Em debate na Assembleia Nacional estava uma proposta de alteração na governança do SEE com a criação de uma nova entidade de gestão de participações do Estado na perspectiva de se obter uma melhoria na eficiência do funcionamento das empresas estatais. Quer-se com um novo modelo de gestão que as empresas deixem de ser sugadores dos recursos públicos e de passarem a contribuir de forma mais efectiva para a melhoria do ambiente de negócios, para diminuir custos de factores como água e electricidade e outros custos transaccionais ligados aos transportes e à conectividade interilhas e entre o país e o mundo. A melhoria da gestão das empresas que constituem o SEE tem sido uma recomendação permanente de organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial e também do GAO.
A iniciativa legislativa do governo visa aparentemente dar uma resposta à essa insistência das organizações internacionais. Espera-se é que não se fique por aí e haja consequências práticas com real impacto na redução dos riscos, na melhoria dos serviços prestados e na facilitação da iniciativa privada em vários sectores. O cepticismo em relação a isso revelado nas intervenções da oposição tem a ver com as enormes dificuldades em realmente mudar a situação no SEE como se pode constatar de outras iniciativas do actual governo e dos anteriores para melhoria da gestão dessas empresas que não tiveram o sucesso esperado. O resultado em muitos casos viu-se na dívida pública acumulada, na excessiva exposição do Estado devido a garantias e avales e nas dificuldades acrescidas em novos custos e em maiores resistências às reformas que globalmente tornam os problemas de certos sectores públicos quase intratáveis.
Pode-se considerar que o cepticismo é transversal. Hoje é expresso pela actual oposição que já foi governo e amanhã poderá ser a atitude assumida por uma diferente oposição. As dificuldades em determinar o papel do Estado e em particular do SEE num pequeno país arquipélago de parcos recursos e reduzida população e com mercado fragmentado por nove ilhas são enormes. Também não ajuda o facto de não existir entendimento quanto à natureza das dificuldades e em como as ultrapassar. E não poucas vezes essas dificuldades tornaram-se maiores por razões ideológicas, por insistência em mitos diversos e por imposição de soluções pela cooperação internacional.
Assim, já se teve a estatização da economia com um SEE dominante nos primeiros quinze anos e não resultou. A estagnação económica que acabou por produzir juntamente com a escassez e falta de diversidade de produtos e o desincentivo à iniciativa empresarial e aos investimentos serviram de motor para a mudança para uma economia de mercado que veio a verificar-se nos anos noventa. Seguiu-se a liberalização económica, atracção de investimento directo estrageiro e privatizações que aumentaram extraordinariamente o potencial de crescimento do país e levaram a taxas elevadas do PIB.
Desde a crise financeira de 2008 que se nota que, com o pouco crescimento da produtividade e a diminuição da competitividade do país, não obstante o grande crescimento do fluxo turístico, não tem sido possível elevar de forma sustentada as taxas de crescimento do PIB a mais de 7%, a taxa que consensualmente se acha necessário para o país prosperar, criar emprego e garantir rendimento às pessoas. Entretanto, a dívida pública vem aumentando e depois do salto devido à Covid-19, ainda não regressou, segundo os últimos relatórios do FMI, aos níveis pré-pandémicos de 2019. Tem sido feito um esforço de consolidação orçamental e conseguiu-se um saldo primário positivo em 2023, mas segundo o FMI foi com o aumento das receitas fiscais, baixa execução do orçamento de investimentos e pagamento pontual do fee da concessão dos aeroportos. A contenção efectiva de riscos orçamentais e a obtenção de saldos primários positivos terá que passar necessariamente por uma melhor gestão e adequação do SEE.
Não havendo, porém, entendimento quanto à natureza das dificuldades que as empresas estatais enfrentam e quanto ao papel ou função que podem desempenhar, fica tudo muito difícil. Há quem pense que o mercado de per si pode resolver. Viu-se nos transportes marítimos em como de um concurso público e da procura de navios novos se chegou a um concessionário, a navios sob leasing e à subsidiação expressiva. Acontece algo similar nos transportes aéreos e noutros sectores como água e energia. De facto, o mercado do país não é realmente unificado, em vários sectores o mercado é imperfeito e noutros há falhas de mercado. Globalmente há um problema de escala que cria ineficiências graves com os custos correspondentes e ineficácias na prestação de serviços.
Claramente que a iniciativa privada e o empresariado público devem poder se conjugar para obter os melhores resultados no processo de criação de riqueza no país. Para isso é fundamental que haja um esforço dirigido do Estado para conseguir uma gestão altamente qualificada e competente para o sector público. Uma política de atracção e formação de quadros seguindo critérios meritocráticos seria o desejável. É o que Singapura fez, mas que no ambiente de crispação política que se vive em Cabo Verde dificilmente se conseguiria, particularmente quando cada vez mais a lógica da militância partidária orienta-se pela procura e disponibilização de lugares no Estado.
Porém, sem gestão competente do SEE não há como fazê-lo cumprir os objectivos de contenção do risco e de acelerador. Pode-se avançar com mudanças no modelo de governança, mas dificilmente se vai criar cultura organizacional adequada e ganhar competência executiva. De facto, nomeações determinadas pelo jogo político-partidário podem acabar por distorcer os propósitos de gestão. Nota-se, por exemplo, como nas empresas a colegialidade dos órgãos de administração é enfraquecida com o empoderamento e voto de qualidade dos PCAs. Também a relação entre governantes, entidades reguladoras independentes e as empresas estatais pode ser condicionada pela excessiva centralização dos poderes de nomeação e de tutela num único membro do governo, o que claramente não favorece o ambiente de negócios propício a investimentos e à actividade empresarial. Por outro lado, privatizações por si só não vão resolver o problema, como já se sabe dos fracassos passados.
Cepticismo de hoje em relação a melhorias na gestão do SEE será o mesmo de amanhã, como já foi o de ontem, se não se assumir uma outra atitude. É preciso que haja um entendimento geral quanto à necessidade fulcral de se ter uma administração pública e um SEE competentes. É fundamental para desenvolver um país. A par com uma educação de excelência foi a opção ganhadora de Singapura.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.