“Policiamento de proximidade em Cabo Verde continua a ser um slogan” - João Santos

PorAndre Amaral,3 nov 2019 9:16

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João Santos
João Santos

O governo tem anunciado esforços para combater a criminalidade e o clima de insegurança que se faz sentir. No entanto, João Santos, superintendente da Polícia Nacional, defende que “ninguém avalia a performance nessa matéria por via dos esforços.

Diz o antigo oficial, que o que se analisa são os resultados” e que apesar desse esforço por parte do Estado em aumentar a segurança “a realidade criminal cabo-verdiana desmente totalmente os esforços que vêm sendo feitos”.

Que segurança temos hoje em Cabo Verde? 

Eu acho que nós temos a segurança possível tendo em atenção dois factores: os meios de que dispomos em confronto com o problema da criminalidade e da segurança. Criminalidade e segurança são coisas diferentes. Uma coisa é o fenómeno criminal e outra é o sentimento de segurança que nós temos. Se vivemos num país tranquilo ou não. A verdade é que vimos conhecendo um sentimento cada vez maior de insegurança por duas razões essenciais. Primeiro, porque a sociedade está a ficar cada vez mais complexa e depois porque aliado aos chamados pequenos crimes, ou criminalidade de massa, estamos a assistir a crimes cada vez mais complexos, mais violentos o que não era costume verificar-se salvo um ou outro pico. Eu diria que a situação não deve ser dramatizada mas reclama por uma abordagem com verdade. É preciso falar verdade ao país sobre esse fenómeno. A segurança é daqueles interesses que dizemos que é um interesse permanente do Estado de Cabo Verde, não é um interesse contingente em função do partido que estiver no poder. Cabo Verde vai necessitar sempre de ser um país tranquilo, um país seguro, para que o seu desenvolvimento se faça também de forma segura e tranquila. Mas há aqui um grande problema entre nós. É que as pessoas, designadamente os nossos responsáveis políticos, todos, quer da situação quer da oposição, todos fazem uma abordagem completamente enviesada deste fenómeno. Porque, a verdade é que a criminalidade em si não tem directamente a ver com a segurança do país, porque a criminalidade é apreciada a partir de dados estatísticos e esses dados são muitos. São os dados estatísticos policiais, são os dados estatísticos dos tribunais, prisionais e esses dados podem não coincidir. Um exemplo simples: um investigador pode ter conhecimento de um crime e nunca aquele crime chegar ao tribunal porque, por exemplo, nunca se encontrou o seu autor. Mas consta da estatística. Por outro lado, a polícia pode receber denuncias e sabe que nunca constarão das estatísticas porque são denúncias genéricas, no que se refere, por exemplo, à imigração clandestina. O que eu quero dizer é que o fenómeno criminal ou as estatísticas criminais só nos dão pistas aproximativas. São estimativas que estabelecemos, porque, por esse dados que referi, nunca conseguimos ter uma real situação objectiva da criminalidade do país. E eu podia invocar outros factores para mostrar que não é a partir exclusivamente dos dados estatísticos que devemos analisar a situação do país. E porque é que criminalidade não tem nada a ver com o problema da segurança? Porque a segurança tem de ser abordada em três perspectivas clássicas. Os mecanismos que se usam para garantir a segurança do país passam por três níveis: a prevenção primária que diz respeito a todos os cidadãos, que tem a ver com a garantia de um emprego digno, com uma casa digna para se habitar, com as boas relações sociais. Depois temos a prevenção secundária que é a direcção, o olhar que as autoridades judiciárias devem ter para os potenciais criminosos: mecanismos de luta contra o uso abusivo de drogas e álcool, reduzir a potencialidade de as pessoas, por via do uso dessas substâncias, enveredarem pelo crime. Finalmente temos a prevenção terciária, que ao que parece é a que mais preocupa este governo, que tem a ver com os mecanismos de reinserção social para evitar que as pessoas entrem em reincidência. O que as pessoas têm de compreender é que o crime é maioritariamente cometido por essas pessoas. São os reincidentes que voltam a cometer os crimes por que tinham sido condenados. Por isso é que o mecanismo de reinserção social é importante. Mas o mais importante são os mecanismos de prevenção primária, a eliminação tendencial dos chamados factores criminogénicos. 

Mas num país onde todos os anos há cursos de polícia os resultados já não deviam ser outros? 

Essa é a expectativa numa visão do ponto de vista em que a segurança se faz com mais polícias. 

Que é a perspectiva do cidadão comum. 

Sim. Mas o cidadão comum acaba por aplaudir essa medida porque ela é anunciada pelos principais responsáveis do país de que é através da formação de um cada vez maior número de polícias que vamos garantir a segurança. Isto é uma perspectiva completamente errada. Por exemplo é interessante saber-se que em Inglaterra é nos espaços onde há menos polícias que as pessoas mais se respeitam. Parece um paradoxo. Em Londres os polícias nem andam armados. é quando não se vê polícia que o cidadão se deve sentir na obrigação de melhor se comportar. Aqui em Cabo Verde temos uma perspectiva completamente inversa. E porque a sociedade assim pensa, os políticos reagem a toque de caixa, reagem emocionalmente e acham que o problema se resolve formando mais agentes. O importante nesta questão da formação é o seguinte: a formação é curta. É impossível, em seis meses, dar-se uma boa formação policial. Daí haveria e há a necessidade de o agente continuar a ter a sua formação, principalmente ao longo do primeiro ano que é quando se sabe se ele vai ficar ou não. Isto no sentido de se lhe dar a melhor formação possível. Enquanto a segurança do país estiver entregue nas mãos dos agentes e dos sub-chefes nós não vamos ter segurança no país. Se nós temos tantos oficiais na polícia eles têm que poder enquadrar os seus agentes. São eles que têm de o fazer. Se são oficiais da polícia é porque têm um melhor saber, têm uma competência maior. Mas o fenómeno criminal tem de ser abordado com ciência e com saber. Nós andamos, não só, a investir nas polícias, mas andamos a investir em mecanismos de prevenção situacional. O Exemplo mais evidente que nós temos disso é a video-vigilância. Mas esse mecanismo é um mero mecanismo de prevenção situacional o que quer dizer que servem para complicar a vida do potencial agente do crime. Porque o crime é sempre racional, é sempre pensado e uma pessoa perante uma câmara pode pensar duas ou três vezes se deve ou não cometer aquele crime. Mas ele pode deslocar-se. Está provado que os mecanismos de video-vigilância fazem deslocalizar o crime. O crime tem de ser combatido de forma cientifica, tem de ser estudado. Temos de conhecer a realidade criminal do país. Só assim é que podemos utilizar um dos mecanismos possíveis de actuação policial ou dos modelos de policiamento. O fenómeno do crime é um chão completamente falso e por isso é que as polícias estão sempre a adoptar modelos de policiamento diferentes. Por exemplo, o sitio onde ocorreu a morte do agente da Polícia Nacional é um espaço negro da nossa cidade. Ora um espaço desses que tipo de policiamento é que pode ter? Obviamente que não pode ser um policiamento de proximidade. Se estamos a lidar com gente violenta temos de ter um policiamento de tolerância zero. O policiamento de proximidade, em Cabo Verde, é e continua a ser um slogan. Assim como a tolerância zero, porque grande parte dos polícias nem sequer interiorizou o que é isso do policiamento com base em tolerância zero. 

Falávamos sobre a formação, mas além da formação há a vocação. 

Pois. Eu já tive a superintendência da direcção de quadros e pessoal, onde entram os pedidos de ingresso à Polícia Nacional. Na altura emiti uma directiva que dizia para indeferir liminarmente os pedidos de potenciais agentes que invocavam que queriam entrar para a PN por vocação. Vocação vem da palavra vocatio que é o chamamento de Deus. Evidentemente que pode haver quem se possa sentir atraído pela proximidade com o pai que foi policia, com um tio. Mas em Cabo Verde, como em muitas outras áreas, as pessoas vão para a polícia mais como uma forma de resolver um problema imediato de empregabilidade. Agora, nós podemos substituir a inexistência de uma vocação inicial pelo profissionalismo, pela formação global de um agente da polícia. Um agente é um homem global porque lida com uma sociedade heterogénea, com pessoas que têm os mais diferentes sentires e o polícia tem que poder compreender as coisas com base na sua formação. A nossa escola de polícia, à imagem de um aviário, é ainda um policiário. Nós não temos de ter vergonha de dizer isso, porque é reconhecer a verdade, e é a partir dessa constatação que podemos almejar passos mais consistentes, mais sérios na perspectiva de termos uma polícia profissionalmente competente.

Há pouco dizia que num bairro como Tira-Chapéu o policiamento de proximidade não funciona, mas isso faz-me lembrar o caso do Brasil onde, nas favelas mais complicadas foram criadas esquadras de policiamento de proximidade que acabaram por resultar. 

O que está a dizer é uma outra coisa. Eu já disse isto há muito tempo. Aquilo para que nós devíamos avançar era para o mapeamento do crime. Colocar as cidades em cima da mesa e conhecer os fenómenos criminais e onde é que se passam e também que tipo de policiamento é o adequado para esses espaços. Isto faz-se noutros países e chamam-se de contratos locais de segurança que envolvem a sociedade, as autoridades policiais, as organizações da sociedade civil, todos os que podem dar um contributo para resolver um problema identificado. Eu não estou a dizer de forma absoluta que Tira-Chapéu não possa ter um policiamento de proximidade. O problema é que não há um modelo fixo e determinante. Podemos ter ali um modelo misto. Mas isto tem de ser estudado. Isto não pode ser anunciado, não pode ser meramente dito. É preciso transpor essa vontade para a prática e isso faz-se com medidas e este governo tem-se estribado nos enormes esforços que vem desenvolvendo, mas ninguém avalia a performance nessa matéria por via dos esforços. O que se analisa são os resultados. Porque independentemente dos grandes esforços que vêm sendo feitos os resultados não correspondem, a realidade criminal cabo-verdiana desmente totalmente os esforços que vêm sendo feitos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 935 de 30 de Outubro de 2019. 

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Autoria:Andre Amaral,3 nov 2019 9:16

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  21 jul 2020 23:21

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