“É um plano detalhado de salvaguarda, mas não é uma salvaguarda no sentido da conservação estrita”, explica ao Expresso das Ilhas o arquitecto e urbanista Walter Rossa e membro da equipa de gestão técnica do projecto. “É aquilo que eu costumo chamar de salvaguarda em desenvolvimento. Se eu quero melhorar as condições daquele local, da Cidade Velha, tenho que lhe injectar um conjunto de valências que permitam, de facto, condições de vida melhores”.
O Plano estabelece as orientações estratégicas de actuação e as regras necessárias para a preservação e valorização do património cultural, facilitando um desenvolvimento que se integre com as necessidades próprias da vida contemporânea e potenciando a autenticidade que define o conjunto histórico. Prioriza-se a protecção da identidade arquitectónica e cultural, assegurando que cada intervenção respeite e realce a riqueza histórica sem comprometer a sua essência. O PDS assume um compromisso com o passado, presente e futuro de Cidade Velha, forjando um equilíbrio entre a herança histórica e as demandas evolutivas da sociedade actual.
“Não se congela uma cidade, não se congelam as pessoas”, diz Walter Rossa, que é o titular da Cátedra UNESCO em Diálogo Intercultural em Patrimónios de Influência Portuguesa na Universidade de Coimbra. “Tenho é de encontrar formas para que esse desenvolvimento seja harmonioso, no sentido da sua qualificação e, essencialmente, da melhoria das condições de vida das pessoas que lá vivem”.
Durante a primeira fase, o objectivo principal é obter uma visão abrangente que sirva para definir as acções e decisões futuras do projecto. A caracterização e diagnóstico são realizados com base nas seguintes dimensões: regulamentação, história, território, meio ambiente, sociedade e economia.
“Diria que o maior desafio é a criação de um sistema de gestão em que as entidades públicas tenham um entendimento muito claro e comum daquilo que se pretende para a cidade”, refere o professor catedrático da Universidade de Coimbra. “O segundo desafio é que esse organismo de gestão se consiga infiltrar na comunidade, ter uma lógica de proximidade muito grande, em vez de se imporem na comunidade ser a própria comunidade que os visita e que sente a sua própria necessidade. Isto carece de um trabalho de proximidade e de diálogo muito grande”.
“Num processo de património, nunca posso dizer ‘não’ sem ter alternativas e argumentos que mostrem o porquê e como isso é melhor sem ser necessariamente mais caro. Os processos proibitivos são a melhor forma de deslaçar a coesão de uma comunidade, de desfazer a ligação das instituições com a própria comunidade e de pôr em causa um plano”, resume o arquitecto.
“Do ponto de vista da intervenção, demos uma particular atenção às questões da mobilidade, desde as questões do tráfego residente e o particular do visitante, o transporte público, estacionamento e a questão da mobilidade pedonal. Outro aspecto importante é entender a ribeira como um elemento estruturante da urbanidade. O terceiro ponto é que haja uma devolução do mar à cidade e que os cidadãos tenham maior acesso ao mar. Acho que estes três tópicos são essenciais: mobilidade, ribeira e mar”, diz Walter Rossa.
Cidade Velha: da fundação à decadência
A Cidade Velha é o núcleo urbano mais antigo de Cabo Verde. Dois anos depois da descoberta das ilhas pelos portugueses, em 1460, iniciou-se a ocupação e fundação da cidade. A presença de água abundante, a posição estratégica na costa sul de Santiago, fez com que a Cidade Velha fosse rapidamente ocupada por europeus à procura dos benefícios económicos do comércio de escravos do continente africano.
Em pouco tempo, tornou-se uma das principais escalas nas rotas atlânticas, contribuindo para a expansão colonial nas Américas, nas Índias e na África, tornando-se um enclave essencial para o comércio de escravos. Além dessa função principal, desenvolveram-se outras actividades necessárias para a navegação: reabastecimento e reparo de navios, que contribuíram para o desenvolvimento económico e urbanístico da cidade.
A sua relevância como porto comercial durou até o século XVII, iniciando-se então um período de decadência gradual, tornando sua posição geográfica menos estratégica. O ano de 1769 marca o declínio definitivo, quando perde o estatuto de capital para Praia.
Hoje, existem diversas tipologias de bens arqueológicos identificados em Cidade Velha, resultantes das diversas necessidades que se desenvolveram ao longo dos séculos. Consistem em 48 registos que, do ponto de vista funcional, podem ser agrupados em: locais militares (7 fortes e 4 muralhas); religiosos (1 convento, 5 capelas ou 4 igrejas) e civis (1 caminho, 1 canal ou 1 pelourinho), havendo ainda um grupo de elementos indeterminados por falta de informação clara sobre eles (21 vestígios e 3 subterrâneos).
A caminho do Património Mundial
No início do século XX, as ruínas da antiga vila, conhecida desde então como Cidade Velha, foram sendo progressivamente reconstruídas e reerguidas, com recurso a materiais locais e outros provenientes do desmantelamento dos antigos monumentos, que, entretanto, se tinham transformado em ruínas. Em 1922, o governo português manifestou a necessidade de preservar as ruínas numa portaria publicada no Diário Oficial da Província de Cabo Verde. Posteriormente, por ocasião do 5º centenário da fundação da cidade, na década de 1960, foram efectuados trabalhos de reconstrução, restauro e conservação de edifícios como a antiga Fortaleza Real de São Felipe, a igreja de Nossa Senhora do Rosário, a igreja de São Roque e o Pelourinho. No entanto, a ausência de recursos financeiros e humanos, bem como a necessidade de responder a outras necessidades do país, impediram o desenvolvimento de uma política nacional de conservação do património na Cidade Velha.
Após a independência, intensificou-se a preocupação com a conservação e gestão da cidade histórica. A UNESCO desempenhou um papel fundamental neste contexto, desenvolvendo missões específicas nos países africanos recém-independentes do domínio colonial europeu e, em particular, nos PALOP.
Uma primeira missão teve lugar entre Dezembro de 1978 e Janeiro de 1979. A principal contribuição foi aconselhar o Estado cabo-verdiano sobre a criação de um "Instituto Nacional de Cultura". Outra missão teve lugar em 1980, para aconselhar o governo na criação de um plano de preservação do património cultural do arquipélago. Uma outra missão foi realizada em Dezembro de 1983 pelo arquitecto húngaro Gabor Mester de Parajd, que chamou a atenção no seu relatório para a necessidade de travar a degradação dos monumentos da Cidade Velha, tendo em conta a perda iminente da sua autenticidade patrimonial. Seis anos mais tarde, em 1989, a missão de Jean-Pierre Wieczorek foi de grande importância para a salvaguarda do sítio da Cidade Velha, uma vez que se preocupou inteiramente com a conservação do sítio, mas sobretudo chamava a atenção para a relevância histórica e patrimonial da cidade no seu contexto internacional, lançando assim muitas das bases para a criação de uma candidatura da Cidade Velha a Património Mundial.
O Estado cabo-verdiano também tinha dado passos nesse sentido, com a sua adesão à Convenção da UNESCO de 1972, em 1987. Em 1990, com a publicação da Lei 102/III/90, de 29 de dezembro, sobre a preservação, defesa e valorização do património cultural cabo-verdiano, a Cidade Velha foi declarada Património Nacional (Decreto-Lei 121/III/90, de 8 de dezembro) e candidatada pela primeira vez à inscrição na Lista do Património Mundial da UNESCO, em 1992. No entanto, recebeu uma avaliação negativa da UNESCO.
Apesar desta primeira tentativa, sem sucesso, Cabo Verde iniciou um processo com vista a melhorar a situação do património, realizando importantes projectos de restauro e conservação que se intensificaram consideravelmente no início do século XXI, com o objectivo de voltar a apresentar uma candidatura à UNESCO. A cooperação internacional, sobretudo a promovida pela própria UNESCO, por Portugal e por Espanha, teve um papel fundamental na recuperação de grande parte deste património, bem como a colaboração com centros de investigação nacionais e estrangeiros. Assim, no âmbito de uma estratégia destinada a estimular o crescimento económico e turístico do arquipélago, foram desenvolvidos na Cidade Velha diferentes planos estratégicos e urbanísticos que visavam propor um desenvolvimento urbano estratégico sustentável compatível com a conservação do sítio e a preservação dos seus valores históricos e patrimoniais.
Foram também realizadas intervenções arqueológicas, de restauro e reabilitação em diversos edifícios da cidade, entre 1989 e 2008.
Este conjunto de planos estratégicos foi desenvolvido em paralelo com a elaboração de uma nova candidatura à inscrição na Lista do Património Mundial da UNESCO. Em 2004, a candidatura foi incluída na Lista Indicativa, dando início a um novo processo de candidatura cujo dossier foi apresentado em janeiro de 2008.
A avaliação efectuada pelo ICOMOS (a sigla, em inglês, do Conselho Internacional de Monumentos e Sítio) foi favorável à candidatura, mas indicou nas suas conclusões a necessidade de melhorar a proteção jurídica do sítio e dos seus bens constituintes, de delimitar adequadamente a área proposta para inscrição, de melhorar o sistema de gestão e os seus recursos e de estabelecer um sistema adequado de proteção, conservação e monitorização do património da cidade.
Na 33.ª sessão do Comité do Património Mundial, realizada na cidade de Sevilha, a 20 de Julho de 2009, a Cidade Velha, centro histórico da Ribeira Grande, foi inscrita na Lista do Património Mundial e os critérios (ii), (iii) e (vi) foram finalmente aceites – para que um sítio seja incluído na lista do Património Mundial, tem de atender a pelo menos um de dez critérios.
No caso de Cabo Verde, no critério (ii): Os monumentos, os vestígios ainda presentes na Ribeira Grande e as suas paisagens marítimas e agro-urbanas, são testemunho do seu importante papel no comércio internacional associado ao desenvolvimento da dominação colonial europeia em relação à África e à América e ao nascimento do comércio triangular atlântico. São testemunhos da organização do primeiro comércio marítimo intercontinental e do papel da Ribeira Grande como centro de aclimatação e disseminação de numerosas espécies vegetais entre as zonas temperadas e tropicais e entre os vários continentes.
No critério (iii): O património urbano, marítimo e paisagístico da Ribeira Grande constitui um testemunho eminente das origens e do desenvolvimento de mais de três séculos de comércio atlântico de pessoas escravizadas na época moderna e das suas relações de dominação. Foi um local privilegiado pela sua organização comercial e pela experiência inicial de utilização de pessoas escravizadas para o desenvolvimento de um território colonial. A mistura das raças humanas e o encontro das culturas africana e europeia deram origem à primeira cultura crioula.
“O património, hoje, em vez de ser uma coisa da qual nós tomamos conta é uma coisa que pode tomar conta de nós”
E no critério (vi): A Ribeira Grande está directamente associada à manifestação material da história da escravização e do tráfico de povos africanos e às suas consideráveis consequências culturais e económicas. A Ribeira Grande foi o berço da primeira sociedade crioula mestiça de pleno direito. A cultura crioula espalhou-se depois pelo Atlântico, adaptando-se aos diferentes contextos coloniais das Caraíbas e das Américas. As suas formas afectaram muitos domínios, incluindo as artes, os costumes sociais, as crenças, a farmacopeia e as técnicas culinárias. A Ribeira Grande é um primeiro e importante elo de um património imaterial partilhado entre África, as Américas e a Europa.
O futuro da Cidade Velha: articulação e bom senso
“Não há nada que nasça como património. Isto é uma frase célebre de uma colega australiana. Nada nasce património”, sublinha Walter Rossa. “Isto significa o quê? Que só é património aquilo que as pessoas decidiram que é património. Reconhecem que é património. Aliás, a palavra-chave de património é reconhecimento. E, portanto, o património está na cabeça das pessoas”.
“O indicador central da cabo-verdianidade ou de qualquer nacionalidade são as pessoas, são os cidadãos”, continua o arquitecto. “Os cidadãos da cidade, não os cidadãos que visitam a cidade ou que investem na cidade. O foco tem de ser os cidadãos da cidade. Eu acho que esse é a chave de qualquer processo”.
“Em qualquer plano, ou a comunidade integra e assume o plano, ou o plano é apenas mais um”, reforça o académico. “A comunidade tem de ter um papel central na execução do plano. Por isso, é fundamental explicar o plano, discutir o plano com a comunidade. Consideramos que o nosso trabalho só está completo quando conseguirmos explicá-lo e ouvir as reações das pessoas e verter numa versão final aquilo que aprendemos nesse processo de discussão”.
É hoje opinião corrente entre os peritos que vários sítios-património têm caído no erro de achar que a Unesco é uma espécie de marca registada e que uma candidatura ou um património mundial serve, essencialmente, para ter mais turismo e mais comércio. Os mesmos peritos defendem que esta é uma visão demasiado simplista.
“Há uma massificação do turismo e os turistas seguem guiões, não é?”, refere Rossa. “Mas há muito património mundial que não é visitado, por razões várias: porque está em zonas de difícil acesso, porque tem problemas, riscos, ou, pura e simplesmente, porque as pessoas que lá estão, estão bem como estão e não facilitam esse tipo de procedimento. No outro extremo, temos aquelas comunidades que, pura e simplesmente, procuraram no património uma forma de vida. Eu diria que ambas são extremos que não têm grande futuro”.
“O grande risco de quem se inscreve na lista para fazer disso um modo de vida é que as razões, os argumentos que utilizou para se inscrever na lista, vão desaparecer rapidamente. Porque há uma descaracterização imediata da forma de vida, etc., e esse é o grande problema. Ouvimos falar de Veneza, de Florença, ou até em Portugal, do Porto e de Lisboa, mas são cidades que deixaram de ser para os lisboetas e para os portuenses. São cidades em que os turistas chegam e veem turistas. Comem a comida que comem em casa ou em qualquer outra parte do mundo, encontram o mesmo tipo de recordações e de oferta. Têm os clichés todos”.
“Têm que ser as próprias comunidades a assumir o modelo de desenvolvimento que querem”, continua o professor universitário “e se estão dispostas a abdicar daquilo que é matricial para eles. Por vezes, posso ter muito mais dinheiro, mas a minha qualidade de vida é muito inferior. Basta pensar nos Canárias, em Lisboa, no Porto. Há pessoas que estão a ganhar muito mais dinheiro, mas duvido que tenham uma vida muito melhor do que aquela que tinham”.
“As propostas do Plano não são anti-turismo. Mas procuram apontar um caminho e estratégias que dotem de algum equilíbrio o desenvolvimento que possa haver do ponto de vista do turismo”, conclui Walter Rossa.
A apresentação pública do Plano decorreu quarta-feira, no Convento de São Francisco.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1178 de 26 de Junho de 2024.