Estatuto Especial da Praia : Desenvolvimento ou reforço do centralismo?

PorAndre Amaral,29 fev 2020 9:17

Poucos temas no espectro político nacional têm gerado uma discussão tão polarizada como a do Estatuto Especial da Praia que o governo quer implementar ainda antes do final da legislatura. Quase não existe um meio-termo, ou se é absolutamente a favor ou absolutamente contra.

De um lado o governo – promotor da legislação – o MpD, a Câmara Municipal da Praia e associações como a Pró-Praia. Do outro, cidadãos que vêem na aprovação deste Estatuto Especial um aprofundar do centralismo da capital em prejuízo das outras ilhas e até mesmo do resto de Santiago.

“As vantagens são para Cabo Verde”, defendia no passado dia 14, o vice-presidente do MpD, Elísio Freire, à entrada para a jornada realizada pelo Grupo Parlamentar do MpD sobre as vantagens da criação de um Estatuto Especial para a Praia. Uma jornada onde todas as vozes se uniram para defender a ideia e ninguém a procurou contradizer.

“Estamos a fazer este Estatuto para a capital no sentido de, em primeiro lugar, qualificarmos e tornarmos ainda mais atractiva a capital do país, criarmos condições para investimentos estruturantes para que a nossa capital seja efectivamente uma capital”, acrescentava.

Falando enquanto vice-presidente do MpD mas também enquanto governante, Elísio Freire concluiu a sua declaração à comunicação social dizendo que a “proposta do governo é muito clara. Tem apenas 12 artigos. Cria uma Comissão de Capitalidade e tem os mecanismos de financiamento. Mas estamos abertos a todas as sugestões e propostas para fixarmos uma proposta única que seja a melhor para Cabo Verde e seja a melhor para a capital”.

Este último comentário de Elísio Freire surgia, aliás, na sequência da declaração feita pelo presidente da Pró-Praia, José Jorge Pina, que defendera momentos antes que “falta uma coisa na lei. A parte de uma orgânica administrativa. Os vários modelos de lei que analisamos trazem uma estrutura administrativa complementar, porque se vão conferir meios e criar uma situação para lidar com uma Praia que já cresceu várias vezes depois de 1999, depois de o Estatuto ser aprovado”.

0,005% das receitas fiscais

Segundo o que é proposto pelo governo, a efectivação de um Estatuto Especial para a Praia prevê que 0,005% das receitas fiscais recolhidas anualmente pelo Estado revertam a favor da Câmara Municipal da Praia.

“Pelas minhas contas, tirando os dedutíveis, são cerca de 70 mil contos”, diz o presidente da Pró-Praia secundado pelo presidente da Câmara Municipal, Óscar Santos.

“A Praia vai receber mais 70 mil contos. Mas as pessoas esquecem-se que só a Praia participa em cerca de 45% da produção de riqueza anual. O que mais se faz aqui na Praia é arrecadação de impostos. O que é o município recebe em contrapartida pela sua participação na riqueza do país? Menos de 1% do PIB”, explica o autarca.

“A pressão sobre a Praia é enorme, constante e diária. As pessoas que vêm para cá produzem lixo e quem é responsável não é o presidente da Câmara de Santa Catarina, da Calheta ou do Tarrafal, é o presidente da Câmara da Praia. Tudo isso é que são os custos da capitalidade. Se queremos ter uma capital digna, então não podemos ter o complexo de dar mais meios à capital”, acrescenta Óscar Santos.

Mas, sendo a Praia a capital de Cabo Verde, já não tem por natureza um estatuto especial? “Obviamente que não”, responde o autarca. “O Estatuto Especial está na Constituição. Aliás, essa é uma solução que foi encontrada há muito tempo noutras paragens, já não é novidade para ninguém. O Estado sozinho não consegue fazer muita coisa se não tiver a cooperação do poder local. Daí então a questão do custo da capitalidade que significa que tanto o poder local da capital de um país e o Estado juntos podem fazer melhor pela cidade”.

O outro lado da barricada

“O Estatuto Administrativo Especial para a cidade da Praia é a mais flagrante evidência de que o Governo aposta todos os trunfos no reforço do centralismo e da hegemonia avassaladora da capital e da ilha de Santiago sobre todo o território nacional. Dá razão aos que pensam que a promessa de regionalização foi um embuste e que o debate parlamentar para a sua aprovação não passou de uma encenação”, diz José Fortes Lopes quando convidado pelo Expresso das Ilhas a comentar a criação do Estatuto.

“Invoca-se o argumento de que o Estatuto Administrativo Especial está na Constituição da República desde 1999”, prossegue. Porém, na opinião de José Fortes Lopes, sobram razões para questionar “a legitimidade ético-moral que presidiu a essa medida, se considerarmos que ela foi adoptada numa altura em que os reflexos da ditadura de partido único ainda não se tinham dissipado. Isto quer dizer que as grandes questões da vida pública não circulavam ainda para fora dos hemiciclos do poder de modo a enformarem a opinião pública e a propiciarem aque­le respaldo da cidadania que é estritamente necessário ao funcionamento da demo­cracia” e que “essa medida foi congeminada “nas costas do povo”, como sói dizer-se, entendendo-se povo como o que habita todas as parcelas do território”.

Também António Pascoal Santos é totalmente contra a possibilidade de um dia a Praia vir a ter um Estatuto Especial.

Em entrevista telefónica ao Expresso das Ilhas este jurista e antigo deputado do MpD começa por recordar que aquilo “que está na Constituição é o Estatuto Administrativo e não um Estatuto Político. Desde o tempo do governo anterior do PAICV e do Presidente de Câmara Felisberto Vieira, houve duas propostas e ambas tinham um Estatuto Político. Até se falava no preâmbulo da cidadania da Praia. Uma série de disparates e baboseiras. O Presidente da Câmara seria transformado em Prefeito. Transformado mesmo, sem eleição”.

Diz o ditado popular que a culpa não pode morrer solteira e, para António Pascoal Santos, o MpD “carrega até agora o complexo e a acusação de ter chumbado essa proposta de Estatuto”.

Para Pascoal Santos, a proposta que o grupo parlamentar do MpD apresentou na semana passada “é de um Estatuto Político, não de um Estatuto Administrativo. Por mais que se queira esticar e dar elasticidade ao conceito, ao figurino administrativo, não é possível transformar com um mínimo de seriedade e boa-fé o administrativo em político”.

Para este jurista “não só a Praia” merece um Estatuto Especial. “Eu defendo que certas cidades tenham um Estatuto Administrativo ou Organizativo ou Financeiro reforçado. À semelhança da grande metrópole de Lisboa ou do Porto, em Portugal têm”.

Mais um argumento: “O país não tem dimensões para que se tenha um Estatuto Especial propriamente dito”, defende António Pascoal Santos que prossegue defendendo que da “mesma maneira que as necessidades de São Vicente não são as mesmas da Brava ou de outros concelhos, as necessidades da Praia são cada vez maiores. Mas as possibilidades, as receitas, o facto de o poder estar concentrado aqui na Praia a todos os níveis, só isso já dá uma vantagem incomparável” à capital.

“O facto dos concelhos do interior de Santiago e das outras ilhas estarem a migrar para a Praia é consequência dos desequilíbrios em que tudo ou quase tudo está concentrado na Praia. Eu costumo dizer que a Praia pode morrer de colesterol, de gordura por tanto inchar enquanto os outros morrem de anemia de tanto faltar”.

Arma de arremesso político?

Para António Monteiro, presidente da UCID, é necessário, em primeiro lugar, “questionar a oportunidade do Estatuto”. “E quando dizemos questionar é porque nós gostaríamos de relembrar que quando o governo de então do PAICV apresentou ao parlamento uma proposta de Estatuto Especial para a Praia o MpD, que na altura estava na oposição, foi contra em todos os sentidos”.

Agora, passadas duas décadas sobre a inclusão do Estatuto Especial da Constituição República de Cabo Verde “nós temos um governo do MpD a trazer à ribalta, mais uma vez, o Estatuto Especial da Praia”.

“E é aqui que nós questionamos: será que o Estatuto Especial é somente uma arma de arremesso político dos partidos ou será que este Estatuto é algo muito importante para o desenvolvimento socio-económico da capital?”, pergunta António Monteiro para quem “uma coisa não pode ser verde hoje para dois dias depois passar a ser amarela. É verde e continuará a ser verde independentemente se a cor acabar por ser corroída pelo tempo”.

Na opinião do presidente da UCID “a Praia de per si já tem um estatuto especial. Entendemos que há muitas situações anómalas na Praia que precisam de ser analisadas e consideradas num sentido do seu melhoramento. Mas entendemos que, provavel­mente, não é o Estatuto que irá resolver estas questões. Nós achamos que há uma concentração muito forte na Praia de capacidades intelectuais, de riqueza, de recursos e que este Estatuto vai aumentar ainda mais essa concentração” e isso, conclui, “exige de nós, políticos, e sobretudo de quem está agora a governar uma certa visão integradora”.

O Expresso das Ilhas tentou obter a reacção do PAICV sobre a questão do Estatuto Especial para a cidade da Praia mas o líder parlamentar do maior partido da oposição, Rui Semedo, disse que “ainda não se debruçou sobre o assunto nas jornadas parlamentares” e que, por isso, não tem ainda uma posição definida. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 952 de 25 de Fevereiro de 2020. 

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Autoria:Andre Amaral,29 fev 2020 9:17

Editado porAntónio Monteiro  em  24 nov 2020 23:21

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