Júlio Correia: “Um arrivismo retrógrado regressou ao partido a partir de 2016”

PorJorge Montezinho,20 jul 2024 8:41

Histórico do Partido Africano para a Independência de Cabo Verde, Júlio Correia bateu com a porta e saiu do partido. Na carta enviada ao presidente do partido, no passado dia 11 – e tornada pública na sua página do Facebook – Júlio Correia refere o “desconforto cidadão perante o dirigismo político crescente em contramão à democracia interna outrora existente”. Ao telefone, a partir do Fogo, o antigo secretário-geral, ministro, deputado e autarca do PAICV explica ao Expresso das Ilhas o que o levou a tomar esta decisão.

Na carta em que se desvincula do PAICV, escreveu que já não está em sintonia com a prática de rebaixamento dos valores e princípios do partido. O que é que quer dizer com isso?

Continuo a estimar imenso os valores que um dia me motivaram a ingressar neste partido, os seus fundamentais, mas acho que tudo isto foi desvirtuado de uns tempos a esta parte. Veja os episódios a partir de 2016, em que há uma quebra enorme em relação àquilo que são os fundamentais do partido. Não há respeito por ninguém. Não há respeito pelo percurso de ninguém. Há um rebaixamento dos valores pela desvalorização da própria democracia interna. Andamos estes anos todos a construir um partido mais aberto, mais dialogante, com exercício de contraditório. O partido estabeleceu nos seus estatutos o direito à diferença e a pensar diferente. E noto que, de algum tempo a esta parte, o partido começou a tomar decisões mais musculadas, por gente que entrou recentemente. Eu próprio fui objecto de um processo disciplinar no partido, por delito de opinião. Não aceito que me mandem calar e fazer parte de um partido que passa o tempo todo a mandar calar, um partido que hostiliza a reflexão. Há uns tempos, quisemos, para ajudar o partido, criar um grupo de reflexão para ver se se conseguia aportar ideias de mais democracia, de mais diálogo interno. O grupo de reflexão foi vilipendiado. Houve processos disciplinares por delito de opinião, e o processo disciplinar ocorreu porque alguns deputados, onde eu me incluía, votaram favoravelmente o projeto-lei no Parlamento sobre a descentralização. Chega-se a um ponto em que há uma direcção que impõe directivas absurdas e o controlo de consciência dos parlamentares, aqueles que têm a missão, em primeiro lugar, de defender o povo. Não posso consentir, porque nunca consenti, a falta de respeito, que fez escola com aquela direcção que assumiu em 2016. Foi a pior direcção que o partido teve ao longo da sua vida. Recuperou o centralismo democrático, uma coisa que o PAICV havia abandonado há muito tempo.

Se a insatisfação vem de trás, porque não saiu há mais tempo?

É uma pergunta justa. Tive, como muitos tivemos, uma crença de que era possível ainda ao partido encontrar os grandes caminhos que teve. Não estamos a falar de um partido qualquer. Estamos a falar de um partido que esteve presente nos momentos cruciais da história de Cabo Verde. Orgulho-me de ter pertencido a este partido, de ter ocupado postos relevantes, de ter sido seu secretário-geral e vice-presidente. Agora, não posso é consentir, ou estar de acordo, com as práticas antidemocráticas, as práticas que afugentam a crítica do debate político. Sou democrata e isto não posso consentir. Se você faz um combate a estas questões, aparece sempre alguém a dizer que você está a destoar, que você está a lançar confusão, que você está contra. Fica evidente que há uns, filhos de um Deus maior, que podem sempre fazer e desfazer, e há aqueles outros, filhos de um Deus menor, que, se levantarem a voz, são logo vilipendiados e crucificados na praça pública. Aguentei estes anos todos, mas as coisas tendencialmente foram de mal para pior. Veja o episódio recente da fotografia. Isto é PIDE, não tem outro nome. Isto é pidesco. Estas é que são as linhas vermelhas que ninguém de bom senso, e que preza a democracia, deve aturar. Estou nos Estados Unidos, grande parte das pessoas sabem que neste momento sou estudante na Universidade de Bridgewater, onde faço um programa de graduação. Num acto nobre, no dia 5 de Julho, a data que nos une a todos e as pessoas têm habilidade de me fotografar, e ao meu camarada Felisberto Vieira, a cumprimentar o Primeiro-ministro, o Primeiro-ministro de Cabo Verde, a gente não tem outro, é aquele. Gostemos ou desgostemos dele. E os turcos de serviço não perdem uma oportunidade, vão lá e tiram fotografias. Estamos a falar de um acto em que foram condecorados antigos deputados do PAICV, estava lá toda a direcção do partido, velhos companheiros do partido, estavam todos lá. Mas quem é que se vai buscar? As Fotografias do Júlio Correio e do Felisberto Vieira. Isto é anacrónico. Isto é pidesco.

É Estalinista...

É absolutamente Estalinista. Felizmente, não atribuo isso a todos os elementos deste partido. Tenho bons amigos, sei que há militantes muito bons, magnânimos, humildes, trabalhadores que já venceram batalhas eleitorais em nome deste partido. Mas são estes arrivistas, estes cristãos novos, acabadinhos de chegar, que nunca venceram coisa alguma, não têm qualquer portfólio para apresentar ao país, não sabem o que é fazer combate político, não sabem o que é apresentar propostas alternativas para a governação. São eles que estão de serviço. É a tal quinta coluna sempre pronta a vilipendiar e a humilhar o bom nome das pessoas. A minha decisão não de geração espontânea. Não é uma coisa que eu tomei ontem, ou no dia 11, quando escrevi a carta ao presidente do partido, o Dr. Rui Semedo, que felizmente, no domingo, me respondeu de uma forma que apreciei imenso. O Presidente do PAICV foi cortês, amigo, por quem de resto tenho apreço. Agora, o partido parece que não tem uma liderança consolidada, uma orientação expressa para onde é que se quer ir.

Considera isso particularmente grave?

Um partido político tem que dizer ao que veio, o que é que quer fazer, que propostas alternativas é que propõe. Não vejo que o PAICV esteja neste ponto. Auguro que se erija numa força política com propostas alternativas, com uma capacidade de liderança consolidada, dialogante, democrática e capaz de juntar as vozes todas. Quando, há uns anos, fizemos a revisão dos estatutos do PAICV e criamos as organizações regionais com um nível elevado de autonomia, o que é que nos passava pela cabeça na altura? Criarmos um partido de vários protagonistas, de várias vozes, em que se alguém dissesse algo sobre política interna em Santo Antão, os responsáveis de Santo Antão estariam à altura de fazer as proposições deste partido. Mas isto, como já disse, foi absolutamente desvirtuado com a reposição do centralismo, com as decisões a partir da cidade da Praia, a partir de um homem ou de uma mulher só. Há um partido político, mas atenção, Cabo Verde está em primeiro lugar. Não tomaria nenhuma decisão que prejudicasse Cabo Verde, eu nunca poria a minha filiação política à frente dos desígnios de Cabo Verde. Não é a minha forma de estar na política, nunca foi.

Volto à sua carta. Escreve que camarada tornou-se uma palavra vã e que os valores transformaram-se em referências para compor discursos de circunstância.

Costumo dizer, a brincar, que no PAICV precisávamos de mais cabralólogos e menos cabralistas. Porque vejo que as pessoas citam Amílcar Cabral a descaso. Citam Amílcar Cabral e praticam exactamente o inverso daquilo que propõe Amílcar Cabral. Uma das questões fundamentais em Amílcar Cabral era a liderança de homens. Mas o que vejo é uma autêntica heresia. Estou a referir-me àquela direcção do partido que assaltou o poder em 2016. Repetia as coisas de Cabral, citava, mas a bota não batia com a perdigota, por isso dizia que precisávamos de cabralólogos, de pessoas que estudam Amílcar Cabral, que possam conhecer aprofundadamente o seu pensamento. A palavra camarada até assumiu, num tempo posterior, uma espécie de sentido pejorativo, mas não é. É um sentimento profundo de unidade, de estarmos juntos, de partilharmos causas. Com os nossos camaradas, partilhamos causas, valores. E a palavra camarada não inibe o dissenso, não inibe o confronto de ideias, mas explicita a vontade de sermos capazes de, a partir dos nossos dissensos, construirmos o consenso. O dissenso não é e nunca foi um problema. Pelo contrário, dissenso é o sal da construção do futuro. O que é problema é se a partir dos nossos dissensos não formos capazes de construir consenso. O conceito de camarada alberga este conteúdo extremamente forte de unidade, de coesão, que não anula e não prescinde da crítica, do diálogo e do confronto de ideias. Acho que isso desapareceu em absoluto deste partido. Andamos aqui por uns atalhos, que agora vai custar imenso reentrar na avenida larga da democracia.

Conhece bem os bastidores do partido, fala-se de um possível regresso de Janira Hopffer Almada à liderança do PAICV, por aquilo que tem dito, presumo que não veja essa possibilidade com bons olhos.

A minha pergunta é: quem é que há-de querer ver isso com bons olhos? Nestas coisas nada melhor do que os factos. Vejo slogans pomposos, frases tremendas, que dizem que aquele mandato fez maravilhas, mas alguém consegue apontar alguma coisa que aquela direcção fez? Eu consigo e vários de nós conseguimos apontar: muitas maldades, muitas crueldades, muita falta de democracia, um arrivismo retrógrado que regressou ao partido a partir de 2016. Um partido que se fragmentou, porque não se pode criticar determinadas pessoas. E depois as pessoas falam em legado, mas que legado? Vai a eleições e não vence nenhuma, que é um aspecto fundamental. Manda a humildade que quando o líder vai às eleições e perde, que saia. Mas, naquela altura, fizeram-se umas fífias, umas fintas do sai e não sai. Eu fui cabeça de lista durante muitos anos para a Ilha do Fogo. Felizmente, venci todas as eleições. E punha-me a mim próprio a seguinte questão: no dia em que perdesse como cabeça de lista no Fogo, não assumiria nenhum cargo de relevância dentro do PAICV. Mas na altura, pior do que perder, chegaram a deixar o partido na terceira posição numa ilha, e quem encabeçou a lista chega a vice-presidente. Mas que partido é este? Eu sei que partido é este, é um partido em que a lógica da amizade, do compadrio, da fidelização doentia, assume a primazia. Isso deu cabo deste partido, mas mantenho, e quero sublinhar isto, mantenho uma remota esperança em como melhores dias virão para o PAICV, porque Cabo Verde precisa de um PAICV forte. A governação do país precisa de um PAICV forte. A governação é o resultante de um compósito entre aqueles que governam e aqueles que exercitam a oposição. Um governo é sempre mais forte quando tiver uma posição também esclarecida, acutilante, com propostas alternativas de governação forte.

E hoje o PAICV não é esse partido?

O PAICV actual é um partido da mera contestação e de mera denúncia. O PAICV é um partido do arco de poder, tem que ter coisas próprias, tem que dizer sempre, a todo o tempo, ao que vem. Tem que apresentar propostas ao país em todas as áreas de governação, não pode ficar pela denúncia como estamos a ver. Há uma falha do governo e vai alguém do PAICV convocar uma conferência de imprensa. Pipocam conferências de imprensa, como se as coisas ficassem resolvidas. Um partido não fica melhor porque o outro partido está a falhar. Um partido fica melhor com as coisas que apresenta. Com as ideias próprias, com os programas próprios, com as alternativas que apresenta. De vez em quando fico com a ideia de que muita gente alimenta uma crença de que o governo falha e porque está a falhar é a nossa vez. Mas isto não é assim, na política não é assim. Na política, você merece o apoio popular pelas suas propostas alternativas. Não é porque o outro está a trabalhar mal. Em 2016 elegemos uma direcção que não percebia patavina do liderar uma organização de adesão voluntária, porque impunha princípios e regras draconianas como se podia predispor sobre as pessoas.

E o partido ainda está a pagar depois destes anos todos?

O partido passa por maus momentos. Há uma liderança claramente fragilizada. As pessoas falam em liderança bipolar, de uma liderança que saiu, mas continua a comandar acções importantes dentro do partido. Por exemplo, para mim é desilusão enorme que um partido como o PAICV não consiga eleger uma nova direcção do grupo parlamentar. Já se anda nisto há mais de meia dúzia de meses ou mais. Isso não é possível. Se você quer liderar o país, tem que fazer uma coisa mínima que é ter uma direcção do grupo parlamentar. Que mensagens está o PAICV a transmitir para Cabo Verde quando não consegue estabelecer uma nova direcção do grupo parlamentar? Que gente é esta? Onde é que param os interesses do partido? Porque as coisas têm que ter um significado. Quando eu crio permanentemente obstáculos para não se eleger a moderação do grupo parlamentar, qual é a leitura?

Uma interpretação pela qual já não se sente responsável.

Servi o partido durante todos esses anos, em todas as frentes, não tenho nenhuma fatura atrasada em relação a este partido. Cumpri com as minhas obrigações todas, venci eleições, ajudei a vencer outras, tive fortes colaborações dos meus camaradas e amigos para vencermos eleições. A forma como sou tratado por alguma ala – e se aqui ressalvo por alguma ala é porque há gente boa dentro deste partido – a forma como eu sou tratado mostra que partido é que temos.

Na carta de desvinculação fala em mente aberta para novas soluções e da bipolaridade política de Cabo Verde. Um novo partido político pode estar na calha?

Não vou partir para aí, mas o que posso dizer, até como analista político e como sociólogo, é que se calhar ninguém precisaria de estudos mais experimentados para concluir que há muita demanda pública que não está a ser enquadrada nas políticas públicas nacionais. E quando as demandas públicas não são enquadradas pelas forças políticas em presença, em regra, significa que há espaços para se enquadrar estas novas demandas. Isto é assim em todos os países. Há um deficiente enquadramento das novas demandas emergentes na sociedade cabo-verdiana, que não encontram satisfação, não encontram enquadramento nas forças políticas tradicionais existentes. Se isto significa que há espaços para a emergência de novas forças políticas, dir-lhe-ia que sim.

E se lhe perguntar se essa é a sua intenção?

Dir-lhe-ei que não, por hora não é uma coisa que pense. Mas existem espaços para que a cidadania possa crescer. Porque a cidadania, a cidadania política, também se exerce fora do perímetro dos partidos políticos. o bom nome das pessoas”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.

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Autoria:Jorge Montezinho,20 jul 2024 8:41

Editado porAndre Amaral  em  20 nov 2024 23:25

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