EDITORIAL: Sonho adiado

PorHumberto Cardoso, Director,24 fev 2020 9:10

​A descentralização vai estar hoje, dia 19 de Fevereiro, mais uma vez em debate na Assembleia Nacional. É um tema que tem sido recorrente na agenda do parlamento através de várias iniciativas legislativas sobre a relação entre o poder central e poder local e que, por se tratar de um país arquipelágico capta a atenção geral das pessoas e facilmente mobiliza paixões.

Todos parecem perfilhar a ideia de que é urgente descentralizar, mas não há acordo sobre “quando e como proceder”. Recentemente, a lei da regionalização que deveria representar um grande passo em matéria de descentralização foi chumbada no parlamento deixando o governo, os deputados e os partidos a acusarem-se mutuamente pelo fracasso da iniciativa. Entretanto, outras propostas de lei sobre os municípios já foram apresentadas sem que aparentemente se tivesse trabalhado para limar as divergências entre as partes e abrir caminho para os compromissos necessários. Face a isso não é claro que mais um debate parlamentar com os holofotes focados sobre todos os protagonistas seja neste momento o melhor passo a dar, se realmente é a descentralização do país que se pretende.

No próximo ano completam-se trinta anos da realização das primeiras eleições autárquicas no país e da restauração das câmaras municipais anteriormente existentes com atribuições e órgãos representativos próprios. Apesar do extraordinário esforço de descentralização então realizado com o reconhecimento dos municípios como comunidades locais com interesses específicos que se diferenciam de outras comunidades e não se esgotam no interesse nacional, a verdade, que é percepção geral, é que Cabo Verde ainda continua altamente centralizado. Nota-se uma centralização que condiciona a tomada de decisões no que respeita ao timing e oportunidade, afecta a distribuição de recursos, impõe custos de contexto avultados e alimenta uma cultura administrativa mais virada para procedimentos do que para resultados que acaba por ser hegemónica no país. Aliás, uma primeira falha que se pode constatar no processo de descentralização é não ter produzido exemplos de administração municipal que não reproduzissem os defeitos centralizadores da administração central. Ou seja, que se tivesse uma administração com uma atitude mais facilitadora na resolução dos problemas dos munícipes e mais sensível às solicitações dos utentes dos serviços.

O crescimento exponencial da Cidade da Praia nos 45 anos de independência reflecte o processo de centralização que mesmo com o aumento do número dos municípios dos primeiros 14 para os actuais 22 não foi possível travar. A Praia concentra 45% do PIB nacional e tem problemas sérios designadamente em matéria de segurança, saneamento e habitação derivados da população que já se aproxima dos duzentos mil habitantes e do influxo de milhares de pessoas que todos dias entram e saem da cidade. A incapacidade ou a falta de vontade acrescida da falta de visão em mudar o modelo de desenvolvimento do país baseado na reciclagem de fluxos externos impediu que fossem criadas bases de sustentabilidade de uma verdadeira descentralização. A redistribuição de recursos para os municípios apesar de ter propiciado benefícios consideráveis para as ilhas nunca poderia ser suficiente para fazer desaparecer as vulnerabilidades e diminuir a precariedade da existência das populações, em particular as rurais. A história das ilhas mostra que momentos de alguma prosperidade no país só aconteceram quando de alguma forma o país pôde exportar, prestar serviços para o exterior ou servir de base logística para ligações entre os continentes.

Não ver isso e viver na ilusão que autonomias locais podem afirmar-se quando se privilegia gestão de ajudas e não criação de riqueza só levaria a que malefícios que eventualmente se desejaria ultrapassar viessem a se instalar de novo. Ao invés de câmaras municipais facilitadoras de actividades nos seus municípios teve-se de lidar com protagonismos de autarcas que se assenhoreavam de iniciativas, servindo-se de recursos via transferências estatais e outras fontes. Ao invés de uma administração municipal de proximidade reproduziu-se o espírito centralista da administração do Estado. Ao invés de órgãos eleitos com foco na resolução dos municípios com medidas de grande alcance deparou-se em muitos casos com uma atitude em relação ao mandato de na prática nunca deixar de fazer campanha e de permitir que o eleitoralismo condicionasse por completo a actividade autárquica.

Em tais condições, os objectivos da descentralização não se realizam, a utilização de recursos é ineficiente e a relação entre o poder central e o poder local tende a navegar por caminhos perversos. Um exemplo de desvios possíveis é a postura reivindicativa em relação ao Estado cujo objectivo central é conseguir meios e justificação para ser repetidamente eleito. Pode levar a derivas identitárias, trazendo à tona sentimentos bairristas e de vitimização, ao mesmo tempo que desvirtua a política local reduzindo-a a estar ou não alinhada com a estratégia de poder do partido no governo. Uma consequência directa desse tipo de desenvolvimento foi a pressão para o envolvimento do governo na política local e no quadro já estabelecido de campanha permanente. Não espanta que em muitos momentos a relação do governo com as câmaras se mostrasse benévola, renitente ou omissa conforme as conveniências eleitorais. E não tardaria muito que o peso para quem estivesse a governar não acabasse por fortemente condicionar quem ficaria no comando das câmaras municipais. Escusado dizer que o grande sacrificado no processo foi a autonomia municipal e a promessa de diversidade de perspectivas e de sensibilidade em relação às questões regionais e nacionais vindas das ilhas e dos municípios que à partida se quis assegurar e salvaguardar no tempo.

São óbvias as insuficiências do processo de descentralização que se manifestam na excessiva centralização do Estado ainda existente, na fragilidade da administração municipal e na real dependência financeira que limita a actuação dos municípios. Têm sido reconhecidas pelos governantes e pelos partidos quando, por um lado, se propõe dar um salto para cima criando regiões e, por outro, se experimenta com outras entidades designadamente sociedades de desenvolvimento regional e zonas económicas especiais (ZEE). Já se sabe qua a regionalização foi adiada e que presentemente está na forja uma lei sobre as ZEE. A exemplo do que aconteceu em outros países, o que no fundo se pretende com iniciativas similares dirigidas para a atracção de investimento externo e a constituição de bases exportadoras de bens e serviços central é contornar obstáculos e fragilidades institucionais ao desenvolvimento. Ter isso claro é fundamental para que na discussão da lei e na criação do quadro institucional próprio não se repitam erros ao tentar acomodar interesses já existentes que de facto as inviabilizem.

Falhou-se na descentralização, porque em muitos aspectos não se quis fazer o rompimento com práticas do passado e a dado ponto ficou impossível voltar atrás. Os custos do relativo fracasso do processo são pesados. Ultrapassá-los não é fácil, mas certamente que será mais difícil se o jogo for não negociar e de seguida posicionar-se para ver sobre quem cai a culpa de não se ter avançado com a descentralização efectiva do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 951 de 19 de Fevereiro de 2020. 

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,24 fev 2020 9:10

Editado porSara Almeida  em  19 nov 2020 23:20

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