Aviso: Populismo pode levar à tirania

PorA Direcção,23 mai 2025 8:29

As eleições em três países europeus no último fim-de-semana, 18 de Maio, vieram confirmar a caminhada ascendente da extrema- direita na Europa. Em Portugal, os avanços são evidentes com o partido Chega a posicionar-se para o segundo lugar no espectro político partidário e a demonstrar-se atractivo para antigos eleitores de partidos de esquerda, incluindo o partido socialista.

Na Polónia e na Roménia são tão evidentes os ganhos conseguidos que é uma questão de tempo para os candidatos da extrema-direita obterem uma vitória nas disputas presidenciais. Vê-se o mesmo padrão em várias outras democracias que também enfrentam crises sociopolíticas de representação exacerbadas pela polarização da sociedade, o enfraquecimento dos partidos do centro político, as políticas identitárias e os problemas de imigração.

Nota-se que cada vez mais os votos dos eleitores parecem dirigir-se para forças políticas extremas, abandonando a preferência de classe ou ideológica de há muito estabelecida. Aparentemente, o fenómeno explica-se pela forma como o medo, o ressentimento e a incerteza em relação ao futuro tendem a prevalecer sobre o que seriam escolhas racionais ou expectáveis das pessoas com base no interesse sócio-económico, na aproximação política e no sentido de pertença a comunidades específicas. Quando é assim, há rompimento com os partidos tradicionais do centro, seja da esquerda, ou seja da direita.

O ganho maior com a convergência dos votos tem ido para a direita radical ou para a extrema-direita dando fôlego a forças políticas pré-existentes, ou promovendo novos partidos. No caso americano, trata-se de um partido tradicional, capturado por um candidato, e depois presidente, e devidamente saneado das suas elites partidárias anteriores, que se torna no grande atractor desse sentimento de desesperança, de ressentimento e até de exigência de compensação por males reais ou imaginados e mesmo vingança. Os primeiros cem dias do governo de Donald Trump têm demonstrado até que ponto se pode ir quando essas forças chegam ao poder.

Cabo Verde não está imune a essas dinâmicas que afectam outras democracias. Aqui também manifestam-se sinais de crise das democracias designadamente no fosso que parece existir entre as expectativas das pessoas e as condições reais de realização das suas aspirações ou o ritmo em que as oportunidades são criadas. Também são sinais a percepção de maior desigualdade social e o que aparentemente mostra ser a incapacidade da classe política, em particular dos partidos do arco de poder em apresentar projectos alternativos de políticas que podiam abrir um futuro mais promissor. Face a isso, seria só uma questão de tempo para, a exemplo do que vem passando em outras democracias, o descontentamento de vários sectores do eleitorado ser mobilizado por forças populistas.

A situação política especial em que o município da Praia se encontrou depois das eleições de 2020 criou o cenário ideal para isso. A instabilidade logo no início do mandato devido à disputa entre o presidente da câmara e os vereadores do seu partido destruiu a maioria na câmara municipal que o PAICV tinha ganho nas eleições. O funcionamento dos órgãos municipais passou a fazer-se a partir daí fora da normalidade legal e institucional já estabelecida por trinta anos do municipalismo democrático. Com um discurso de dupla vitimização por parte do governo e das “elites”, incluindo sectores do PAICV, o presidente da Câmara Municipal justificava a sua actuação no município.

A partir daí era possível cavar uma trajectória própria com distanciamento em relação ao partido e uma aura de impunidade em relação ao Estado. Com o poder e os recursos do município haveria uma base através da qual os entretanto identificados como “excluídos do sistema” podiam dar uma resposta assertiva às elites e à classe política. O motor do populismo era assim posto a funcionar. Diferentemente do que se passou em outras paragens, acontecia nas margens e com a cobertura de um partido que se identifica com a esquerda.

Vieram as eleições autárquicas de 2024 e a grande vitória já foi do presidente da câmara municipal e não do partido como na eleição anterior. Abriu-se a porta para a captura do partido e o reconhecimento do facto levou ao ainda líder a escusar um novo mandato. Mas como já aconteceu com outros partidos que se viram na mesma situação, as reacções não tardaram e vieram na forma de três candidaturas. Por experiência, porém, sabe-se que dificilmente se consegue impedir o processo.

De facto, com exemplos dos populistas a explorar a seu favor a condição de vítima das elites, dificilmente essas tentativas de dirigentes do partido terão sucesso. Particularmente quando não são tomadas posições políticas e se fica por questões que podem ser apresentadas como sendo de natureza procedimental e como tal “de secretaria”. É o caso das quotas que levou à interrupção do processo eleitoral e que para a candidatura visada serviu como mais uma demonstração da sua condição de vítima das elites.

A experiência recente das democracias com o populismo de direita ou de esquerda demonstra que não é fácil conter o seu ímpeto. Ao se apresentarem como campeões dos “excluídos do sistema”, por um lado, tendem a canalizar todo o descontentamento com o regime vigente político e a produzir uma mensagem política que se revela transversal atingindo vários segmentos da população. Partes significativas do eleitorado de partidos tradicionais tidos como fixos podem surpreender com a transferência de votos para os populistas, a exemplo do que se passou em Portugal.

Por outro lado, com a extrema polarização procuram criar uma realidade alternativa em que factos e dados institucionais são tidos como a verdade das elites e por isso efectivamente bloqueados ou descartados. Sem uma base comum de discussão, não fica espaço para o diálogo, para a política e para compromissos em relação ao futuro. A esfera pública reduz-se na cacofonia que é criada com a apresentação de soluções simples para situações complexas e na impossibilidade de as provar como viáveis ou inatingíveis por falta de debate.

Os vários casos de conquista do poder e das rédeas de governação por populistas demonstram a incompetência e muitas vezes o efeito destrutivo da acção governativa. Preocupante é que mesmo nesses casos de demonstrada incapacidade não é evidente que haja grande erosão da sua base de apoio. Razão mais do que suficiente para se evitar que forças populistas se tornem dominantes na sociedade. Para isso é fundamental insistir no cumprimento das normas e procedimentos democráticos, assegurar que as competências dos vários órgãos são exercidas e que os checks and balance do sistema funcionam de forma a manter a confiança nas instituições e garantir o espírito de solidariedade na comunidade.

Atacando o sistema democrático, alimentando o cinismo em relação a tudo, esvaziando a esperança no futuro, cria-se espaço para tirania futura. E para os que já se esqueceram o que significa tirania, os tiranos na actualidade relembram o que milénios atrás Platão escreveu no seu livro “A República”: “o tirano não tolera os críticos, nem sequer aqueles, precisamente, que o ajudaram a subir para o carro do Estado e que, entretanto, se mostraram os seus mais fiéis validos. A uns e outros ele elimina sucessivamente, sobretudo aqueles que o ajudaram a elevá-lo àquela posição e que têm poder para falar livremente, diante dele e uns com os outros, até que, por fim, não sobram a seu lado senão os medíocres, os ineptos e os aduladores”.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1225 de 21 de Maio de 2025.

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Autoria:A Direcção,23 mai 2025 8:29

Editado porAndre Amaral  em  24 mai 2025 23:30

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