No rescaldo das eleições autárquicas novas lideranças partidarias poderão surgir

PorA Direcção,6 dez 2024 8:34

As nonas eleições autárquicas aconteceram no passado dia 1 de Dezembro e, como era esperado, aumentou o número de câmaras municipais (CM) lideradas pelo PAICV. O que não se contava é que tal desfecho se traduzisse numa vitória inequívoca desse partido, passando a dominar o espaço autárquico com quinze municípios, contra os sete sob o controlo do MpD. O aumento das CM do PAICV nestas eleições em parte reflecte a tendência para a retoma do equilíbrio autárquico perdido em 2016, quando o PAICV ficou com duas CM e o MpD com 18, que já em 2020, com a subida do score do PAICV para sete CM, tinha começado a manifestar-se.

Para a dimensão da vitória do PAICV terão contribuído, entre outros factores, o desgaste natural da governação na fase final do segundo mandato e a excessiva exposição do governo com o envolvimento intenso do primeiro-ministro e de outros membros do governo na campanha eleitoral. É de recordar que a vitória retumbante do MpD nas autárquicas de 2016 se deveu, em boa parte, ao empenhamento inusitado do primeiro-ministro, eleito poucos meses antes, o que acabou por esbater, nas populações, a diferença entre eleições locais e nacionais. A partir daí, estabeleceu-se um padrão de aproximação governamental aos municípios que, eventualmente, terá trazido benefícios políticos e eleitorais, mas que, posteriormente, prejudicou quando mudou a percepção das pessoas em relação às políticas do governo.

Um outro factor a ter em conta para compreender a nova realidade autárquica é a tendência em várias democracias do eleitorado em punir os incumbentes, votando na oposição. Depois de passada a crise pela Covid-19 e os efeitos da guerra da Ucrânia e a inflação em queda, as pessoas sob stress e descontentes com o ritmo de recuperação pós-crise apostam, em renovar os governos, mesmo que a alternativa não dê sinais inequívocos de não ser igual ou pior que o actual incumbente. A manter-se esse sentimento anti-incumbente é de esperar que venha a ter impacto sobre as eleições legislativas, a realizar-se em meados de 2026, e que cálculos políticos já estejam a ser feitos para, conforme o caso, se atenuar ou amplificar os seus efeitos.

Nesse sentido, a questão central é a das lideranças partidárias que vão ser os protagonistas na disputa eleitoral das legislativas. Do lado do MpD, com o novo quadro político marcado pela vitória do PAICV nas autárquicas coloca-se o problema de saber se o actual primeiro ministro mantém a promessa de se candidatar para um terceiro mandato ou se abre o caminho para uma renovação da liderança do MpD. De facto, Ulisses Correia e Silva não deverá sentir-se obrigado a manter o compromisso depois da derrota sofrida, que também é pessoal, considerando o nível do seu envolvimento na escolha das candidaturas e na campanha eleitoral. A acontecer, o partido terá de procurar uma outra liderança para os novos tempos.

Do lado do PAICV é expectável que, com a vitória nas eleições e o protagonismo reforçado de Francisco Carvalho, se queira avançar com um novo líder. Se assim for espera-se a resistência do actual presidente do partido que certamente vê como natural assumir para si os resultados positivos das eleições. De facto, a vitória eleitoral na Praia está a ser construída como feito pessoal do presidente da câmara, que já se projecta no país definindo metas e a preparar o futuro, o que, naturalmente, irá condicionar as relações de força no congresso do partido previsto para 2025. Problemático será se a mensagem populista de vitimização, antielitista e desafiadora das normas e das instituições for adoptada pelo partido, reproduzindo a prática bem sucedida de certas forças políticas em algumas democracias na Europa e na América.

Nas eleições autárquicas viu-se a tentação de ir por esse caminho. Porém no final, da generalidade dos participantes e dos observadores veio a confirmação de que o processo eleitoral tinha corrido bem e que a actuação da CNE foi competente e efectiva. Despertou particularmente a atenção a denúncia contra a participação do PCA do NOSI na campanha deixando entender que isso podia pôr em causa a neutralidade e a imparcialidade da instituição na divulgação dos resultados eleitorais provisórios. O facto de que, nos cerca de 14 anos a prestar esse serviço, nunca se questionou a filiação ou actividade partidária dos administradores do NOSI, por ser irrelevante, dá a sensação de que, a exemplo do que vem acontecendo noutras paragens, se procurou, em antecipação dos resultados eleitorais, pôr em causa a integridade do processo. Depois, se se ganha, não há reclamação, mas, se se perde, justifica-se imediatamente que houve fraude.

A verdade é que o processo eleitoral em Cabo Verde está consolidado e que apesar de denúncias pontuais de compra de votos ou de bilhetes de identidade, os resultados são aceites pelas forças políticas envolvidas e pela sociedade. Por isso é que, na sequências das eleições, não há distúrbios: os vitoriosos festejam e os vencidos concedem a derrota. Não deixa, porém, de ser importante que, em sede própria do parlamento, se revisite o código eleitoral para clarificar certas normas e, talvez, adequa-lo ao actual estado de maturidade dos eleitores e das instituições eleitorais.

Não se compreende por exemplo que não seja possível publicar sondagens durante o período eleitoral ou que seja proibida publicidade patrocinada nos órgãos de comunicação sociais e agora estendida às redes sociais. Talvez fizesse sentido nos primeiros anos para evitar influência excessiva no eleitor, quando se estava a iniciar-se, como cidadão pleno, a escolher os seus representantes e os governantes do país. Também parece excessivo, em nome da neutralidade das entidades públicas, querer coarctar os actos de governação, a ponto de quase os limitar aos de um governo de gestão, mas sem respaldo constitucional. Muito menos sentido fez o acto inédito de suspender deputados, em plena sessão plenária, por serem candidatos partidários nas eleições autárquicas.

Há que, de facto, haver alguma contenção, como previsto no código eleitoral, para assegurar a igualdade de oportunidade das candidaturas, mas sem desproporcionalmente limitar a liberdade de expressão e de informação e o direito de participação política dos cidadãos. A falta de clarificação nessas e noutras matérias poderá dar azo a que se usem as denúncias como arma eleitoral para se pôr em causa o processo eleitoral e, eventualmente, contestar as eleições e perturbar o processo normal de transferência de poder. Já se viu isso noutras paragens. Com mais actos eleitorais no horizonte, é fundamental que se procure salvaguardar o direito ao voto e a credibilidade das instituições de administração eleitoral para que momentos como os vividos no domingo último, de aceitação pacífica dos resultados das eleições, se repitam periodicamente, para a consolidação e prestígio da nossa democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1201 de 04 de Dezembro de 2024.

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Autoria:A Direcção,6 dez 2024 8:34

Editado porAndre Amaral  em  26 dez 2024 10:20

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