2024: Retrospectiva de um ano “quente”

PorSara Almeida,5 jan 2025 7:50

O ano de 2024, o ano mais quente desde que há registos, foi marcado não só pelas temperaturas extremas, como por um cenário com várias frentes de guerra e uma escalada de tensão ao nível mundial. Na Ucrânia, a guerra contra a Rússia intensificou-se e no Médio Oriente, o conflito entre Israel e o Hamas atingiu níveis alarmantes, com graves consequências humanitárias e críticas internacionais. Em ambos os conflitos, há um rastilho que se estende a outras nações e faz periclitar a frágil “estabilidade” mundial. O futuro é uma incógnita, mas a herança para 2025 é pesada.

Começando pelo Médio Oriente, onde se joga um dos mais complicados tabuleiros da geopolítica mundial. Israel contra todos, expandiu os seus ataques pelos países vizinhos onde estão estabelecidos grupos islâmicos, que, por sua vez, o vêem como alvo a abater.

Na frente da Faixa de Gaza, a resposta bélica aos ataques do Hamas em território israelita ocorridos em Outubro de 2023 agravou-se. Mais de 41 mil pessoas já perderam a vida, e cerca de 90% da população foi deslocada. Ao longo de todo o ano de 2024 somaram-se atrocidades, o que levou o Tribunal Penal Internacional a emitir mandados de captura contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o seu antigo ministro da Defesa, Yoav Gallant, sob acusação de crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Foi igualmente dada ordem de detenção contra o líder do Hamas, Mohammed Deif, que é acusado dos mesmos crimes.

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O conflito expandiu-se também para o Líbano, devido ao envolvimento do Hezbollah. Esta nova “frente” matou mais de 3.000 libaneses e 100 israelitas e levou a que vários milhares de civis tivessem de se deslocar e procurar refúgio em outros locais.

Um dos episódios mais bizarros deste confronto foi a explosão de pagers e walkie talkies no Líbano, um ataque coordenado pela Mossad, que demorou meses a ser planeado e visava os líderes do Hezbollah. Dezenas de pessoas, sem ligação ao grupo, morreram ou ficaram feridas.

Já perto do final do ano, Israel e o Hezbollah acordaram uma trégua de 60 dias que não tem sido respeitada na íntegra.

Entretanto, neste mês de Dezembro, intensificaram-se os ataques contra Israel pelos houthis, grupo rebelde do Iémen apoiado pelo Irão e parte do “eixo de resistência”. Em resposta Tel Aviv tem realizado ataques aéreos no Iémen.

A complexidade do Médio Oriente continua a desafiar esforços diplomáticos, com países como Egipto, Qatar e EUA tentando mediar uma paz que ainda parece distante.

A queda de al-Assad

Ainda no Médio Oriente, destaque para a Síria. A 8 de Dezembro de 2024, a Síria viveu uma viragem histórica com a queda do regime de Bashar al-Assad, após uma ofensiva relâmpago de 12 dias liderada pelos rebeldes islamistas do Hayat Tahrir al-Sham (HTS). O presidente fugiu para a Rússia, e encerraram-se assim 50 anos de domínio da família Al-Assad. Este desfecho introduziu novas dinâmicas na região, afectando o ‘eixo da resistência’, que, como já referido, inclui o Hamas, o Hezbollah e os Huthis.

O novo regime enfrenta agora o desafio de reconstruir o país, e têm-se sucedido apelos ao levantamento das sanções e criação de instituições inclusivas, enquanto a Síria lida com a incerteza política e o risco de radicalização.

Entretanto, Israel continuou a sua expansão e, aproveitando a instabilidade na Síria, invadiu a zona desmilitarizada daquela região e duplicou a povoação dos assentamentos do Alto Golã.

Além de Israel, também Turquia e EUA ajustam estratégias enquanto Irão e Rússia, aliados de Assad, veem a sua influência enfraquecida na região.

Aliás, Irão e Rússia procuram uma aproximação entre si, estando já agendada uma reunião, no dia 17 de Janeiro para assinar um acordo de parceria estratégica: o chamado “Acordo de Cooperação Global”, depois de o texto ter sido finalizado em Outubro passado.

BRICS na Rússia

Isto leva-nos à XVI Cimeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) realizada em finais de Outubro em Kazan, Rússia, que marca o primeiro encontro do grupo após a inclusão de novos membros, como Irão, Egipto e Etiópia. O evento reforçou a mensagem de que a Rússia, isolada pelo Ocidente, conta com aliados significativos. Entre os temas estiveram a expansão do bloco, que tem agora regimes democratas em minoria.

Este encontro do BRICS aconteceu pouco depois de a Rússia e a Coreia do Norte terem assinado um acordo de parceria estratégica, que inclui uma cláusula de defesa mútua, e que levou Pyongyang a enviar tropas para território russo para serem destacadas na Ucrânia. De acordo com o Pentágono, terão sido deslocados para a região russa de Kursk, próxima da Ucrânia, cerca de 10 mil soldados norte-coreanos.

Guerra da Ucrânia

Falando da guerra da Ucrânia, a invasão russa completou mil dias em 19 de Novembro e não mostra sinais de abrandamento. Pelo contrário, os confrontos intensificaram-se com a Rússia a recorrer a novas armas e aliados, como acima referido, e a Ucrânia lançando contra-ofensivas significativas, com armamento cedido pelos seus apoiantes ocidentais. Negociações de paz não parecem estar nos planos de nenhum dos lados.

O retorno de Trump

No mundo tudo está interligado. Os EUA continuam a ter um papel fundamental nas relações globais. Ano bissexto, já se sabe, é ano de eleições americanas, e estas começaram por uma campanha bastante animada. O antigo presidente Donald Trump, que foi rejeitado nas urnas em 2020, e sobre quem pendiam uma série de acusações criminais, foi aceite como candidato e entrou na corrida contra o (ainda) chefe de Estado, Joe Biden. Entretanto, Biden desistiu de concorrer a novo mandato e endossou Kamala Harris, número dois da sua administração, para o substituir. A candidatura, que não passou por primárias, foi confirmada no Congresso Democrata. Em Novembro os americanos votaram e deram uma vitória indiscutível a Trump, com o partido republicano a conquistar também a maioria no Senado e Câmara dos Representantes.

O Mundo aguarda agora a tomada de posse de Trump, a 20 de Janeiro. Pelas posições já assumidas, tanto em relação aos conflitos em curso, bem como às questões do Clima, irão ocorrer grandes mudanças na abordagem dos EUA aos principais problemas mundiais.

Coreia do Sul

Este ano, além das guerras, houve outros acontecimentos que pareciam improváveis nos dias de hoje, mas que foram marcando o ano. Como a declaração da Lei Marcial na Coreia do Sul, a 3 de Dezembro, pelo presidente Yoon Suk-yeol, sob justificativa de que alegadas forças pró-norte-coreanas e anti-estatais estavam a tentar desestabilizar o país. A declaração chocou toda a Coreia, incluindo o seu partido (minoria no parlamento), com os deputados a convocarem uma sessão especial que resultou na revogação da medida. Em menos de 24h resolvia-se assim o “desvio” democrático, e abria-se a crise política. Suk-yeol foi destituído do cargo e é acusado de violações flagrantes da Constituição. Foi substituído pelo também Primeiro-ministro Han Duck Soo, que se manteve como presidente interino por apenas 13 dias. Em menos de duas semanas, o parlamento aprovou um segundo impeachment, que tal como o primeiro, será ainda apurado pelo Tribunal Constitucional. A encerrar o ano, o Presidente interino é agora Choi Sang-mok, ministro das Finanças. Perto do fim de 2024, no dia 29 de Dezembro um acidente aéreo em Muan, no sudoeste da Coreia do Sul causou 177 mortes. Houve apenas dois sobreviventes.

Sudão

Da Ásia para a África. Menos presente na imprensa, a barbárie continua a decorrer no Sudão, onde os confrontos entre as Forças Armadas Sudanesas e o grupo paramilitar Forças de Suporte Rápido não mostram sinais de abrandamento. O conflito já dura há mais de um ano e meio, com assassinatos em massa e crimes de violência sexual. Estima-se que 25 milhões de pessoas precisem de ajuda humanitária. Desde o início do conflito em Abril de 2023, mais de 11 milhões de sudaneses foram deslocados, havendo 3 milhões refugiados em países vizinhos. A situação agrava-se em Darfur do Norte, onde 750 mil pessoas enfrentam insegurança alimentar. Teme-se, igualmente, o impacto da crise na estabilidade regional.

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CEDEAO

A Comunidade dos Estados da África Ocidental enfrenta a concretização da saída do Níger, Mali e Burkina Faso (que agora constituem a Aliança dos Estados do Sahel) da organização.

Este mês, os líderes da CEDEAO reuniram-se em Abuja para discutir a saída dos três países, que deverá ser formalizada a 29 de Janeiro. Ainda há a opção de ficarem, mas, ao que tudo indica, as juntas militares já tomaram a decisão final. A saída estabelece um perigoso precedente, abrindo espaço para mais fragmentação e enfraquecendo a integração regional, o que favorece o extremismo e compromete a segurança e o desenvolvimento da região.

Moçambique

Em Moçambique, as eleições de Outubro resultaram numa onda de violência que causou a morte a pelo menos 252 pessoas, durante protestos de contestação aos resultados eleitorais. Há também registo de mais de 4000 detidos. Os conflitos começaram com o anúncio dos resultados, que deram a vitória a Daniel Chapo, candidato da Frelimo, com mais de 70% dos votos. O candidato presidencial Venâncio Mondlane contesta os resultados e convocou protestos, que têm degenerado em confrontos violentos. De lembrar que a Frelimo está no poder desde 1975.

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Nos últimos dias de 2024, os confrontos intensificaram-se, com novos focos de protestos, saques e agitação em cadeias, inclusive a fuga de mais de mil detidos da Cadeia Central de Maputo, de máxima segurança.

Os confrontos acontecem num país que é considerado dos mais afectados pelas alterações climáticas, enfrentando frequentes cheias e ciclones. O mais recente, este mês, foi o ciclone Chido, que atingiu o norte do país e que causou a morte a pelo menos 120 pessoas.

Fritos

Não podiamos terminar esta retrospectiva sem falar, pois, do clima. 2023 já batera recordes, e 2024 ultrapassou-os. O ano que ora finda foi o mais quente desde que há registo. Sucedem-se os eventos extremos, como o ciclone Chido.

No Brasil, em Maio, o Rio Grande do Sul enfrentou uma das piores enchentes de sua história, resultantes de chuvas intensas. As enchentes resultaram em 183 mortes e afectaram mais de 60% do território estadual, deixando milhares de pessoas desabrigadas e causando danos significativos à infraestrutura e à economia local.

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Em Espanha, a Dana (Depressão Aislada em Níveis Altos) que ocorreu na região de Valência (Espanha), em finais de Outubro, considerada a pior “gota fria” em décadas, resultou em uma tragédia de grandes proporções. Com chuvas torrenciais e inundações súbitas, pelo menos 223 perderam a vida e. A tempestade causou danos económicos estimados em mais de 20.000 milhões de euros. Embora não seja um fenómeno novo, a sua intensidade reforça os alertas dos cientistas sobre o agravamento dos efeitos climáticos devido ao aquecimento do Mediterrâneo.

COP29

Estes fenómenos mostram à comunidade internacional que não pode ignorar as Mudanças Climáticas, mas as decisões tomadas para as mitigar e contornar os seus efeitos continua aquém do necessário. Acima de tudo, o problema é dinheiro. Dinheiro para alimentar o Fundo de Perdas e Danos, concebido na COP27 e aprovado na COP 28, que se destina a apoiar países em desenvolvimento na recuperação de desastres climáticos. E dinheiro para a transição energética. Um das principais discussões da COP deste ano foi, essa linha, o financiamento para ajudar os países em desenvolvimento a abandonar os combustíveis fósseis.

Centrando-se, pois, no financiamento climático, da COP 29 saiu o compromisso dos países desenvolvidos cederem cerca de 300 mil milhões de dólares anuais até 2035 para apoiar os países em desenvolvimento na adaptação às mudanças climáticas e na transição para economias de baixo carbono. No entanto, este valor foi considerado insuficiente, com as nações vulneráveis a argumentar que seriam necessários pelo menos 500 mil milhões de dólares anuais para enfrentar adequadamente os desafios climáticos.

IA

Nota final para a tecnologia. 2024 foi o ano em que a Inteligência Artificial (IA) se consolidou e transformou de forma aparentemente irreversível a forma de trabalhar e lidar como o mundo. Para 2025, seguem debates éticos e regulatórios que ainda carecem de conclusões concretas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1205 de 31 de Dezembro de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,5 jan 2025 7:50

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  7 jan 2025 9:20

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