com a legislação penal vigente, o prazo de prescrição suspende-se durante o tempo em que não puder iniciar-se ou continuar o procedimento criminal por falta de autorização legal, podendo no entanto retomar-se após cessão do mandato”.

Imunidade Parlamentar no mundo

A imunidade parlamentar é consagrada constitucionalmente um pouco por todo mundo, sendo entendida como “a garantia de proteção ao desempenho livre e independente das atividades parlamentares”. Para além da constituição, as limitações e alcance dessa imunidade surgem em outros documentos, estatutos, jurisprudência dos Tribunais, entre outros.

Há a imunidade material e imunidade formal. A primeira protege o parlamentar no que toca à emissão de opiniões, palavras, votos e outras actividades no exercício da sua função. A formal é a garantia que “impede os parlamentares de serem presos ou processados criminalmente”, como refere o advogado Leandro Reis num estudo de direito comparado pulicado no JusBrasil.

Embora entre os vários países os conceitos de imunidade (mesmo quando têm outro nome) sejam semelhantes, a sua abrangência pode mudar. Veja alguns exemplos:

Portugal

A mais parecida com a CRCV. Imunidade material garantida. Parlamentar só pode ser ouvido como testemunha ou arguido mediante autorização da Assembleia, sendo obrigatória a decisão de autorização nos casos em que haja fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos. O parlamentar só poderá ser detido ou preso, se em flagrante delito de crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos. Nos demais casos o parlamentar somente poderá ser detido ou preso com autorização da Assembleia.

Alemanha

A imunidade material não abarca ofensas caluniosas proferidas pelos deputados.

Quanto à formal, os deputados somente poderão ser responsabilizados ou detidos com autorização do Parlamento, excepto em situações de flagrante delito ou no decurso do dia seguinte. Também é necessária a autorização do parlamento para a instauração de processo contra um deputado, sendo que o Parlamento pode suspender todo processo penal e inquérito.

Espanha

Além da garantia da imunidade material, os parlamentares somente poderão ser detidos em flagrante delito e não poderão ser indiciados e processados sem a prévia autorização da respectiva Casa Legislativa.

França

É garantida a imunidade material. Em relação a matéria criminal, correcional ou de restrição da liberdade é necessária a autorização da Assembleia. Mais uma vez a excepção é o caso de flagrante de delito, ao qual se soma aqui a condenação definitiva. Para a instauração de processo não é, contudo, necessária a autorização prévia da Assembleia.

Itália

Imunidade material garantida. Sem autorização nenhum membro poderá ser submetido a buscas, escutas ou detido, salvo em caso de condenação definitiva ou quando surpreendido em flagrante em crime para o qual esteja prevista detenção obrigatória.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 844 de 31 de Janeiro de 2018.

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Autoria:Sara Almeida,3 fev 2018 6:48

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  1 jan 2019 3:22

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