Generalizando profissões: mulheres aventuram-se em “trabalhos de homens”

PorSheilla Ribeiro,25 jan 2020 9:10

Consideradas durante muito tempo o “sexo frágil”, as mulheres, que em tempos foram relegadas ao escanteio quando o assunto era trabalho, têm, nos últimos anos, desafiado o estereótipo da sociedade e aventurado em profissões consideradas “apenas” para homens. São exemplos as histórias de Eliane Semedo, Ana Paula Pinto e Letícia Teixeira.

No bairro da Achadinha, Ponta Tchitcharo, encontra­mos a marceneira Eliane Semedo, mais conhecida por “Tatá”, trajada com calças de ganga, botas, suéter e lenço à cabeça de modo a proteger o cabelo da poeira das paletes. Na rua da oficina onde trabalha diariamente encontramos pelo menos dois sofás praticamente prontos.

Dentro da oficina, inúmeras cadeiras e mesas de paletes estão amontoados num canto e, logo em baixo da janela, está a mesa onde Tatá faz a sua arte. Ela conta que trabalha na área há cinco anos e sem ter feito qualquer formação técnica.

“Eu tinha acabado de dar à luz à minha filha quando um amigo me convidou para trabalhar com ele, fazendo mobílias de paletes. No início recusei porque achava que era trabalho para homem. Mas ele insistiu e disse que eu podia ir e ficar sentada enquanto o observava”, conta.

No dia seguinte, Eliane foi ver o amigo a trabalhar. Porém, conforme narra, não aguentou ficar sentada por muito tempo e começou a tarefa de tirar os pregos das paletes. Mesmo com empolas causadas por este acto, a jovem não desistiu de aprender.

“Um dia fiz o meu primeiro par de sofás. Um ficou mais alto do que o outro (risos). A partir daí fui fazendo mais… fui-me aperfeiçoando, até o dia em que eu me separei desse meu amigo e montei a minha própria oficina”, conta. Esta jovem diz ainda que estudou até o 12º ano, tendo, de seguida, feito formação em auxiliar administrativo. Porém, relata, não conseguiu emprego na área e, como precisava de trabalhar, aventurou-se na marcenaria. “Ganho muito bem com esse trabalho”, garante.

“As mulheres não devem ficar sentadas de mãos cruzadas porque do céu apenas cai a chuva. A Bíblia não diz que o marido deve dar-nos de tudo. Depois que eu trabalhei e tive o meu próprio dinheiro, passei a ter uma força equiparada à força da Natureza. Se eu tivesse ficado à espera do Estado, não daria de comer aos meus filhos”, acrescenta.

Em Palmarejo, após subir 3 andares de um prédio em obras, encontramos Ana Paula Pinto, ou Linete, como prefere ser chamada. Conforme conta, só tem 10º ano de escolaridade e trabalha como ladrilhadora na construção civil há pelo menos 17 anos, incluindo a fase de aprendizagem. Entretanto, avança, trabalha por conta própria há 12 anos.

Assim como Eliane Semedo, Linete não fez nenhuma formação na área. A curiosidade, conforme relata, fez com que aprendesse a colocar mosaicos, azulejos e mármore.

“Eu aprendi porque ia levar comida ao pai do meu filho na obra. Depois passei a ser a sua servente, fazia massa para ele. E depois ele ensinou-me. Enquanto ele fazia o intervalo eu ia colocando uma peça ou outra. Ia dando uns toques e, assim sucessivamente, fui aprendendo com ele e comigo mesma. Fui descobrindo novas técnicas”, diz.

O dia-a-dia de trabalho

Eliane acorda cedo todos os dias para deixar a filha no jardim-de-infância, onde fica até às 18 horas. A interlocutora conta que vai para a oficina às 9 da manhã e regressa a casa por volta das 19 ou 20 horas, já que está sempre cheia de trabalho.

“Não sei se é pelo facto de eu ser mulher, ou outro motivo, mas uma coisa é certa, não tenho do que me queixar relativamente às encomendas. Recebo tantas encomendas que por vezes até fico stressada de tanto fazer orçamentos”, menciona.

Por semana, a marceneira recebe, no mínimo, a encomenda de dois conjuntos de sofás para pessoas diferentes. A jovem, que apesar de estar “sempre suja”, gosta de maquilhagem, revela que trabalha sozinha por gostar de cumprir os prazos que combina com os clientes.

“Até tentei arranjar outros trabalhadores só que brincavam muito e depois há a pressão dos clientes que sempre ficam a perguntar quando podem vir buscar a encomenda. Faço de tudo para entregar a encomenda de modo a não faltar à minha palavra”, expõe.

Por dia, Eliane Semedo faz um sofá. Para além disso, desarma as paletes, limpa-as na máquina e depois arma um sofá, mesa ou cadeira, de acordo com a encomenda. O preço de cada móvel varia entre 2 mil escudos (uma cadeira) e 35 mil escudos (um sofá formato L). Há dias, revela, cobrou 90 mil escudos por três peças.

Eliane Semedo revela ainda que compra cada palete por 300 escudos e depois paga para que sejam limpas, mas como também tem de pagar a terceiros para fazer as almofadas dos sofás. “As pessoas reclamam do preço, mas, trabalhar com paletes até ficar um móvel bonito não é fácil”, assevera.

Por outro lado, Linete confessa que nem sempre há trabalho devido ao desconhecimento das pessoas, da qualidade dos seus serviços. Afirma que prefere trabalhar em casa de familiares ao invés de trabalhar com empresas, factor que, segundo fez saber, contribui para que não tenha muito trabalho.

“Quando o empreiteiro recebe paga o subempreiteiro, quando o subempreiteiro nos paga é sempre pouco. Por isso, trabalho por minha conta em casa das pessoas. Às vezes, aceito trabalhar nas empresas para que conheçam a qualidade do meu trabalho, para que saibam que sei fazer o que faço”, informa.

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Linete conta que cobra o mesmo preço dos homens por confiar no trabalho que realiza. O mercado, salienta, ainda é dominado pelos homens, por isso, afirma que há aqueles que procuram o seu serviço por curiosidade.

“Há aqueles que trabalham comigo por causa da curiosidade, pelo facto de eu ser mulher. Outros por causa da qualidade do meu trabalho. A maioria trabalha comigo por causa da qualidade do meu trabalho, daquilo que eu faço. Aqueles que me procuram por curiosidade, acabam por se apaixonar pelo meu trabalho e até me ajudam a conseguir outros clientes, por causa da qualidade”, garante, assegurando que trabalha “melhor do que muitos homens”.

Segundo a ladrilhadora, durante o trabalho, deixa de ser mulher ao vestir o seu fato-macaco e botas. Por isso, não sente “nenhum constrangimento” quando é necessário dormir no trabalho, no meio de homens.

“Uma vez fui fazer um trabalho em Assomada onde tínhamos de lá dormir. À noite, os rapazes ficaram constrangidos e não queriam deitar-se no mesmo espaço que eu por considerarem ser estranho. Então, vesti o meu fato-macaco arrumei o meu colchão e disse: “ se vocês não quiserem dormir o problema é vosso”, lembra.

A qualidade do seu trabalho, relata Linete, fez com que trabalhasse no Tarrafal, Ribeira da Barca, Santiago, Calheta, Assomada, São Domingos e todos os bairros da capital, com excepção dos mais recentes. Fez ainda, disse, com que recebesse propostas de trabalho para fora de Cabo Verde e para outras ilhas. Entretanto, na altura recusou por ter filhos menores e não ter com quem os deixar.

“Preferi confortar-me com o pouco que apareceu por aqui mesmo. O meu pai é morto, a minha mãe vive no exterior e não tive o apoio familiar. Por isso, desde cedo, lutei sozinha. Não podia deixá-los”, lastima.

Publicidade nas redes sociais

Apesar da falta de notoriedade, a ladrilhadora Linete diz que nunca pensou em divulgar o seu trabalho na rede social Facebook, onde muitos têm partilhado os seus feitos.

“Eu gosto que as pessoas me conheçam, mas com a mão na massa e não na internet. Mas, notei que ultimamente a publicidade no Facebook é importante no mundo em que estamos. Nessa nova era sem propaganda, sem popularidade, és passado para trás, ainda que tenhas qualidade”, sustenta Ana Paula Pinto para quem, apesar das vantagens, “há muitas desvantagens no Facebook”.

Por seu turno, Eliane Semedo sustenta que as vendas aumentaram depois que passou a publicar o seu trabalho nas páginas de venda no Facebook. “Esses grupos têm muitas pessoas. Por isso, sempre que eu faço, publico”, acrescentou a marceneira. As coisas estão indo tão bem que até está a pensar abrir um espaço maior para ensinar a homens e mulheres aquilo que sabe fazer tão bem.

Futuras taxistas

Em Setembro do ano passado, duas dezenas de mulheres iniciaram uma formação para operarem como taxistas, na cidade da Praia. Na altura noticiou-se que a selecção das 20 mulheres foi o resultado de uma parceria entre a Escola de Condução Prevenção Rodoviária, o Instituto Cabo-verdiano para Igualdade e Equidade do Género (ICIEG) e o Ministério da Educação, Família e Inclusão Social.

As seleccionadas tiveram direito a receber Carteira de Aptidão Profissional (CAP) para se inserirem activamente no mercado de trabalho como condutoras profissionais de taxi.

“Em Cabo Verde, o serviço de taxi é exercido até agora exclusivamente por homens e várias razões podem estar por detrás deste facto, nomeadamente a segurança e o horário em que é exercida esta actividade”, defendeu na altura o ICIEG.

Uma dessas mulheres é Letícia Teixeira, quem se aventurou nesta iniciativa por estar desempregada.

“De todas nós apenas 3 tinham carta de condução, as outras 17 estão a receber aulas ainda. Já fizemos o código e agora estamos a fazer mecânica e prática. Aquelas que já tinham carta foram logo mandadas para a mecânica. Vamos começar a trabalhar só depois de ter a carteira”, explicou.

Esta entrevistada disse que ela e as restantes colegas pretendem fazer do taxi algo seguro para transportar pessoas, principalmente crianças.

“Vamos mostrar que nós mulheres somos capazes. As mulheres nem sempre têm confiança em apanhar um taxi com um homem, há muitos homens maus. As diferenças serão muitas, mas o principal será a segurança e a confiança”, explana.

Ainda nas suas declarações, Letícia fala do medo que muitos pais têm em entregar seus filhos para serem transportados por taxistas. Esta entende que ao se tratar de uma taxista mulher haverá menos receio.

“Tenho a certeza de que vamos ‘roubar’ muitos clientes aos taxistas homens”, afirma a futura taxista, dando conta que não receberam nenhuma formação de autodefesa, mas que o plano é trabalhar de manhã até as 18 horas.

Letícia diz ainda que as mulheres taxistas terão um cartão para os clientes que quiserem um contrato de serviço pago a cada final de mês.

“Isto não quer dizer que vamos trabalhar apenas com contratos, mas é um dos pontos. Muitos dizem que nós mulheres, não vamos aguentar este trabalho porque é perigoso e que não é trabalho para mulher, que vamos sofrer assédio, etc. Mas, acho que estamos preparadas para tudo, esses tópicos ainda não constituem barreiras”, acredita.

Esta mulher e futura taxista é de opinião que há que se arriscar para conseguir atingir um objectivo na vida, porque, diz, “nada é fácil”.

“Se formos com um pensamento negativo atrairemos negatividade, então o meu foco é o sucesso e vou consegui-lo”, finaliza.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 947 de 22 de Janeiro de 2020.  

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Autoria:Sheilla Ribeiro,25 jan 2020 9:10

Editado porAndre Amaral  em  17 out 2020 23:21

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