Este é o orçamento ideal ou é o orçamento possível?
Temos que, nesta altura, fazer do impossível o possível. Penso que esta frase é válida para o contexto especial que vivemos, mas também é válida para este orçamento, quer no contexto da sua elaboração quer também à sua própria execução.
É o orçamento de que o país precisa?
A pandemia causou em todo o mundo uma crise económica e social sem precedentes. E este é um período de enorme responsabilidade para todos nós. É um período excepcional, porque estamos confrontados com uma pandemia excepcional, com consequências profundas nos planos económico e social, nos planos do rendimento e do emprego e nós temos de dar respostas a uma pandemia que está a evoluir num quadro de incerteza, sem que tenhamos um manual de instruções sobre como reagir a esta evolução. Portanto, temos de ir encontrando as melhores soluções e este orçamento visa precisamente isso: por um lado, criar as condições para enfrentarmos a pandemia, em primeiro lugar, em segundo lugar, para recuperar a economia, em terceiro lugar para proteger o emprego e em quarto, para aumentar o rendimento das pessoas. E essas prioridades têm a ver com a pandemia e com as suas consequências. Não são prioridades escolhidas pelo governo, são prioridades que decorrem da gestão da pandemia. Penso que é o orçamento que o país precisa, sempre num quadro de enorme incerteza, onde o governo deve ser muito humilde e onde em função dos acontecimentos e do impacto das medidas em concreto, temos de ir ajustando para que possamos aportar melhores resultados para os nossos cidadãos.
O crescimento para 2021 está estimado em 4,3%. Qual é o grau de incerteza desta projecção?
É enorme. Quando tínhamos previsto este valor para 2021 estávamos a contar com uma recessão económica em 2020, no máximo, de 8,5%. Os dados que temos hoje apontam para uma recessão económica na ordem dos 11%. Nunca Cabo Verde esteve confrontado com uma recessão económica desta envergadura, com esta amplitude, que tem repercussões económicas e sociais duríssimas. Com base nos dados que temos hoje, 2021 poderá vir a ser um ano também difícil. Estávamos a pensar que a vacina surgiria em finais de 2020 e que no início de 2021 começaríamos um processo de retoma, mas com base nos dados que temos hoje, isso dificilmente acontecerá. Isso significa que 2021 terá um contexto difícil e recessivo e Cabo Verde, como pequeno país insular, é um dos países mais impactados por esta pandemia, quer no plano económico, como no social e nos rendimentos. Essa previsão de crescimento é optimista e com base nos dados actuais, esse valor poderá baixar, mas temos de tudo fazer para criar as condições para uma recuperação rápida. A grande vantagem desta pandemia é que até agora não temos tido desequilíbrios estruturais no funcionamento dos sectores, isso significa que assim que houver condições para o desconfinamento, os países podem reiniciar um processo de retoma, mesmo que lentamente. A pandemia, pensamos, terá uma duração curta, porque um ou dois anos é um período muito curto, agora, temos é de ter as condições para agir assim que for possível a retoma. Voltando à questão inicial, com os dados de hoje, deve ser muito difícil atingir esta meta de 4,3%, mas temos de criar as condições para uma rápida retoma assim que a economia desconfinar, tanto no plano nacional como no internacional.
E no caso de um crescimento menor, há um plano B?
Se o crescimento for menor temos de nos ajustar ao nível das despesas, tanto as de funcionamento como as de investimento. Mas também podemos fazer a cativação de uma série de verbas que vão permitir fazer a gestão em função do comportamento do risco. A incerteza é uma realidade neste momento. Ninguém sabe ao certo como estará a economia mundial e cabo-verdiana no primeiro semestre de 2021, uns podem ser mais optimistas do que outros, mas certezas ninguém tem. Não sabemos ainda quando é que a vacina estará no mercado, sobretudo quando é que estará disponível para todo o mundo e depois não sabemos ainda qual será o comportamento dos cidadãos depois da entrada da vacina no mercado. Tudo isto acaba por deixar espaço para uma enorme incerteza em relação à evolução da economia mundial, europeia e nacional. Temos de ter muitas cautelas em relação aos riscos relacionados com o orçamento de 2021, por isso disse no início que temos de fazer do impossível o possível, com muitas cautelas e com uma gestão muito rigorosa da evolução das despesas, quer do funcionamento como do investimento, que nos permita uma boa gestão em função da evolução do ponto de vista económico.
Mas estamos a falar de contenção do investimento numa altura em que se apela a uma intervenção pública forte para aguentar o período de crise.
Vai depender do conjunto de investimentos que temos. Porque para fazermos investimentos temos de arrecadar receitas e estas vão depender do ciclo económico. O certo é que vamos ter de reduzir as despesas, com prioridade para as de funcionamento. Em termos de investimento público, temos um valor na ordem dos 20 milhões de contos e é muito importante termos políticas anticíclicas. Ou seja, estamos num quadro de recessão económica, não faz sentido medidas prócíclicas, que aprofundem ainda mais a recessão económica. A aposta no investimento público é no sentido de tentar contrariar a recessão que estamos a enfrentar. O investimento público é uma prioridade, mas no quadro global do orçamento, havendo necessidade de ajustamentos orçamentais, como disse, a prioridade vai para as despesas de funcionamento, as despesas correntes, e se necessário, poderemos também ajustar o orçamento de investimento, no limite do necessário, caso seja necessário. A nossa arma para contrariar a recessão é o investimento público, principalmente no primeiro semestre, onde teremos um quadro ainda muito débil, com o turismo numa fase de pré-recuperação, portanto, é fundamental que nessa fase haja uma compensação da parte do Estado.
A prioridade assumida no orçamento é a segurança. Estamos a falar, essencialmente, de um instrumento de combate à pandemia?
Essa é a prioridade das prioridades, a saúde e a segurança. Porque precisamos de combater a pandemia e só podemos fazê-lo investindo na saúde, mas também no conceito de alargamento da segurança: a segurança sanitária, social, ambiental, física. A segunda prioridade tem a ver com a recuperação da economia cabo-verdiana e a protecção das empresas. Temos uma série de medidas, quer ao nível do financiamento, ao nível da liquidez, fiscal, de garantias, das bonificações, do lay-off, que visam exactamente essa recuperação. A terceira prioridade é a protecção e a criação de empregos. Protecção através de medidas que estamos a adoptar, nomeadamente ao nível do lay-off, e criação de emprego através do financiamento que estamos a injectar na economia cabo-verdiana, com a intervenção pública do Estado. E temos ainda a quarta prioridade, o rendimento das famílias, e criámos uma série de soluções novas, como o rendimento social de inclusão, o rendimento solidário, e outros instrumentos que estamos a criar. E são essas propostas que estão no orçamento de estado, combater a pandemia, proteger os empregos, apostar na recuperação económica e criar condições para aumentar o rendimento das famílias.
Peço-lhe só uma análise dessas prioridades, começando pela recuperação económica. Que sinal dá este orçamento às empresas?
Temos estado a tomar uma série de medidas para relançar a economia. Vamos continuar com as medidas de apoio ao acesso à liquidez por parte das empresas, nomeadamente a liquidação de facturas, devoluções mais rápidas do IVA, mas também as moratórias em relação ao pagamento de impostos e empréstimos bancários, que vão ser alargadas para 2021, permitindo que as empresas possam ter mais liquidez nesta fase. Mas também temos um conjunto de linhas de crédito Covid-19, com garantias do Estado que cobrem até 80% do risco, temos linhas para novos investimentos, onde o Estado pode bonificar até 100% dos encargos financeiros, temos linhas de financiamento para microfinanças, com bonificações de juro até 100%. Ao nível do emprego, temos medidas em termos de lay-off, de subsídio de desemprego, além de outras medidas de suporte às empresas bem geridas e bem governadas. Isto para além de uma série de medidas sectoriais que estamos a desenvolver ao nível do turismo, dos transportes, da agricultura, da indústria, das indústrias criativas e da economia digital. Estas medidas vão continuar em 2021 e estamos a trabalhar para sermos mais céleres na sua execução, para que os apoios e incentivos possam chegar às empresas de forma mais rápida e com a menor burocracia possível. Essas medidas servirão para relançar a economia nacional.
Em relação às medidas para manter o emprego, até quando pode o executivo financiar parte dos custos do trabalho?
A melhor forma de ajudarmos as empresas é desconfinando a economia. Temos de criar as condições para combatermos o vírus, ao mesmo tempo que trabalhamos no desconfinamento gradual da nossa economia. Não temos recursos ilimitados para continuarmos a intervir eternamente na economia e no plano social. Infelizmente, não temos acesso à tal bazuca financeira que pode vir da zona económica, como é o caso de Portugal, temos de olhar para os recursos endógenos e para as ajudas públicas. Como deve entender, neste contexto, elas escasseiam, há uma diminuição das ajudas públicas ao desenvolvimento porque os recursos são mais limitados e as necessidades maiores. A melhor forma de fazermos um bom equilíbrio é continuarmos a intervir de forma responsável ao mesmo tempo que vamos desconfinando a economia.
Em relação aos rendimentos e às famílias, no fundo, como vão ficar os bolsos das pessoas?
Tudo o que estamos a fazer, quer ao nível da saúde, quer ao nível da protecção das empresas, quer ao nível da promoção da retoma económica, mas também ao nível do acesso ao rendimento é para aumentar o rendimento disponível. Não estamos a tomar nenhuma medida que seja prócíclica: não estamos a aumentar os impostos, não estamos a diminuir os salários da administração pública, não estamos a reduzir as prestações sociais, não estamos a reduzir os apoios às empresas. Claro que a consequência disto tudo é o aumento da dívida pública. É o que todos os países estão a fazer, a acomodar o aumento da dívida pública no curto prazo, esperando a retoma em 2022. Dois anos na história de um país não é muito tempo, se conseguirmos prover dois anos, mesmo aumentando a dívida, teremos depois todo um período de tempo e toda uma geração para pagar essa responsabilidade, evitando que todo o custo desta pandemia fosse assumido ao nível do orçamento de estado para 2021, com consequências imprevisíveis para as famílias, podendo até criar uma disrupção económica e social que teria custos mais acrescidos do que um ligeiro aumento da dívida pública.
Mas essa, digamos, despreocupação com a dívida pública é um alívio, mas também uma responsabilidade.
Não é uma não preocupação, a dívida pública é sempre uma preocupação. A questão que se coloca é quais são os instrumentos disponíveis para gerirmos as consequências económicas e sociais desta pandemia? Os donativos são escassos e estão a diminuir. O aumento de impostos não é recomendável. Corte das despesas no orçamento é muito difícil porque mais de 80% da nossa despesa é líquida, ou seja, são salários, pensões, juros da dívida, transferências para os municípios e obrigatoriedade do Estado em comparticipar nos programas de investimentos com financiamento externo. É uma vertente rígida que só poderia ser cortada com consequências imprevisíveis no contrato social. Não seriam medidas impossíveis, mas teriam um custo social muito forte. A única solução, no curto prazo, é o ligeiro aumento da dívida pública. Essa dívida aumenta de forma transparente, controlada e vai permitir que nos próximos 30/40 anos possamos gerar excedentes para podermos pagar os custos desta epidemia.
O perdão da dívida, ou parte da dívida, cabo-verdiana tem sido posto em cima da mesa, seria fundamental?
Se não o perdão da dívida externa no seu todo, pelo menos o perdão da dívida criada durante a gestão da pandemia. Nós estávamos a diminuir a dívida, iniciámos, em 2016, com um valor à volta dos 130% do PIB, e 2019 estávamos com 124%, com a pandemia invertemos a trajetória. Temos posto essa questão em debate internacional com os nossos parceiros, temos tido uma boa recepção, principalmente dos países do G20, mas esta agenda vai demorar até ser concretizada em definitivo.
O Banco Mundial já disse que esta pandemia pode ser uma oportunidade para construir uma sociedade mais inclusiva. Acredita que isso é possível em Cabo Verde?
Penso que sim. Quando falamos no conceito da segurança total, estamos a falar de inclusão. Porque se não tivermos qualidade de vida que possa abranger todos os nossos cidadãos, dificilmente poderemos ter o conceito de segurança total no nosso país, mas também no mundo. Quando as pessoas vivem sem acesso à habitação, sem acesso à água, sem acesso à energia, sem acesso ao saneamento, sem acesso à informação, sem acesso à educação, estamos perante um perigo permanente. Por isso é que esta crise veio, mais uma vez, levantar a questão da inclusão social e de um mundo mais equilibrado. Porque somos um mundo interdependente. Qualquer crise sanitária que venha a acontecer num país pode afectar todos os países do mundo, como vimos com a Covid-19. Por isso temos de investir na qualidade de vida dos nossos cidadãos em todos os pontos do país, mas também em todos os pontos do globo. Ninguém pode estar seguro, se o seu vizinho está inseguro. Ninguém pode ter qualidade de vida garantida se na sua vizinhança tem um poço de pobreza.
Neste contexto de incertezas e de dificuldades, e falando agora no plano político, contava com mais solidariedade dos partidos da oposição?
Repito. Esta pandemia causou, no mundo e em Cabo Verde, uma crise económica e social sem precedentes. É um momento de enorme responsabilidade para todos nós, e todos nós significa governo, todos os partidos, todas as instituições e todos os indivíduos. Cabo Verde é dos países mais impactado por esta pandemia, os interesses de Cabo Verde e dos cabo-verdianos devem estar à frente das disputas e dos interesses individuais de cada partido. Sabemos bem que vamos entrar em breve numa disputa eleitoral, mas não podemos esquecer-nos que estamos ainda a enfrentar um furacão, que é a pandemia, com consequências ainda imprevisíveis. Há questões, como o país e os seus cidadãos, que são mais importantes do que as lutas político-partidárias e do que questões de poder. Não devemos ter receio de enfrentar os momentos difíceis, e este é um momento dificílimo, por isso, é a altura de toda a nação falar a uma só voz, e de haver o sentido de responsabilidade e de solidariedade para que possamos reduzir o sofrimento das famílias cabo-verdianas e encontrar os melhores caminhos para a retoma.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 991 de 25 de Novembro de 2020.