“É preciso salvar a comunicação social privada para salvar a democracia”

PorChissana Magalhães,22 dez 2018 8:18

​Incentivos não directos por parte do Estado, auto-regulação, investimento na literacia mediática como forma de (re)lembrar a importância dos media privados para a democracia e a criação de uma associação dos órgãos privados de comunicação social.

Estas foram algumas das recomendações saídas do workshop “Sustentabilidade económico-financeira dos média privados em Cabo Verde” promovido pela Associação dos Jornalistas de Cabo Verde (AJOC) no último fim-de-semana. Antes, houve espaço para traçar o diagnóstico.

“É preciso salvar a comunicação social privada para salvar a democracia”. Assim iniciou Domingos Cardoso, director do jornal online Santiago Magazine, a sua intervenção no painel em que participava. Um grito de alerta a reflectir o espírito de jornalistas e dirigentes de órgãos de Comunicação reunidos no encontro promovido pela Associação dos Jornalistas de Cabo Verde a 14 e 15 de Dezembro.

Fazia parte do programa proposto pela lista candidata à direcção da AJOC e foi um dos pontos destacados pela equipa liderada por Carlos Santos por ocasião da sua tomada de posse, em Setembro: a AJOC quer ver assegurada a sustentabilidade financeira das empresas privadas de Comunicação Social e por isso um dos primeiros passos foi ouvir as preocupações e as propostas dos jornalistas e administradores desses media.

“Discutir as questões que estamos hoje a discutir mostram um avanço. Durante anos, por mais que tentássemos, as questões relacionadas com a comunicação social privada não entravam na agenda”, afirmou Nuno Andrade Ferreira, director da Rádio Morabeza, ao abrir a sua comunicação onde ainda iria referir a existência de “um grande desconhecimento em relação ao sector”.

“Os decisores políticos não têm noção de como funciona a comunicação social privada no país, porque não conseguem descolar daquilo que é a comunicação social pública”.

Esse desconhecimento poderá estar na origem daquilo que é a constatação da AJOC em como “ (…) os sucessivos governos, infelizmente, não têm sabido, no âmbito das políticas públicas, desenhar modelos e mecanismos de incentivos, de estímulo e de financiamento, capazes de alavancar o sector”.

Na nota sobre a iniciativa do workshop a associação sindical identifica ainda a generalização dos Novos Media e das redes sociais como tendo colocado em causa os modelos de distribuição de notícias e de remuneração dos media tradicionais. O diagnóstico da associação jornalística também refere que “em Cabo Verde, à semelhança do que acontece em outras paragens, assiste-se hoje a uma quebra acentuada na venda dos jornais, já de si escassa, bem como à erosão das audiências das rádios e televisões em detrimento de outras plataformas digitais de consumo de conteúdos informativos e de entretenimento. As fracas receitas da publicidade em formatos que eram antes resistentes às conjunturas estão também a cair a pique”.

Perante uma audiência com a presença da directora-geral da Comunicação Social, Ineida Moniz, representantes dos órgãos de Comunicação privados apresentaram a situação actual em que se encontram e os desafios com que se deparam para se manterem em funcionamento, com alguns dos meios representados a assumirem encontrar-se sem condições de suportar despesas de funcionamento e com um quadro reduzido de jornalistas que, não obstante os salários baixos e precários, em alguns casos chegam mesmo a passar meses sem receber esses salários.

É a situação dos jornaisonline Santiago Magazine e MindelInsite, que subsistem praticamente sem capital, contando apenas com alguns donativos de privados e amigos e com a determinação e persistência dos seus funcionários.

Fernando Ortet, administrador da Alfa Comunicações, empresa proprietária do jornal A Nação e orador no painel “Os Desafios da Imprensa Escrita em Cabo Verde” foi peremptório em afirmar que “a imprensa privada está ferida de morte”, apontando a relação actual das empresas com o fisco como um dos principais constrangimentos, no que seria secundado por outros participantes dos painéis. O mesmo deixou saber que a existência de dívidas não é unilateral, isto é, o Estado também deve às empresas de Comunicação, pelo que uma negociação e acertar de contas seria a melhor estratégia para resolver o problema.

Para além do cenário de “aperto” por parte da Direcção Geral dos Impostos às empresas privadas de Comunicação Social, Fernando Ortet, referiu ainda a perda de anunciantes e de publicidade das empresas estatais, facto que atribui à concorrência por parte dos meios públicos (RCV e TCV) e a uma espécie de punição pela publicação de matérias jornalísticas incómodas. Este último argumento viria a ser também apontado por Domingos Cardoso, director do online Santiago Magazine cuja débil situação financeira não tem impedido que o jornal tenha às costas vários processos judiciais por conta de algumas das suas manchetes.

“ O Estado finge que apoia a imprensa privada quando não tem nem 25% de assinaturas”, apontou a título de exemplo o administrador da Alfa Comunicações, que pontuou a sua intervenção com uma série de números. Referiu, por exemplo, a alteração na lei que passou a ditar que apenas 50% do espaço nos jornais pudessem ser ocupados com publicidade, quando até 2017 essa restrição ficava-se por um 1/3; o preço de capa dos semanários, que em 24 anos não sofreu alteração mantendo-se nos 100$ quando no mesmo período o preço dos transportes inter-ilhas aumentou em mais de 100%.

A questão das assinaturas foi também referida por Lígia Pinto, administradora da Média Comunicações, proprietária do Expresso das Ilhas, e responsável pelo sector comercial da empresa, que se referiu à luta titânica para alargar a base de assinantes dos jornais impressos. Ainda assim, a mesma defende esta opção ao invés da proposta de aumento de preço de capa em 100% sugerida pelo PCA da Alfa Comunicações. Questão que um acordo entre as empresas privadas de comunicação para a auto-regulação – aspecto cuja necessidade foi ressaltada no evento – pode vir a definir.

Segundo informações partilhadas no encontro, são ainda poucas as universidades e câmaras municipais que investem na assinatura anual de jornais, e mesmo a nível do Governo central, não são todos os ministérios e institutos a pagarem para receber semanalmente um jornal.

Começando por apontar aquilo que a empresa tem feito para melhorar a sua situação financeira - “Foram feitos os reajustes no jornal a nível de custos de funcionamento. Diminuíram-se gastos até aos limites aceitáveis (que não colocavam em risco o produto final), foram reestruturadas dívidas acumuladas junto às entidades financeiras” - Lígia Pinto esclareceu que “apesar das contenções, da gestão rigorosa continuamos sem margens para investimentos, para aumentar salários, para financiar formação do nosso pessoal … e sem meios para fazer as “coberturas desejáveis”, chegar como seria o nosso desejo a todas as ilhas e quiçá poder custear a nossa presença nas deslocações de missões oficiais ao estrangeiro”.

Nuno Andrade Ferreira, director da Rádio Morabeza, reforça este argumento: “mesmo geridas de forma criteriosa, rigorosa, com permanente e total contenção de custos e com uma política comercial dinâmica, ousada e pro-activa as empresas não conseguem sair do círculo vicioso no qual se encontram há demasiados anos”, uma situação que diz não depender apenas da capacidade dos gestores ou de uma desadequação do modelo de negócio.

“Esta realidade é, acima de tudo, uma consequência natural de um contexto difícil”. E perante esse contexto o jornalista defende que o Estado “não se pode demitir de cumprir o seu papel”.

Soluções práticas

Diagnósticos à parte, um dos principais propósitos do encontro era o de identificar caminhos e soluções e deixar recomendações concretas de medidas que poderão contribuir para a sustentabilidade dos media privados.

No caso dos jornais impressos, o aumento no número de assinaturas – com o Estado a sensibilizar escolas, bibliotecas, hospitais, centros de saúde e comunitários, etc. a investirem na assinatura das edições impressas – foi apontada como uma medida que contribuiria enormemente para desafogar as tesourarias das empresas. Outro contributo indirecto seria a co-participação, mais regularmente, na produção de cadernos temáticos e o pagamento atempado desses serviços de modo a permitir as empresas honrar os seus compromissos e investir nos meios humanos.

Já no que toca às rádios, a bonificação das tarifas de electricidade e comunicações para envio e manutenção de sinal entre e nas diferentes ilhas foi uma das sugestões deixadas.

Actualmente orçado em 15 mil contos anuais, o subsídio directo atribuído pelo Estado às empresas de comunicação privadas – sendo que nem todas são beneficiadas - é para alguns meios um importante rendimento, com um peso considerável no seu orçamento. Não obstante, há quem defenda uma alternativa a esse modelo por considerar que o mesmo favorece “situações menos claras, mesmo com a melhor das intenções, e discrimina meios e tipos de meios”.

Para Luís Martins dos Santos, docente e investigador da Universidade do Minho (Portugal) e convidado a proferir a conferência final do workshop, a “dependência de financiamento público [directo] pode nalguns enquadramentos representar uma mudança à diversidade e à liberdade de expressão”.

Assim, em alternativa, do encontro saiu a sugestão de o Estado passar a apoiar a imprensa privada através da concessão de “benefícios cegos”. Como, por exemplo, a isenção do IVA à semelhança do faz em sectores que considera importantes. E também através da distribuição de campanhas publicitárias institucionais de forma regulada e equilibrada entre todos os meios.

Em jeito de conclusão, Nuno Andrade Ferreira sublinhou a necessidade de se “assumir como questão de Estado e de regime, a necessidade de o país ter e preservar uma comunicação social privada forte, como barómetro e baluarte do sistema democrático e da pluralidade mediática e de pensamento de que (também) vive esse sistema”.

Já Fernando Ortet lembra que “para ser avaliado internacionalmente Cabo Verde precisa apresentar a imprensa privada como prova de que é um Estado democrático, e por via disso tem recebido os mais diversos apoios”. E convida: “Quem quiser que reflicta sobre o que aqui [no encontro] deixamos exposto”.


Ministro diz que maior contributo que o Estado pode dar à imprensa privada é uma agência de notícias.

AJOC reage.

A AJOC considera infelizes as declarações proferidas na segunda-feira pelo Ministro Abraão Vicente durante a cerimónia comemorativa dos 30 anos da Inforpress.

No evento, que teve lugar poucos dias depois do encontro promovido pela AJOC para discutir a débil situação do sector privado de comunicação social e as medidas que o Estado pode adoptar para o alavancar, Abraão Vicente terá afirmado que “o maior contributo que o Estado pode dar à imprensa privada é uma agência que possa fornecer notícias de qualidade e em tempo útil”, naquilo que a AJOC considera um ignorar de algumas garantias legais, nomeadamente a “preservação e a defesa do pluralismo e da concorrência.”

O ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, que tutela a Comunicação Social, referiu também que “a INFORPRESS tem sido a base de toda a produção jornalística da imprensa escrita” e que “mais 50% das notícias dos outros jornais privados são notícias da INFORPRESS, muitas vezes sem nenhum esforço de reescrita e muitas vezes sem a necessária citação da fonte”.

Num comunicado enviado a todos os órgãos de comunicação social ao final do dia de ontem, a AJOC considera que as declarações proferidas pelo ministro configuram um “atestado de incompetência” passado aos jornalistas que trabalham nos órgãos privados de comunicação social cabo-verdiana, “ignorando, por completo, o contributo desses meios e dos seus profissionais na defesa do direito constitucional dos cidadãos à informação, na promoção da liberdade de imprensa e no reforço dos princípios de transparência e de prestação de contas a que são obrigados os decisores políticos”.

A associação sindical jornalística também observa que as declarações de Abraão Vicente demonstram “um total desconhecimento por parte da tutela das condições materiais de produção de informação existentes nos OCS privados e do próprio funcionamento do campo mediático em Cabo Verde”.

Não obstante reconhecer a importância de uma agência noticiosa para um país como Cabo Verde, insular e arquipelágico e com múltiplas comunidades emigradas, a AJOC defende que “o pluralismo informativo, o cruzamento das várias correntes de opinião relevantes na sociedade cabo-verdiana e a própria qualidade do jornalismo, não se esgotam na prestação do serviço público por parte da INFORPRESS”.

A instituição representativa dos jornalistas cabo-verdianos vê as declarações do ministro – nomeadamente as referentes ao acesso livre às informações disponibilizadas no site da INFORPRESS - como uma forma de desvalorizar as preocupações e críticas desses meios privados em relação ao actual modelo de financiamento do sector, naquilo que a associação encara como o “rasgar [de] alguns compromissos que o próprio Governo assume no preâmbulo ao “Regime de Incentivos à Comunicação Social” (Decreto-lei nº 55/2017 de 20 de Novembro)”.

Num momento em que os órgãos privados de comunicação social atravessam uma profunda crise financeira que “poderá ditar, nos próximos tempos, o encerramento de vários projectos editoriais”, o sindicato dos jornalistas manifesta ainda a sua inquietação em relação ao protocolo assinado na segunda-feira, 17, entre o INE e a INFORPRESS. O documento concede prioridade à agência nacional de notícias no acesso aos dados estatísticos produzidos em Cabo Verde.

A AJOC alerta que ao aceitar fornecer à INFORPRESS, em regime de privilégio, os dados estatísticos que produz, o INE estará a violar o princípio de isenção e imparcialidade que deve caracterizar os agentes da administração pública.

“Por considerar que essa medida viola a liberdade de acesso às fontes de informação e põe em causa o pluralismo informativo e a salutar concorrência no campo mediático, a AJOC exige um posicionamento urgente da ARC.”

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 890 de 19 de Dezembro de 2018.

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Autoria:Chissana Magalhães,22 dez 2018 8:18

Editado porFretson Rocha  em  13 set 2019 23:22

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