Embora não haja qualquer apoio institucional, a proximidade, uma boa capacidade de diagnóstico e especialistas qualificados, bem como a solidariedade da diáspora e a facilidade de entrada no país (no âmbito do protocolo da CEDEAO) serão os motivos que levam a este destino de saúde. E, assim, vão-se somando os que aí chegam em busca de respostas que não são dadas no país, alimentando uma rede de entreajuda, mas também de negócio informal.
Maria José vive em Dakar desde 1993. Quando há cinco anos a sua irmã ficou doente, “desenganada” pelos médicos em Cabo Verde, decidiram que esta se devia deslocar ao Senegal. Aí podia contar com o alojamento e o apoio de Maria José e com uma oferta de meios de diagnóstico, especialistas e tratamento bem mais sofisticada do que no arquipélago.
Posto isto, ela, que “já estava para desistir, porque a tinham dado como “incapaz” em Cabo Verde”, foi para ouvir uma segunda, e eventualmente última, opinião médica.
Chegou a Dakar quase moribunda, conta Maria José. Tensão em valores completamente anormais e logo foi a uma clínica. O diagnóstico foi rápido e libertador. Afinal todo o seu estado era provocado por algo de simples tratamento: uma infecção urinária.
“Viram que era uma infecção, deram-lhe apenas uns comprimidos e ficou boa. Toda a gente ficou espantada. Veio fraca e foi forte, com saúde”, recorda Maria José.
À margem do Estado
Não há estatísticas de quantos seguiram os passos da irmã de Maria José. São doentes que chegam e partem sem passar pelos órgãos oficiais, nomeadamente as embaixadas.
“Não há um quadro legal que permita o apoio institucional a esses doentes que se deslocam ao Senegal. Era assim, e continua assim”, refere César Monteiro, antigo embaixador de Cabo Verde em Dakar.
Assim, a deslocação é feita “no quadro de relações pessoais e de amizade, num sistema que funciona como uma espécie de rede”, acrescenta, corroborando o testemunho de Maria José (a quem já voltaremos).
Toda a sua viagem é pois feita de mote e meios próprios, recorrendo a redes mais ou menos informais de interajuda e negócios de cariz, geralmente, familiar. Os serviços consulares, aqui, nenhum papel têm a desempenhar. Nem os cabo-verdianos, nem tão pouco os senegaleses, até porque, no quadro do protocolo de Livre circulação da CEDEAO, da qual ambos os países são membros, qualquer cabo-verdiano poderá entrar no Senegal e aí ficar durante 90 dias sem necessidade de visto. E vice-versa, embora essa seja outra questão (Ver caixa).
Em termos institucionais, na verdade, desde 1975 que o Senegal mantem com Cabo Verde uma série de acordos, nas mais diversas áreas, embora grande parte deles pouca ou nenhuma aplicação prática tenha.
Há, por exemplo uma Convenção de Segurança Social assinada em Março de 1998 que regula várias vertentes relacionadas com os serviços do INPS, como a transferência das pensões, e questões do foro da Saúde. Contudo, não existe, contrariamente ao que acontece com Portugal, um acordo administrativo que regulamente essa Convenção. E não há qualquer Acordo de Cooperação para os doentes evacuados para os hospitais públicos semelhante ao que Portugal mantem com Cabo Verde e restantes ex-colónias africanas (PALOP) - nem tal hipótese parece fazer sentido, face ao contexto histórico e prático das relações entre Estados.
Entretanto, tem sim havido ao longo do tempo, na área da Saúde, uma relação de amizade e bastante solidariedade ente os dois Estados vizinhos, da qual resultam apoios pontuais do Senegal e de entidades privadas senegalesas a Cabo Verde. Recorde-se por exemplo que durante o surto do Zika, foi o Instituto Pasteur – uma associação privada sem fins lucrativos – em Dakar, que realizou as análises às amostras suspeitas.
Economia de rede
Voltando a Dakar e viagens extra-institucionais. A irmã foi a primeira pessoa que, por motivos de saúde, Maria José recebeu em sua casa. Desde então, tem vindo a acolher outros familiares, amigos, familiares de amigos, amigos de amigos, amigos de familiares, etc… sempre gente de alguma forma interligada numa rede de laços que evocam a ajuda da comunidade emigrada.
Gente que chega pelo passa-palavra dentro de um determinado círculo e a quem Maria José, a troco de “alguma ajuda para a casa”, acolhe e apoia em tudo que pode, incluindo no acompanhamento às consultas.
“Eu não recebo muita gente em minha casa de cada uma vez. Vem uma pessoa, duas, no máximo três. Uma vai, outra vem”, conta.
Contudo, há também outros emigrantes e descendentes de emigrantes que recebem “qualquer pessoa”, “muita gente”, e fazem do acolhimento um negócio, semelhante às pensões (que também existem). A procura médica acaba por se transformar assim num misto de solidariedade entre patrícios e um negócio.
Por norma, além da estadia é oferecido um acompanhamento quase total, às vezes desinteressado (como é o caso de Maria José, que não cobra) outras vezes como mais uma forma de gerar rendimento.
Esse apoio começa basicamente desde que o doente chega ao Senegal. Hoje, o aeroporto que serve Dakar (o aeroporto Internacional Blaise Diagne inaugurado em 2017) fica localizado na região de Thies e dista 43 km do centro da capital. Devido à distância, Maria José já não vai buscar os seus patrícios ao aeroporto, mas – mais uma vez as redes – há um condutor que recolhe os passageiros que vão para casa dos cabo-verdianos e os “distribui”.
Depois, é feito todo o acompanhamento à consulta, às análises… ”Tudo o que eles fazem no médico eu é que os levo”, diz Maria José. E, em outros casos, se os donos das casas não os levarem há sempre alguém que presta esse serviço, a troco também de algum dinheiro.
Em termos financeiros, a circulação de dinheiro não se fica por aqui. Mesmo para quem se desloca, a “visita” médica acaba por proporcionar uma oportunidade para ganhar algum para ajudar a pagar as custas. Luísa, do interior de Santigo, é um exemplo desse “empreendedorismo” de autossuficiência. À ida levou produtos de Cabo Verde, encomenda de terra – os chamados produtos étnicos – e à vinda trouxe produtos senegaleses para vender na sua mercearia. Com isso, visa garantir que o dinheiro que gastou na sua ida a Dakar tenha retorno, pelo menos parcialmente.
Médicos solidários
Entretanto, há uma outra vertente nesta rede solidária e económica criada em torno da procura de diagnóstico e tratamento no Senegal: os médicos.
O Senegal tem vários especialistas cabo-verdianos e de ascendência cabo-verdiana, de reconhecida capacidade técnica, e que ainda mantém de alguma forma uma ligação à comunidade.
Há uns anos, inclusive, chegou a ser noticiada a intenção de mais de 20 desses médicos de se organizarem numa uma associação para, entre outros aspectos, ajudar doentes de Cabo Verde que se deslocam ao Senegal.
“Temos dado apoio aos pacientes de origem cabo-verdiana que se deslocam a Dakar, em busca de tratamento. Mas isso tem sido acontecido de forma informal, por recomendações de conhecidos ou familiares. Já com a associação, esse apoio vai generalizar-se e estender a outras pessoas”, explicou, em Novembro de 2013 ao Expresso das Ilhas, João Arlindo Veiga, um dos médicos envolvidos na criação da mesma. Essa associação, contou, era a resposta a um desafio lançado pelo então embaixador de Cabo Verde no Senegal, e pela ministra das Comunidades, Fernanda Fernandes, e que coincidiu com a vontade do grupo.
A associação era uma ideia antiga, acrescenta, hoje, César Monteiro, que sucedeu a Francisco Veiga na embaixada no mês seguinte, mas a intenção acabou por ficar por isso mesmo. A associação apesar dos esforços nunca chegou a ser criada. Não obstante, apesar, de não se ter conseguido instituir a mesma, há de facto uma rede solidária notável, destaca o antigo diplomata.
No Senegal “temos uma boa comunidade de médicos, que ajudam e que estão de alguma maneira entrosados com a comunidade e se preocupam. É preciso dizê-lo. Os médicos cabo-verdianos no Senegal são muito solidários com a comunidade. E temos bons especialistas”.
“Visita” rápica
Apesar de todo o apoio, sendo todo o custo da viagem, estadia, diagnóstico e tratamento suportado pelo doente, a maior parte dos cabo-verdianos vai e vem em pouco tempo.
“Por exemplo, se vem domingo, vai à consulta segunda-feira. Às vezes, nesse mesmo dia, já fazem as análises, radiologia, tudo”. Segue-se muitas vezes mais uma consulta. “Mas, geralmente é uma semana ou menos”, contabiliza Maria José,
“São as pessoas que não têm problemas muito graves”, observa.
Os diagnósticos e tratamentos são, pois, por norma feitos nas clínicas privadas. Não obstante, Maria José recorda um caso, de uma menina da Calheta que não tinha condições de pagar e que recorreu ao Hospital Público onde (como é normal) as consultas são muito mais baratas.
“Ela foi no hospital do Estado mas eles, por acaso, também foram rápidos”.
E não há memória de nenhum cabo-verdiano, em situação de urgência, que não tenha sido bem recebido no hospital.
Casos raros. A maior parte dos casos que Maria José conhece são de pessoas que se deslocam em busca de um diagnóstico fiável.
“O que há mais são casos de pessoas a quem, em Cabo Verde, disseram não ter cura, ou a quem, lá, não conseguem descobrir nada. Fazem os exames, mas estes não acusam nada. Então eles vêm cá saber se é verdade que não têm nada, porque sentem no corpo... Muitas vezes, em Cabo Verde os médicos não encontram nenhum problema e aqui sim: uma infecção, um problema de intestino, um problema de estômago… por norma, nada de muito grave”, explica a cabo-verdiana radicada em Dakar.
Então, dizia-se, os doentes cabo-verdianos chegam ao Senegal, fazem análises de diagnóstico, às vez uma ou outra operação (o que é mais raro) e regressam ao país para continuar o tratamento que lhes é proposto.
Alguns, que fazem tratamentos esporádicos por doenças que não tendo cura precisam de ser controladas, regressam várias vezes. Mas geralmente também por curtos períodos.
Vão, fazem os exames, as consultas, o que for necessário e regressam. E, pelo que se vê, serão cada vez mais…
Emigração para o Senegal cessou há anos…
As estatísticas são imprecisas. Na verdade, não se sabe ao certo quantos cabo-verdianos estão no Senegal.
Há números que apontam para os cerca de 30 a 40 mil, mas César Monteiro, Investigador em sociologia das migrações e da Música, tem as suas dúvidas sobre a pertinência deste dado.
Longe vai o tempo de uma migração massiva. Emigração essa que começou nos anos 40, 50 e foi aumentando nos 60. Esta era essencialmente uma migração de trânsito, em que o Senegal era usado como “trampolim” para chegar a França. Muitos não deram o salto e acabaram por ficar a residir no Senegal.
Essa primeira geração de emigrantes, que foi a mais numerosa, já quase desapareceu. Os seus descendentes são já pessoas nascidas e criadas no Senegal. São senegaleses com ascendência cabo-verdiana. Há a questão cultural, claro… mas são sempre estatísticas complicadas, até porque não há qualquer estudo de base demográfica que ajude a clarificá-las.
Em anos recentes, entretanto, a emigração de Cabo Verde para o Senegal é praticamente nula.
“Pelas informações que tenho, pelo menos durante o tempo em que lá estive, ninguém emigrou para o Senegal”, revela César Monteiro que ocupou o cargo de embaixador de Cabo Verde no Senegal, entre Dezembro de 2013 e Junho 2017.
O país vizinho tem recebido sim, vários estudantes, mas estes, como se sabe não podem ser considerados emigrantes. “Têm um estatuto especial”, aponta o antecessor de Felino Carvalho.
Por outro lado, o número de senegaleses em Cabo Verde tem vindo a aumentar nos últimos anos. Mais uma vez, não se sabe com certeza quantos são. Sabe-se que há cerca 1300 senegaleses com uma autorização formal de residência e acredita-se que pelo menos 2700 cidadãos senegaleses residam ilegalmente no arquipélago. Ou seja, um total de 4000 cidadãos.
Entretanto, a diferença de tratamento dada aos senegaleses que chegam a Cabo Verde e ao cabo-verdianos que chegam ao país vizinho tem sido alvo de críticas. Isto porque se não há registo de incidentes ou qualquer constrangimento legal quando os nacionais chegam ao Senegal, por outro as queixas sobre as exigências monetárias e logísticas que Cabo Verde aplica na Fronteira deixam muitos cidadãos daquele país da CEDEAO revoltados.
Em visita oficial ao Senegal, no ano passado, o Presidente da República apresentou números que diz desmentirem a elevada incidência de constrangimentos na entrada em Cabo Verde. Dos cerca de 8000 senegaleses que entraram no arquipélago, de 2015 a 2017, “apenas 163 tiveram dificuldades na fronteira”, expôs, na altura, Jorge Carlos Fonseca.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 925 de 21 de Agosto de 2019.