“Continuamos a esperar resultados diferentes, mas com os mesmos actores e as mesmas políticas”

PorSara Almeida,5 jan 2025 7:50

Manuel Brito-Semedo, Escritor e Antropólogo
Manuel Brito-Semedo, Escritor e Antropólogo

Um mundo em ebulição, e um ano que se revela complicado para todos. Por cá, continuamos “a viver como se os problemas globais fossem algo distante” e a esperar resultados diferentes com os mesmos actores e práticas. A observação é de Manuel Brito-Semedo que escolhe a palavra incerteza para perspectivar 2025, numa entrevista em que também se passa em revista 2024.

Nesta conversa, o antropólogo não poupa críticas ao governo, que considera ‘fraco’, nem ao Presidente da República, que, acusa, alimenta temas fracturantes para a sociedade cabo-verdiana. Brito-Semedo, que este ano esteve no centro de uma polémica ao afirmar que ‘culturalmente Cabo Verde não é África’, aborda estas e outras questões sensíveis do país, antevendo que “a vida vai ser mais difícil, e precisamos estar preparados”.

Começava com um olhar geral, pelo mundo. Quais são para si os temas ou os eventos mais marcantes de 2024?

Eu diria que há dois grandes acontecimentos, que são marcantes: a questão do Médio Oriente e a crise das democracias. O Médio Oriente, pela sua importância histórica, cultural e estratégica, é descrito como o berço da civilização e das principais religiões monoteístas. Composto, entre outros, por Israel, Palestina, com os territórios de Cisjordânia e Faixa de Gaza, o Líbano, a Jordânia e a Síria, o Médio Oriente é o ponto quente deste ano. Portanto, o que sempre vimos como o berço da civilização, com as atrocidades que estão a acontecer, pode ser a cova da civilização. Do berço à cova, com todas essas mudanças, no contexto do processo de genocídio, que é a acusação que recai, sobretudo, sobre Israel. Quando se fala de civilização, isso está relacionado com as próprias religiões, cada uma com posições firmes, já marcadas pelos extremos. Outro grande acontecimento é a crise das democracias, a ascensão da extrema-direita no mundo ocidental. Estamos a assistir a isso na Europa, na América do Norte e na América do Sul. Na América do Norte, nos Estados Unidos, que são considerados o país da democracia, ninguém sabe o que poderá acontecer com o regresso de Trump. Na América do Sul, temos agora o novo presidente na Argentina, que reflecte essa tendência. Na Europa, poderia falar da França ou mesmo Portugal. Quem havia de pensar que um partido como Chega, 50 anos depois do 25 de Abril, poderá estar como está? É uma grande crise das democracias. Há uma situação muito complicada em termos mundiais, vamos começar 2025 e vai continuar a ser isto. Continua a arrastar-se a guerra da Ucrânia com a Rússia e não sabemos como vai ser na decorrência. Há as mudanças que vão acontecer nos EUA. Não sabemos como a situação vai evoluir no Médio Oriente. E tudo isto vai ter efeitos a nível mundial, pois quando se “espirra do lado de lá, trememos deste lado”. Vai ser um ano que se prevê muito, muito difícil para o mundo e para Cabo Verde.

Essa é a perspectiva para 2025?

É numa palavra: incerteza. Ninguém pode perspectivar nada. Nestes últimos anos, sobretudo a partir de 2019, com a COVID-19 e as guerras que começaram, parece que vivemos sempre na incerteza. Essa incerteza tornou-se – um pleonasmo – ainda mais incerta, porque parece haver uma escalada. Passámos de uma guerra fria para uma guerra quente, alargada e mundial. A minha preocupação é que, houve a COVID-19, houve a guerra, há incerteza, e em Cabo Verde continuamos a viver como se os problemas globais fossem algo distante. A perspectiva para 2025 é que vai exigir muito mais de Cabo Verde. Não podemos continuar a organizarmos e a perspectivar o mundo da mesma forma, esperando que aconteçam coisas diferentes, com os mesmos procedimentos, os mesmos actores e a mesma visão das coisas.

Então falando de Cabo Verde. Em retrospectiva, quais destacaria como os principais acontecimentos de 2024?

Começa com uma avaliação muito positiva nos rankings internacionais. Cabo Verde nunca esteve tão bem classificado, em todas as áreas. Mas, isto não é reflectido internamente. Cabo Verde sempre foi muito bom aluno fora, mas dentro é chumbado, ou passa à tangente. Por exemplo, não me lembro de ter havido uma situação tão tensa das relações e de guerrilha institucional, como a que vivemos este ano, entre a presidência da República e o governo e a presidência e os próprios tribunais. Foi um ano muito estranho para Cabo Verde. Aliás, tem sido, de há dois anos para cá, mas agora atingiu-se um pico particularmente elevado. Até instituições que tradicionalmente gozam de grande confiança da população, como a Presidência da República e as Forças Armadas, viram a sua confiabilidade despencar. Basta ver que cerca de 60% dos cabo-verdianos não confiam no Presidente da República nem no Primeiro-Ministro, como mostra o estudo da Afrosondagem [10º inquérito sobre a qualidade da democracia e da governação em Cabo Verde]. E percebemos porquê. Por um lado, temos um Governo que, apesar de possuir uma maioria parlamentar, parece que não acredita que a tem, comporta-se como se não a tivesse: é um Governo fraco. Por outro lado, temos um Presidente ideologicamente forte, que parece continuar a ser o presidente do PAIGC/PAICV. Ele insiste em introduzir temas que dividem profundamente a sociedade, relacionados com valores que remetem ao Partido Único. E o governo, que é fraco, não tem uma posição em relação a isso. Tudo isto numa situação que tem como agravante o escândalo na Presidência da República. O PR espera que o governo aprove uma nova lei orgânica, que lhe dá mais margem, e, antes da aprovação, atribui um salário à primeira-dama, quando não havia suporte legal para tal. Deixou de ser apenas um caso administrativo para ser um caso político. O PR diz que esta situação foi usada contra ele, mas foi ele quem abriu o precedente. Tudo isto leva a que as pessoas não confiem. Não confiam no PR, não confiam no governo, pela forma como governa e não confiam no Primeiro-ministro que é fraco em relação ao PR. É um PM que não toma posições para não ficar mal. Repare-se que temos um Governo que, ao longo de oito anos, não promoveu qualquer renovação significativa. Contudo, espera-se, de forma paradoxal, resultados diferentes, com os mesmos actores e as mesmas estruturas a conduzir os destinos do país.

Falou que o PR tem trazido temas que dividem o país?

Estranhamos os temas de clivagem que o Presidente da República tem estado a introduzir. Tivemos as celebrações do Acordo de Lisboa, que é um acordo que consagra o Partido Único. Vem na sequência da tomada da Rádio [de Barlavento] e prisões dos adversários políticos do PAIGC e o Acordo de Lisboa, como foi feito, e acabou por não ser cumprido, estabelece o Partido Único. É isto que está a ser celebrado com pompa e circunstância e cria clivagens. O mesmo aconteceu, entre em a Presidência da República e o Parlamento, quando este não aprovou a celebração, a nível de Estado, do centenário da Amílcar Cabral, mas a Presidência da República fez celebrações de Estado. Tudo isto cria clivagens.

Acha que vem desunir Cabo Verde?

Sim. Temos posições diferentes, assumidamente.

Mas democracia não é isso, a expressão de posições diferentes?

Posições diferentes, mas não posições que são fracturantes. É só ver a participação. A Presidência da República associa-se à Fundação Amílcar Cabral e ao Instituto Pedro Pires para fazer comemorações e reconhecimentos do Estado, de posições que são do PAIGC/PAICV. E o governo, da maioria, que é eleito num quadro de democracia, não participa. Há um grupo à volta do Palácio do Plateau e um outro élan foi-lhe dado pela vitória do PAICV nas autárquicas.

Falando das Autárquicas, como vê os resultados?

O governo tem falhado e tem havido um descontentamento social, marcado por greves, como as dos médicos e dos professores. A classe docente está de costas voltadas com o governo. Decorreu no Parlamento a discussão sobre o plano de carreiras, funções e remunerações (PCFR dos professores), que foi vetado pelo PR. Este, por sua vez, não ajudou muito na resolução, pois recebeu os sindicatos, que lhe foram fazer queixa e pedir para não aprovar a medida. A situação é, de facto, algo anómala. O PR, que deve ainda achar que também é Primeiro-Ministro, interfere muitas vezes. É o antigo Presidente do Partido e anterior Primeiro-Ministro, que é Presidente da República e por vezes há confusão de papéis. Ele tem toda a legitimidade para vetar e o governo leva a proposta ao Parlamento onde tem maioria – uma maioria um bocado desorientada. A proposta é aprovada e volta ao PR que agora é obrigado a homologar. Este é o processo, mas tudo isto cria uma situação de descontentamento social. Alimenta a crise na Presidência da República, que não se resume ao caso da primeira-dama. Tivemos também o PR a questionar a legitimidade do Tribunal de Contas, quando este ainda está em funções, não há substituição e, portanto, está legítimo. Isto, quando a própria Presidência está com problemas com o Tribunal de Contas – e o caso está agora na Procuradoria. Que eu saiba, nunca houve situações semelhantes dentro da Casa Civil da Presidência da República antes.

E os resultados das autárquicas?

Temos um novo mapa autárquico, sendo que o PAICV, pela primeira vez, vence. Mas, há uma abstenção de 50%. A elevada abstenção pode estar relacionada, em parte, com a emigração, já que muitos jovens têm saído do país. Muitos dos eleitores podem ter migrado, mas a verdade é que a abstenção tem aumentado, o que indica que as pessoas não acreditam no sistema político e, por isso, optam por não votar. Isto exige uma reflexão. Metade da população não vota e a outra metade dá uma grande maioria porque está descontente.

Então não foi o PAICV que ganhou foi o MpD que perdeu?

É isso. O governo diz que não é sua responsabilidade, mas todo o executivo esteve envolvido na campanha, e perdeu. A culpa é do governo e do próprio primeiro-ministro, que é o chefe do partido. É ele o responsável, em última instância, pela escolha dos candidatos. Houve também um erro de casting, que na Praia foi terrível.

Mas essa viragem não tem a ver com a própria essência da democracia, que é um sistema de alternância dos partidos no poder, o que é normal?

É verdade, mas são sinais muito fortes os que foram dados. Já na sequência da COVID, a situação não estava clara e devia-se ter tomado alguma medida. Por isso digo: a impressão que fica é que, mesmo diante de todo o contexto que se seguiu à pandemia, nada mudou de forma significativa. Continuamos a esperar resultados diferentes, mas com os mesmos actores, as mesmas pessoas e as mesmas políticas. Diz-se que estamos no caminho certo e não acertamos a bússola. Ora, o norte já não é onde achávamos que era. Temos de nos adequar. A grande decisão que saiu da convenção do MpD era conquistar a CM da Praia. Mas decidiram-se por um candidato que não era politicamente forte. Vimos o resultado. A Praia também ficaria mal servida com esse candidato, mas o que ganhou já deu provas de que vai haver um retrocesso. A Praia vai ter mais quatro anos de muitas dificuldades. E para o partido do governo vai ser extremamente difícil. De um lado, o Presidente da República não vai facilitar a governação, do outro, o PAICV, ou a oposição, que vai entrar em força e não vai facilitar a situação. Vai ser um ano de muita tensão política. Além disso, celebram-se os 50 anos da independência e vai haver muito foco na Presidência da República, que vai chamar a si o protagonismo.

E quanto à vertente mais “social”...

O governo também foi muito mal avaliado, por exemplo, em termos da conectividade entre as ilhas. Se formos ver, as ilhas que enfrentam as maiores penalizações em termos de conectividade são São Nicolau, Maio e Brava e foi onde o MpD perdeu as eleições. Mas, nessa questão da conectividade, uma coisa boa, que foi uma grande decisão, foi ter a guarda costeira na Brava. Deixamos de ter problemas de evacuação. Foi uma medida positiva, mas o governo, mais uma vez, não a soube comunicar. O governo tem dificuldade em se comunicar e, portanto esta iniciativa passou mais ou menos despercebida.

Mas que outros problemas destacaria?

Temos a questão da saúde pública, que não é responsabilidade só do governo. É-o também das autarquias, é de todos. Como é que surgiu a dengue numa ilha, e poderia eventualmente ser estancada aí, e acabou por se alastrar, resultando numa situação generalizada? Em termos de saúde pública é uma degradação. Isto está também ligado à questão do ambiente, à gestão do lixo. Não conseguimos resolver, e a Praia é um exemplo. Regrediu-se e tudo isto tem impacto na saúde pública. É por isso que eu me preocupo com a Praia, porque não há garantia de que vai mudar. Durante quatro anos vimos a degradação.

Este ano, um dos temas fortes foi a emigração. Como vê o aumento da emigração?

O PEDS tem quatro pilares: social, ambiental, economia e soberania. Inclui a transformação verde, a transformação digital, o investimento no capital humano. Ora isto não se pode fazer sem os jovens. E a emigração que está a acontecer já não é a que acontecia antes. É de gente nova e preparada. Estamos a ficar sem técnicos qualificados. O Instituto de Formação Profissional vem explicar que os jovens estão a sair preparados, mas é preciso pensar no retorno que precisamos, porque, no fim, ficamos com o vazio. A imigração que recebemos da costa africana tem um nível mais baixo. Não são técnicos médios ou técnicos superiores, como os que saíram. Isto, a curto e a médio prazo, afecta o nosso mercado laboral. Temos, então, por um lado, o desemprego jovem, por outro lado, temos espaço para quem está a ser formado, mas não tem experiência. Vão sendo formados a toque de caixa para entrar nesse mercado de trabalho, que é reduzido. Emigra-se porque não há condições e se quer uma melhoria de vida, como sempre houve, mas tem piorado, e também porque as expectativas aumentaram. Antes, a emigração tinha fases, e entendíamos quando e quem é que emigrava. Hoje não. Investe-se nos jovens, formam-se e eles saem. Parece que estamos a preparar mão-de-obra para exportar.


E em relação à educação? Como acha que este sistema educativo está a preparar as novas gerações?

Quando se discute a educação, normalmente fala-se apenas nas questões sindicais, laborais, reivindicações salariais – que é uma coisa que vinha detrás –, e não se discute o processo de reforma do ensino, que está a ser implementado e quase concluído. Está-se a experimentar agora o 11.º ano, e depois, ao fim de um ano, os manuais do 10.º serão introduzidos, seguidos dos manuais do 11.º e, por fim, do 12.º. Eu tive a curiosidade de ver os manuais, especialmente o de História, que me preocupa em termos da formação cívica e do conhecimento para os nossos jovens. Estes manuais estão bem organizados e muito bem feitos. Fico curioso para ver o manual do 10.º ano. No entanto, acho que o foco deve estar na formação contínua dos professores, que se deveria preocupar mais com a qualidade do ensino. Percebo que as preocupações salariais são legítimas, mas acredito que, ao focarmos demasiado na reclassificação dos professores, seja para a licenciatura ou para o mestrado, estamos a desviar a atenção do essencial: garantir que os professores sejam bons pedagogos e saibam ensinar de forma eficaz. Mas, sobre a reforma, acredito que precisa de tempo para ser completamente implementada e avaliada. Dou nota positiva, mas, repito, tem de ser acompanhado de formação dos professores. Em relação à Língua, sobretudo a língua portuguesa, que é a Língua do ensino, precisa ser reforçada. Na questão da língua de identidade, a língua cabo-verdiana, devemos dar-lhe atenção, sim, mas a prioridade máxima deve ser o reforço da língua do ensino. Se não, temos dificuldades em termos de aprendizagem da matemática, de conceitos da física, da química, etc. Isto no ensino básico e secundário. A nível do ensino superior, houve uma fase em que a pressão do básico para o secundário e depois do secundário para o superior levou a um alargamento do ensino superior. Temos hoje 12 instituições, duas delas ligadas a igrejas, uma católica e outra Nazarena, e as restantes 10 são instituições públicas ou privadas. A pública tem duas. E, nessa ideia de levar a universidade às ilhas como se fosse um ensino secundário, temos de ver a própria qualidade e rentabilidade dos professores. Tudo é novo e não temos assim tantos professores que possamos dispersar pelas ilhas. Mas foi a estratégia que se adoptou. A Universidade Pública, apesar de toda a concentração no grande campus da Praia, ainda tem uma faculdade em Santa Catarina, algo que não se percebe. Nem se percebe a experiência de ir para Fogo e Santo Antão.

São polos para áreas específicas. ...

Por exemplo, enólogos, que é especialização do Fogo: de quantos enólogos precisamos? Quantas turmas são precisas para esgotar isso? Eu acho que a estratégia devia ser fazer uma universidade forte e criar residências. Deslocar-se. Até porque as pessoas precisam mudar de ilha, para haver mobilidade, para conhecer e alargar horizontes. Depois há a pressão em termos do mercado de trabalho. Queixamos do nível e adequação ao mercado de trabalho, mas o mercado de trabalho também não tem muito oferta. E é por isso que os jovens formados saem do país.

Há pouco falou da língua da identidade. A nível pessoal, foi um ano em que causou alguma polémica, quando afirmou à Lusa que as ilhas de Cabo Verde não são africanas. A sua intenção era abrir a discussão?

A afirmação vem na sequência da publicação do livro “Cabo Verde: Ilhas Crioulas, da Cidade Porto ao Porto de Cidade”, livro que serviu para responder a uma questão que vinha de trás. Houve, antes, duas entrevistas de uma série de três sobre História. A primeira foi com um professor português, sobre os Descobrimentos. As outras duas sobre Cabo Verde com o historiador António Correia e Silva, que, por essa altura, tinha publicado a tese “Noite Escravocrata, Madrugada Camponesa”. Achei que devia questionar, sobretudo a partir da entrevista, porque continuamos enviesados e damos ênfase à escravatura. Isso tem a ver com toda a narrativa que prevalece na sociedade de “re-africanização” dos espíritos. É como se nos tivéssemos perdido no tempo e na história e agora quiséssemos voltar, ficando presos a um período que, embora táctico do passado, não define toda a nossa trajectória. A sociedade cabo-verdiana foi dinâmica, dentro de um processo colonial conseguiu dar a volta e criar a sua crioulidade. O povoamento de Cabo Verde é de quatro séculos e nesse processo a origem da cabo-verdianidade não se resume ao ponto de partida da Cidade Velha. A intenção era abrir discussão, mas, na realidade o que houve foi uma reacção epidérmica. Já tinham saído duas entrevistas sobre o livro em Cabo Verde…

Que passaram despercebidas.

Sim, no Expresso das Ilhas e no A Nação.

Foi preciso sair das ilhas para se fazer ouvir?

Precisamente. Fui a Portugal fazer a apresentação do livro e a Lusa contactou-me para entrevista, sem terem lido o livro. No enquadramento da conversa, eu digo, “culturalmente, Cabo Verde não é África”. As pessoas reagiram, poucos pararam para pensar. Houve, inclusive, a necessidade de alguém como Germano Almeida escrever para explicar que, na verdade, isto era um elogio à cabo-verdianidade. A minha intenção foi precisamente essa. É um elogio da nossa cabo-verdianidade. Somos singulares, a história fez-nos assim e queremos ser igual aos outros, quando eles gostariam de ser nós. Começamos de dentro para fora e vieram [pessoas] de fora para dentro dizer: “não, vocês são África”. Foi nesse contexto que nasceu o Partido Africano para a Independência de Cabo Verde, que precisa dessa narrativa para se legitimar.

Defende que a identidade cabo-verdiana é compósita, mas todas as identidades são compósitas.

O que eu quero dizer com a ser compósita é que não é africana, é única. Não digo que é europeia, de maneira nenhuma. Há um processo: um mais um, não é dois, um mais um é um diferente. É nesse sentido, o povoamento foi feito com gente que deixou de vir de um contingente africano e passou, sobretudo, a vir de um contingente mais da Europa, e com passagem pelo Porto (Grande). Não basta dizer Noite Escravocrata, Madrugada Camponesa. É incompleto e todo esse discurso dá suporte a narrativas como as do próprio PAIGC que se foi legitimar nos livros e teorias de António Carreira. O António Correia e Silva foca-se nos dois primeiros séculos, mas muita coisa aconteceu depois disso. O povoamento das outras ilhas do norte, por exemplo, só se deu no século XVII. E no século XIX, com a modernidade, o centro gravitacional já era São Vicente, já era o Porto Grande. Por isso, eu digo: não, não há uma monogénese.

Mas conseguiu ou não abrir a discussão?

Não houve discussão. Inclusive, o próprio António Correia e Silva nunca se pronunciou. Disse apenas numa conversa na rádio que não concordava. Sobretudo em termos académicos, não estamos habituados à discussão. De uma maneira geral, em Cabo Verde, vivemos durante décadas sem espaço para questionamento. Até 1974, estivemos num regime salazarista de 40 anos, e ninguém falava. Depois, tivemos mais 15 anos de partido único, com pensamento único. Ninguém questionava. E isso leva tempo a mudar. Quando surge alguém com uma perspectiva contrária, as pessoas ficam baralhadas. Mas sei que muita gente pensa como eu e reconhece os argumentos que apresentei. E eu digo: apresentem argumentos contrários. Eu mostro e tento explicar o meu ponto de vista. Que eu saiba, são raras as vezes em que um intelectual ou académico é publicamente questionado na sua tese pelo trabalho de outro colega. Só que, neste caso, estamos a falar de uma tese e de um livro mais acessível, com uma linguagem que preparei a pensar numa geração mais jovem, como a das minhas netas, para que possam compreender de onde viemos. Para não ficarem com essa ideia de que somos só descendentes de escravos. Então, o meu livro é para repor uma posição da singularidade de cabo-verdianos.

Falando da Cultura. Como está o sector em Cabo Verde?

Houve investimento no Património Imaterial, em termos da música, do teatro, do cinema, da pintura, da dança. Mas depois pergunto: onde é que isso se realiza? Não há salas de espectáculo, nem galerias. A única sala de espectáculo boa é a Assembleia Nacional. Em São Vicente, não temos. E está no programa do governo. Já se fala disso há bastante tempo. Em termos do património material, sítios naturais e históricos, tem havido avanços, mas a ênfase dada, para se associar com o turismo, foi a recuperação de igrejas. A prioridade era esta? Porquê? Temos um património histórico, mas o projecto da História Geral de Cabo Verde, que é importante, ficou para trás, encerrando no século XVIII. Ninguém fala mais disso. Quanto à edição e distribuição de livros, a Biblioteca Nacional retomou a responsabilidade de reeditar os clássicos, mas com tiragens pequenas. Este ano, não terá publicado mais de quatro obras, enquanto uma editora privada, como a Rosa de Porcelanas, lançou 20 publicações. E a promoção da leitura? E as bibliotecas escolares e municipais? Parece que estas áreas também estão a ser deixadas para trás. O novo ministro recebe pessoas, mas não se fala de livros. A grande feira do livro é apenas o que já existia, resultado da cooperação portuguesa, agora com outro nome. A promoção da leitura continua no campo do blá blá. Falou-se de um plano nacional de leitura, mas na prática nada acontece. Uma biblioteca nacional não pode limitar-se à Praia. É preciso bibliotecas escolares fortes, com o Ministério da Educação envolvido, e bibliotecas municipais com orçamento para aquisição de livros.Se houvesse promoção do livro, as gráficas iam desenvolver-se, os custos reduzidos e haveria mais trabalho. A distribuição continua problemática: livros publicados em São Vicente não chegam à Praia e vice-versa. Não existe uma entidade responsável, nem condições para facilitar essa circulação. Começou-se uma coisa chamada Morabeza, que era de festival literário, mas acabou por promover escritores portugueses, quando devia promover o livro e autores cabo-verdianos. Houve três edições, durante o mandato do ministro anterior, e acabou.O livro é que deve ser central e não as pessoas. Só se gastou dinheiro. Felizmente, alguns privados vão fazendo. Com este novo ministro, não sei o que vai ser, porque, em termos de livros, ainda não ouvi nada. O que se vê é dinheiro para o Carnaval, para isso e para aquilo, com o Ministério a distribuir fundos. A minha preocupação com a promoção da leitura vai além do conhecimento e da imaginação; trata-se do domínio da língua. Não dominamos a língua com as leituras fáceis do Facebook e da internet. É com o conhecimento livresco.

Para finalizar, o que é que espera que mude em Cabo Verde, considerando as lições que aprendemos em 2024?

Espero que aprendamos primeiro as lições e haja uma mudança na implementação de políticas. E espero que haja indicação de uma vontade de mudar, pelo menos com troca de caras, para que se perceba uma mudança de política. Nada mais pode ser igual. Os resultados da Afrosondagem mostram que é hora de reflectir e mudar. A postura deve mudar, do mais alto ao mais baixo. A vida vai ser mais difícil, e precisamos estar preparados. Não é só o governo. É preciso uma sociedade civil forte para cobrar e garantir que as coisas aconteçam. O ano de 2024 já foi difícil, e o próximo será ainda mais imprevisível e complicado.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1205 de 31 de Dezembro de 2024. 

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Autoria:Sara Almeida,5 jan 2025 7:50

Editado porSara Almeida  em  7 jan 2025 16:20

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