Alguns meses depois da aprovação da lei da paridade e na antecâmara de um longo ciclo eleitoral, com autárquicas em 2020, legislativas e presidenciais em 2021, a Rádio Morabeza, em parceria com o Expresso das Ilhas, lançou, no dia 25 de Janeiro, um ciclo de debates com diferentes sectores da sociedade civil, criando uma oportunidade para a troca de ideias sobre as prioridades para o país, conforme encaradas pelos cidadãos.
O pontapé-de-saída foi dado com um debate sobre o ser mulher em Cabo Verde.
Antónia Mosso, socióloga, explica que as mulheres querem “muita coisa” e precisam de “mais coisas ainda”.
“É um processo e estamos confiantes que chegaremos lá. Muitas barreiras precisam de ser eliminadas mas é no caminho que se fazem as coisas”, resume.
A jurista Milanka Vera-Cruz concorda que há um percurso a percorrer, mas defende que as barreiras para uma mais efectiva equidade de género estão apenas dentro das próprias mulheres
“Em relação a outras sociedades, a situação é diferente, mas aqui em Cabo Verde, na nossa sociedade, o que nós queremos, nós podemos fazer”, acredita.
Já Patrícia Silva prefere realçar a necessidade de se trabalhar para que todas as mulheres, de todas as faixas etárias, possam saber “o que querem”. Professora, Patrícia trabalha com adolescentes para quem a definição de papéis sociais ainda é um mistério.
“Há necessidade de empoderarmos as adolescentes e também os rapazes. Tenho observado que na sala de aula tenho muitos alunos que não sabem o que querem, um bocadinho perdidos. Não sabem a nível de formação, não sabem o que gostam, às vezes até para fazerem exercícios simples de ‘o que eu gosto realmente de fazer’, coisas relacionadas com a nossa auto-estima, os nossos interesses, gostos”, explica.
Também professora, no caso na Universidade de Cabo Verde, a antropóloga Celeste Fortes destaca a felicidade de se perguntar sobre a vontade das mulheres, assim mesmo, no plural.
“Geralmente, o que ouvimos em Cabo Verde e noutras paragens é o que quer a mulher, no sentido de nós pormos as mulheres todas no mesmo saco. A primeira coisa que as mulheres querem é que sejam consideradas nesta pluralidade. Eu sou muito diferente da Patrícia, da Milanka e da Antónia. Não queremos ser vistas como tendo que fazer o mesmo percurso, ter a mesma trajectória”, assinala.
“Eu noto muito, nos discursos em Cabo Verde, a referência à ‘mulher cabo-verdiana’, e bato há vários anos nesta tecla, de que não existe ‘a mulher cabo-verdiana’, mas sim ‘mulheres cabo-verdianas’”, complementa.
Lei da Paridade
Em Outubro, o parlamento aprovou o projecto de lei da paridade. A iniciativa apresenta como objectivo principal a “prevenção e o combate às condutas discriminatórias, em função do sexo e na promoção de políticas activas de igualdade entre homens e mulheres”.
A nível político, a lei estabelece que, em listas candidatas a actos eleitorais, nenhum género tenha uma representação inferior a 40%.
Na publicação “Mulheres e Homens em Cabo Verde – factos e números”, de 2017, o Instituto Nacional de Estatística destaca a predominância dos homens em instâncias de poder. Na Assembleia Nacional, 23.6% de mulheres para 76.4% de homens. Nas assembleias municipais, 29% de deputadas para 71% de eleitos. Nas câmaras, 100% de homens na presidência.
Ao nível empresarial, as estatísticas mostram que 35% das empresas são lideradas por mulheres, contra 65% com líderes do sexo masculino.
Antónia Mosso quer trazer o debate para fora da esfera institucional, aproximando-o das realidades quotidianas.
“A primeira coisa que se deve fazer, quando se tomam medidas, é escutar as pessoas. Primeiro, saber do que é que as pessoas precisam, quais são as suas necessidades, depois, ter em conta a ideia da diversidade, porque temos uma panóplia muito grande de situações que devem ser tidas em conta”, determina.
Se os níveis de participação política partidária das mulheres são baixos, Antónia Mosso pretende que se discutam as causas dessa realidade, para que se compreenda o que faz com que muitas mulheres se mantenham à parte.
“Primeiro, temos que perceber porque é que as mulheres não estão na política. Eu, por exemplo, não estou na política activa partidária porque há uma descredibilização da classe politica e nós não queremos os nossos nomes associados a determinados comportamentos e praticas”, assume.
Celeste Fortes propõe uma reflexão sobre a agenda dedicada às questões de género, respeitando a individualidade e tendo em conta as particularidades da sociedade cabo-verdiana.
“Precisamos de parar e ouvir. Raramente escutamos as mulheres, sobretudo aquelas que se dizem activistas de género. Deixamos de ir ao terreno e achamos que somos as defensoras das mulheres mas sem ouvi-las, sem ouvir as mulheres do Calhau, de Salamansa ou da cidade. Acho que é isso que nos falta”, equaciona.
Sobre a lei da paridade, em concreto, a antropóloga defende uma “ampla socialização”.
“A lei da paridade não é só para que se consiga a paridade das mulheres na politica. É para os homens e para as mulheres. Sou uma defensora a 100%. Acho que é preciso uma lei para corrigir uma injustiça que é histórica. É preciso resolver problemas que estão por detrás dessa não participação política, mas sem lei demoraria muito mais tempo”, sublinha.
Mais do que discutir a participação política das mulheres, Patrícia Silva quer que se discuta o contributo destas em todos os níveis da sociedade.
“A mulher está presente em todas as esferas. São muitas as mulheres cabo-verdianas cansadas. Há dias aconteceu comigo uma situação de uma senhora de limpeza a falar sozinha, numa casa de banho, a dizer que numa próxima encarnação quer ser homem. Questionada sobre isso, disse que está cansada de ser mulher, porque não só tem que trabalhar dentro de casa, mas também tem que trabalhar fora. Uma mulher assim, até chegar ao nível da participação politica, vai ser muito mais complicado, porque ela tem outros desafios diários”, demonstra.
Milanka Vera-Cruz prefere desconstruir a ideia de uma sociedade que discrimina as mulheres e não encontra verdadeiros obstáculos à participação política no feminino, a não ser “a carga social” a que estão sujeitas.
“Quando eu exijo um direito, não o exijo na qualidade de mulher, exijo enquanto pessoa. Está na moda discutir a condição da mulher, mas eu não me meço por este diapasão. Quando discuto ou falo, faço-o na qualidade de pessoa e não na qualidade de mulher. Não me sinto descriminada por ser mulher, não me sinto diminuída por ser mulher. Quando vou para um embate vou como pessoa”, reforça.
O papel da escola
Levar as questões de género para dentro das salas de aula é, para as convidadas do Fórum 2021, um passo fundamental.
A socióloga Antónia Mosso enfatiza a forma como a escola pode ajudar a combate estereótipos.
“As questões de género, os estereótipos de género, devem ser debatidos na família, corrigindo os preconceitos que limitam as potencialidades das raparigas e dos rapazes, porque nos orientam para um campo, porque somos meninas, orientam para outro, porque somos rapazes. Isso é castrador. Tem que entrar na família, mas também tem que entrar na escola”, comenta.
De acordo com a UNESCO, incluir a problemática do género nas escolas é fundamental para que crianças e jovens cresçam mais conscientes sobre a igualdade e equidade de género e aprendam a condenar qualquer forma de violência.
Este é também um dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, previstos na Agenda 2030, adoptados pelos países-membros das Nações Unidas.
Habituada a desafiar convenções, a professora Patrícia Silva fala de um “trabalho de resistência”.
“É nadar contra a corrente e de repente estás sozinho na praia. É um bocadinho complicado. Muitas vezes, as disciplinas que eu lecciono têm duas horas semanais, Então, o que faço nestas duas horas pode ser estragado logo a seguir, numa aula de matemática, de português, até os próprios colegas da mesma disciplina, de Formação Pessoal e Social”, frisa.
Num plano universitário, a antropóloga e docente universitária, Celeste Fortes, lamenta a falta de uma cultura académica que favoreça não só a produção científica, como o aparecimento de espaços de discussão.
“Em algumas aulas é possível fazer uma discussão, quando tu puxas muito. Mas isso é o reflexo da nossa própria sociedade. Quando alguém começa a discutir alguma coisa, essa pessoa incomoda, parece que as pessoas que têm voz incomodam. Na sala de aula, quando um aluno diz uma coisa com sentido, os colegas começam logo a dizer que está armado, que está a dar show”, partilha.
Recém-formada, Milanka Vera-Cruz revive a experiência universitária e destaca o papel do professor.
“De um modo geral, a nossa juventude está despreparada. Eu não julgo essa juventude, porque acho que é um despreparo que vem da base, vem da família, que não transmite, vem da escola, com estas políticas sustentáveis de educação, mas que na verdade não se vê nenhum resultado prático. Vai depende sempre do professor, se realmente quer estimular os alunos, fazer com que eles pensem”, finaliza.
O que querem os empresários?
Dedicada a ouvir a sociedade civil,a primeira fase do Fórum 2021, da Rádio Morabeza, prossegue em Fevereiro, com um novo tema em debate. Dia 29 de Fevereiro, às 11h00,respondemos à pergunta “o que querem os empresários?”. A Rádio Morabeza pode ser ouvida em 90.7 (São Vicente, Santo Antão e São Nicolau) e 93.7 (Santiago, Maio e Fogo). A emissão online está disponível através do site radiomorabeza.cv e nas principais plataformas de streaming. O podcast do programa está acessível através do site do Expresso das Ilhas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 948 de 29 de Janeiro de 2020.