José Miguel Martins, recentemente empossado PCA da Imobiliária, Fundiária e Habitat, S.A. (IFH), faz um ponto de situação sobre estas casas e garante que dentro de um par de meses o panorama será “completamente diferente”.
Quem passa pelos empreendimentos habitacionais, muitas vezes enormes, e aparentemente prontos-a-habitar do antigo Casa para Todos, não deixa de ficar surpreendido com a ausência de vida neles. Casas e casas de interesse social que parecem não estar a cumprir o seu papel de proporcionar uma habitação condigna a quem dela precisa. A ânsia social perante tal facto é, reconhece o PCA da IFH, legítima.
Contudo, conhecendo os processos, em cada caso há uma justificação para a demora na ocupação dos fogos. E a ocupação que tarda, na maior parte dos municípios, está prestes a chegar ao fim. Garantia da IFH e também da maior parte das Câmaras Municipais contactadas pelo Expresso das Ilhas.
“Entendemos a pressão social existente, entendemos que se possa politizar este aspecto e, portanto estamos a tentar actuar rapidamente para tentarmos afastar do período das eleições, mas estamos sujeitos aos timings, que não conseguiremos antecipar” considera José Miguel Martins.
Aliás, sobre uma eventual demora deliberada na entrega, por forma a tirar dividendos partidários na campanha autárquica do próximo ano, José Miguel Martins demarca a IFH de qualquer estratégia política, mas considera que não será esse o motivo.
“A política não passa por nós, mas o conhecimento do processo permite-me dizer que não acredito que seja essa a razão, não acredito que seja esse o entrave”, avalia.
De qualquer modo, a opção de passar a gestão das Casas Classe A para as Câmaras Municipais terá sido a “ideal”, devido à proximidade à população e serviços de acção social que as mesmas possuem. E “se a IFH fosse comportar tudo isso, a sustentabilidade financeira da IFH seria posta em causa e teríamos aqui uma empresa a dar problemas ao Estado, tal como outras empresas. Seria, inclusive, um condicionamento na relação com os parceiros internacionais, pelo eventual recurso ao erário público”, acrescenta o engenheiro.
Centenas de casas (ainda) por habitar
Há então, de acordo com os intervenientes, boas soluções para todos. Há boa-vontade. O que se passa então? Das 2.242 que foram passadas para o Estado e estão sob gestão das Câmaras Municipais apenas cerca de metade (1.300) já estão distribuídas, sendo que o contrato de arrendamento se mantém. E as outras?
As restantes estão já quase todas acabadas, pelo menos a nível da construção.
Mas coloca-se ainda “a questão da rede de infra-estruturas de apoio: rede de esgoto, rede de água, rede elétrica”, explicita José Miguel Martins.
Algumas zonas não tinham qualquer infra-estrutura. Havia empreendimentos construídos para os quais foi preciso entrar em renegociações “para criar as redes em falta”.
Assim, “se nós referirmos apenas à parte da construção física da habitação, que é o que as pessoas vêem, das 2.242 casas, só não estão prontas 50”. Na prática, porém, a estas somam-se outras que careciam, até recentemente, de outros elementos para se poderem dizer “prontas-a-habitar”.
Houve ainda problemas em relação aos terrenos onde os empreendimentos foram edificados, que não pertenciam ao IFH e foi preciso regularizar, situação que “atrasou muito o processo”.
A tudo isto soma-se a necessidade de que todo o processo de atribuição das casas seja claro e rigoroso, para garantir o acesso à habitação social a quem mais precisa. Situações de aproveitamento (casas sub-arrendadas, designadamente), por exemplo, como as que foram verificadas em alguns municípios, devem ser evitadas desde o início. E os casos que já existem, rechaçados rapidamente. “Essa é uma mensagem que tem de ser clara, temos de acabar com as situações de aproveitamento”, resume o PCA da IFH.
Todos os factores acima referidos contribuíram e contribuem ainda para a demora na distribuição, e são obstáculos que sucedem às conhecidas paralisações e renegociações que marcaram o Casa para Todos, e transformaram o programa num projecto que se arrasta há anos.
Nesse contexto, instado a comentar as falhas do programa, José Miguel Martins considera que não lhe compete “fazer essa avaliação”.
“Compete-me é encarar os problemas que temos de enfrentar e compete-me fazer. Nós identificamos problemas, podemos apontar e justificar as situações, pois entendo que a opinião pública terá dificuldade em entender algumas situações, mas a avaliação será feita por quem de direito”, fundamenta.
“O que queremos é que a distribuição das casas sociais seja feita de forma segura, mas da forma mais célere possível, e assim colaboramos com as Câmaras Municipais no sentido de garantir essa situação”.
“Em Setembro, o panorama será completamente diferente. Restarão dois, três casos” pendentes, augura.
A maior parte das casas vazias deverá, então, ser distribuída a breve trecho, nomeadamente: as cerca de 235 casas ainda por ocupar em São Vicente; 35 que ainda estão vagas em São Lourenço dos Órgãos; algumas onde houve necessidade de corrigir algumas situações e já estão prontas, como Tarrafal de São Nicolau, entre outras, em outros municípios.
Para melhor perceber o actual cenário das chamadas “casas Classe A”, exemplos concretos são explicados pelo PCA da IFH e corroborados pelos Presidentes das Câmaras, vereadores e outros funcionários municipais.
Assim, vejamos alguns, incluindo os mais complicados, ainda nas mãos da IFH:
Sal
No Sal há cerca de 100 habitações que, devido à falência do Consórcio, não estão totalmente terminadas e, portanto, o processo de transferência da gestão para a Câmara Municipal ainda não está concluído.
A IFH tomou “a posse administrativa da obra, as habitações e estamos em processo de negociação com a Câmara Municipal para disponibilizar essas habitações”, explica José Miguel Duarte Martins.
Nessa ilha foram já distribuídas 52 casas, sob seguinte critério: “famílias com pessoas com deficiência e mulheres solteiras com mais de quatro filhos”.
“No Sal, como há cerca de 3.000 pedidos para classe A e as casas são poucas, tivemos que traçar esse critério, transparente”, explica o presidente da Câmara Municipal, Júlio Lopes. O mesmo critério deverá entretanto ser também aplicado às restantes 100 casas, quando concluídas e passadas para a Câmara Municipal.
Os prazos para distribuição das casas ainda não estão estipulados, uma vez que decorrem ainda as obras. “Falta pouca coisa”, avança, por seu lado, José Miguel Martins.
São Miguel
No caso de São Miguel, todas casas que estavam prontas para habitação já estão ocupadas. Inclusive, algumas casas Classe B, construídas nesse município e que não foram vendidas acabaram por ser transferidas para a modalidade classe A, estando também já habitadas, indica o presidente da CM de São Miguel, Herménio Fernandes.
Entretanto, por falência do consórcio há um outro condomínio que ainda não está concluído. Assim, foi recentemente assinado um contrato entre a Câmara Municipal e a IFH para terminar a obra.
“São também 50 casas. É um acordo tripartido entre a CM, a IFH e a Direção Geral do Património e da Contratação Pública (DGPCP). Entre a CM e a IFH está tudo resolvido. Com o governo há um príncipio de acordo e assim que o Tesouro responder, nós vamos avançar e concluir as obras”, especifica o edil.
O prazo máximo estipulado, após resposta do governo, é de quatro meses.
“Temos de fechar [as obras], porque as casas não podem continuar na mesma situação. Estamos todos de acordo e agora é resolver isto e avançar”.
Após conclusão, a ideia é pois distribui-las da forma mais célere possível.
“Aqui o processo está tranquilo”, garante o presidente da Câmara Municipal de São Miguel.
Praia
Um dos processos que se advinha mais demorado será o da CM da Praia. Ao todo são 320 - 312 das quais em Achada Limpo (Vila Vitória 1 e Vila Vitória 2) e as restantes em São Pedro Latada - que falta serem distribuídas.
Até ao final do mês deverá ser lançado um novo concurso, com base no Cadastro Social Único (CSU) que determinará a afectação das casas.
“Todas as Câmaras Municipais, receberam o sistema de cadastro que foi praticado anteriormente, quando a IFH detinha o processo [o Cadastro Único de Beneficiários de Habitação de Interesse Social (CUBHIS)]”, explica o PCA da IFH. Contudo, a informação disponibilizada através desse cadastro mostra-se ultrapassada, face aos anos que entretanto decorreram. Assim, a ideia é recomeçar esse processo, usando o CSU e a sua informação actualizada e mais precisa, e lançando o novo concurso para selecção dos beneficiários.
O concurso deverá decorrer em Agosto, depois será feita a atribuição e de seguida o contrato e a ocupação. Prazos concretos para a entrega “das chaves” aos futuros moradores, ainda não há.
Ainda no que toca à capital, onde os problemas habitacionais, pelo número de habitantes, são mais complexos, há a dizer que os empreendimentos de Palha Sé, Vila Acácia1 e Vila Acácia 2, ao contrário do que alguns munícipes pensam, não é Classe A. É um empreendimento a ser comercializado pela IFH.
Ribeira Grande – Povoação
Na Ribeira Grande há 39 casas para distribuir em Povoação. Neste momento, de acordo com o presidente da Câmara Municipal de Ribeira Grande, Orlando Delgado, está a ser realizado um inquérito social, em acréscimo à verificação da situação dos munícipes no Cadastro Social Único. Estima-se que o mesmo esteja encerrado ainda no final deste mês, e o processo de distribuição concluído no próximo mês de Agosto.
Boa Vista
O caso da Boa Vista, onde o défice de habitações condignas é extremamente elevado e onde foi feito um dos maiores empreendimentos da Classe A (294 casas), é um dos que mais se salienta neste panorama.
A construção das casas está concluída há bastante tempo, mas as infra-estruturas de apoio, como a rede de água e esgoto tiveram de ser garantidas a posteriori.
Foram, recentemente, detectados problemas na rede de água, que entretanto já estarão resolvidos, mas ainda há questões a resolver.
Assim, embora no início de Julho, por ocasião das Festas do município, o presidente da CM da Boa Vista, José Luís Santos, tenha dito em entrevista ao Expresso das Ilhas, que “dentro de dias” as famílias começariam a ser alojadas nesses apartamentos, a distribuição deverá demorar mais algum tempo.
Até ao fecho da edição, não foi possível apurar, junto à Câmara Municipal, qual a previsão actual para a afectação e entrega das casas.
Ribeira Brava
Ribeira Brava foi um dos concelhos onde a mistura de Casas Classe A com casas da Classe B (para venda) não foi muito bem aceite pelos utentes desta última.
Houve algumas queixas, que entretanto, com algum trabalho e sob certos critérios de condomínio, terão cessado.
Uma das questões, aliás, que a autarquia tem sobre a mesa é a de proporcionar às famílias da casa Classe A, a hipótese de mediante um pagamento de 15 mil escudos (mensal], poderem ter acesso a uma compra efectiva das casas, ao fim do determinado tempo.
A autarquia já encetou o contacto com o governo nesse sentido, por forma a, havendo possibilidade, “ajudar as pessoas a concretizar o sonho de casa própria”, revela o presidente da Câmara Municipal, Pedro Morais.
Entretanto, há ainda nove casas para entregar. Foi feito um diagnóstico, junto à camada elegível para as casas classe A, já concluído na semana passada. Ainda esta semana, o assunto deverá ter seguimento e “no próximo mês de Agosto tudo estará resolvido definitivamente”, garante o presidente da CMRB.
Fogo: o caso mais complicado
Xaguate e Fonte Aleixo são, definitivamente, o caso mais complicado da modalidade Classe A do extinto programa.
Como recorda José Miguel Martins, a obra – que tem duas frentes de empreitada (Xaguate e Fonte Aleixo, como referido) – está paralisada desde 2014, e desde então “a IFH entrou num processo negocial para tentar que a obra seja retomada para ser terminada”. Um longo e complicado processo.
São obras que não passaram ainda para a Câmara Municipal, São Filipe no caso, pois estão numa fase ainda preliminar.
“Não são casas, são obras”, reitera o PCA da IFH.
Em Março de 2018, a parte de Fonte Aleixo, que já estava 70 a 80% concluída, foi ocupada pela população. Muitos dos “ocupas” ainda se encontram nas habitações.
Fonte Aleixo e Xaguante. Este “é o pior caso, o mais dramático. Para todos os outros já temos uma solução mais ou menos delineada, mas neste ainda estamos no caminho para a mesma. Já tivemos encontro com o presidente da CM, já levamos a questão à consideração do MIOTH e estamos no processo de levantamento das pessoas que invadiram a obra em 2018 (Fonte Aleixo). É um processo mais complicado porque já estão lá há algum tempo”.
Há poucas semanas, foi também ocupado o empreendimento de Xaguate, que “está no tosco completo, 30% da obra. Há partes que nem cobertura têm”. Foram accionadas as autoridades e retirados os ocupantes.
Pretende-se então, agora, que saiam as pessoas de Fonte Aleixo para que se possa terminar a obra, seja por adjudicação da IFH, seja pela CM, envolvendo empreiteiros locais. O importante é avançar.
Questionado sobre uma eventual hipótese de entregar, simplesmente, as casas ocupadas em 2018, aos actuais habitantes, José Miguel Martins rejeita essa possibilidade e explica:
“As casas não estão acabadas. Se nós formos ver os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável e o que se pede a nível da habitabilidade, vemos que essas casas não têm condições de habitabilidade. A IFH, como uma instituição de referência que é em Cabo Verde no sector, com a responsabilidade social que tem de ter, não pode ter o seu nome envolvido num empreendimento que não tem condições de habitabilidade. Provavelmente, até seria a solução mais fácil para a IFH e se calhar, a IFH, durante algum tempo, focou-se nos problemas que poderia resolver mais rapidamente. Mas a la longue, a IFH não pode deixar esse problema pendente...Pode não nos afectar a nível de sustentabilidade financeira, mas afecta a nível de imagem. Não queremos ter pessoas em Cabo Verde a viver nessas condições. É contra isso que o Estado de Cabo Verde está a lutar.”
Desafio da habitação continua
O programa Casa para Todos foi lançado pelo Governo (na altura do PAICV) em 2010 e assentou numa linha de crédito portuguesa de 200 milhões de euros.
Concebido para combater o défice habitacional em Cabo Verde, a verdade é que o impacto do ambicioso programa acabou por ser relativamente diminuto (face ao previsto), e o prejuízo bastante elevado.
De acordo com a ministra que tutela a pasta da Habitação, Eunice Silva, “desde o início do programa, inscreveram-se na IFH, aproximadamente 29 mil pessoas, quando o mesmo só previa a construção de 6.000 habitações e das quais pouco mais de duas mil eram destinadas a renda social resolúvel”.
A informação foi avançada, em Março de 2018, no Parlamento, durante uma interpelação do PAICV sobre a habitação social em Cabo Verde.
Na mesma sessão, afirmou o deputado Alcides de Pina, do MpD, que as “pesadas indemnizações” aos empreiteiros ultrapassaram os dois milhões de contos.
Recapitulando, inicialmente estava prevista a construção de cerca de oito mil casas, número que foi revisto, estabelecendo a construção de 6.010 casas, entre as chamadas classe A (renda social resolúvel), classe B e C, para venda. Dessas, apenas 5.695 foram construídas, 3.453 das quais previstas para comercialização. As outras seriam destinadas ao arrendamento social.
O espectro do programa arrasta-se ainda, embora este tenha sido “extinto”.
Em 2017 o governo acordou com os municípios a transferência da gestão das casas Classe A para as Câmaras Municipais, sendo que a “entrega das chaves decorreu entre Agosto de 2018 e Janeiro de 2019, pelo menos no que toca aos empreendimentos “prontos”. Isso leva-nos ao ponto onde estamos.
Actualmente, e segundo dados do governo, o défice habitacional quantitativo é superior a 40 mil casas e o qualitativo ultrapassa as 60 mil.
O desafio da habitação não foi nem é, pois, “resolvido com o programa”. Embora todas as contribuições para a solução desse défice sejam importantes, o Casa para Todos acabou ainda por ter “deficiências que dificultaram todo o processo”, colocaram em causa a sustentabilidade da IFH, entidade cuja estrutura não é dimensionada para gerir todas as vertentes de um programa tão amplo. A gestão das casas sociais, por exemplo, é um assunto que exige uma proximidade com a população que a empresa não consegue ter (pelo menos não ao nível das CM), reitera o PCA da IFH, José Miguel Martins.
Assim, o défice habitacional está longe de ser um desafio vencido, mas “vamos ficar melhor, com as soluções que temos em curso”, considera o representante da IFH.
Há um conjunto de actores a aplicar as referidas soluções – nomeadamente a IFH, as Câmaras com as casas sociais que irão distribuir, o Ministério das Infra-estuturas, Ordenamento do Território e Habitação (MIOTH), particularmente com o PRRA – que permitirão não só melhorar o panorama da habitação (nível quantitativo, mas principalmente qualitativo) em Cabo Verde como a fixação dos cidadãos nas localidades de origem, evitando o êxodo rural, e aliviando, portanto, a pressão sobre o meio urbano. Ao mesmo tempo, isso fomentará a dinamização da economia ao nível rural e periurbano.
Entre os vários projectos delineados, o engenheiro José Miguel Martins destaca a construção de albergues T0 e T1 nas ilhas turísticas por forma a abrigar condignamente, a curto e médio prazo, e a baixo custo os trabalhadores migrantes.
Da parte da IFH, sem comprometer a sustentabilidade da empresa, assume-se o papel social da empresa, actuando como parceiro nesses projectos ao mesmo tempo que comercializa casas a preços que os privados ainda não conseguem praticar. O objectivo é que onde e quando o privado possa nivelar a componente preço com as casas da IFH, a empresa se retire desse mercado. Ou seja, a actuação da IFH deverá manter-se apenas no formato de actuação que fica a descoberto pelo privado. A vertente social, sempre associada.
E com o desafio da habitação ainda bem presente, as soluções terão de continuar a ser trabalhadas por todos os intervenientes do sector.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 921 de 24 de Julho de 2019.