Albertino Fernandes, Presidente da FICASE : Não confundir solidariedade com caridade

PorJorge Montezinho,24 mai 2020 8:42

A pandemia da COVID-19, causada pelo Novo Coronavírus, chegou a quase todos os países do mundo, alterando por completo rotinas e modo de vida. Cabo Verde não foi excepção.

Para ajudar as famílias com rendimentos abaixo do salário mínimo nacional, ou sem qualquer fonte de rendimento, o governo criou o Programa de Assistência Alimentar, liderado a nível nacional pela Fundação Cabo-verdiana de Acão Social Escolar (FICASE), em parceria com as Câmaras Municipais, Proteção Civil, Forcas Armadas, Cruz Vermelha de Cabo Verde, Cáritas de Cabo Verde, ONGs, Delegações do Ministério da Educação, entre outras instituições de cariz social. O trabalho conjunto destas instituições optimiza recursos, evita duplicação de apoios, e garante assistência alimentar imediata a 22.500 famílias mais vulneráveis, correspondente a cerca de 90.000 pessoas. Albertino Fernandes, o presidente da FICASE, explica ao Expresso das Ilhas como está a decorrer a campanha.

A FICASE, cuja missão é, na essência, vocacionada para as escolas, passou agora também a dar apoio às famílias. Porquê esta reconfiguração?

Esta não é, de facto, a vocação da FICASE, mas como é que entrámos nesse programa de assistência alimentar? Com a suspensão das aulas, não fazia sentido ter os géneros disponíveis nos armazéns, correndo o risco de esgotar os prazos de validade, quando há pessoas a passar por necessidades de alimentação. Fizemos uma proposta à senhora ministra da educação para usarmos esses géneros no sentido de beneficiar as famílias que tinham no seu seio crianças em situação de vulnerabilidade. Essa foi a nossa primeira abordagem. Entretanto, a senhora ministra considerou que para além disso, poderíamos alargar um pouco mais o programa a todas as famílias, de acordo com o decidido pelo governo. E foi assim que a FICASE entrou neste programa de ajuda alimentar.

Foi complicado reorganizarem-se nesse sentido?

Nós temos uma estrutura logística com pessoal muito experiente. Na realidade, o nosso programa de alimentação escolar cobre cerca de 20 por cento da população de Cabo Verde. É um programa que, diariamente, numa situação normal de funcionamento das escolas, beneficia cerca de 90 mil alunos de Santo Antão à Brava. Esta estrutura montada, e muito experiente, foi reorganizada como cadeia de abastecimento apenas em termos de resultado final, deixaram de ser alunos, passaram a ser famílias. Esta reorganização foi feita também através das câmaras municipais, sem as autarquias dificilmente iríamos ter sucesso neste programa. E trabalhamos com as câmaras municipais porquê? Porque o Ministério da Família e Inclusão Social já tem por hábito trabalhar com as câmaras, aliás, os serviços sociais foram municipalizados. Como é a mesma ministra, foi fácil em termos de liderança e nós montámos a logística de forma a articular com as câmaras municipais. O que continuamos a fazer é fornecer os géneros às câmaras municipais e elas fazem a distribuição de acordo com uma lista prévia, enviada pelo ministério da família e inclusão social, que tem por base o número de famílias inscritas no cadastro social único. É um critério objectivo.

Como tem sido a resposta à campanha lançada pela FICASE?

Muito boa. Aproveito para agradecer a adesão das pessoas e das empresas. Neste momento, no site, já conseguimos mais de dois mil contos. Mas existe também uma outra forma de doação, através de transferências bancárias. No total, já angariámos cerca de cinco mil contos. Está a ser uma onda de solidariedade extraordinária.

Até porque tiveram de refazer o orçamento da FICASE, presumo?

Sim. Vai haver um orçamento rectificativo, que será direccionado para as cantinas escolares.

Com o conhecimento que tem do terreno, é possível fazer um retrato social das pessoas mais afectadas por esta crise?

Penso que as câmaras municipais estão melhor posicionadas para fazer esse retrato. Porque este contacto directo com as famílias foi feito pelas equipas camarárias, a FICASE foi, digamos, o fornecedor dos produtos. E foi feito desta forma para permitir também junção de esforços, porque as câmaras também tiveram muitas doações, houve uma solidariedade muito grande, mesmo através da FICASE, porque também lançámos uma campanha de mobilização de recursos, que está a ter uma grande adesão. Ao mesmo tempo, evitamos duplicações.

Esta acção da FICASE tem também um lado económico, porque estão a comprar produtos locais. Foi uma estratégia pensada para ajudar os produtores, que também atravessam momentos difíceis?

Sim. Comprámos onde é possível, porque há muitas localidades onde não foi possível adquirir a quantidade de géneros que precisávamos. Demos esta prioridade às compras locais. Não foi possível em todas as ilhas, mas conseguimos em Santo Antão, São Vicente, no Fogo. Ao mesmo tempo, evitamos a centralização, porque centralizar na Praia ou em São Vicente a distribuição, com os problemas de transportes marítimos, eventualmente não conseguiríamos ter o mesmo resultado que tivemos.

Em termos de stocks, há risco de ruptura?

Não. Foi uma preocupação nossa, já temos contactos com grandes fornecedores, porque a nossa primeira questão foi, exactamente, a de ruptura de stock, ou seja, nesta acção de apoio às famílias não criar um problema no próprio mercado. Mas as empresas têm stocks suficientes e mesmo em termos de abastecimento internacional não houve grandes problemas.

Ou seja, estão preparados para continuar a dar resposta à procura, até porque o fim da crise sanitária não será o fim da crise económica.

Sim. Embora, como já disse, a nossa missão é a acção social escolar, nestas circunstâncias, dependendo das indicações do governo, estamos prontos para colaborar como servidores públicos. A continuação, ou não, da FICASE neste processo, depende das indicações da nossa ministra e do governo.

Até porque o último relatório da UNICEF aponta que, por causa da COVID, a pobreza extrema poderá atingir mais 62 milhões de crianças. Estamos a falar de números esmagadores.

É enorme em termos globais. Em Cabo Verde, o governo está a tentar fazer tudo para minimizar os impactos nas famílias. Sabemos que é uma crise que irá afectar mais a classe mais vulnerável. Em Cabo Verde temos cerca de 30 mil crianças em situação de vulnerabilidade, mesmo alimentar, e muitas crianças, temos consciência disso, conseguem ter uma alimentação somente nas escolas. Temos de estar cientes destas situações e tentar dar o nosso máximo para proteger essas crianças. É por isso que, mesmo com as escolas encerradas, o nosso programa de alimentação escolar continua, com o objectivo de conseguir satisfazer esta demanda das crianças em situação de vulnerabilidade. São realmente números que criam um certo receio sobre as situações futuras que vamos ter de viver e ultrapassar.

Numa altura como esta é importante também não confundir o que estão a fazer, solidariedade, com caridade?

Exacto. O que fazemos é um gesto de solidariedade, como diz, e não um gesto de caridade. É de solidariedade. A sociedade cabo-verdiana é uma sociedade com uma economia muito informal. Nesta situação de confinamento muitas pessoas perdem rendimento. Por isso, essas medidas de protecção social que o governo está a ter, não só através das ajudas alimentares, mas também através dos rendimentos. De tudo isto há um ponto positivo, como o critério utilizado foi a inscrição no cadastro social único, as pessoas começaram a inscrever-se. Hoje, já temos muito mais pessoas inscritas do que no início do programa. O governo poderá, inclusive, ter mais controlo sobre as suas politicas de solidariedade e nesta onda de solidariedade, tanto da parte do governo como da sociedade civil, é preciso ter em atenção que se deve evitar que pessoas aproveitem indevidamente oportunidades para se beneficiarem desses programas. Infelizmente isso acontece, temos consciência disso, mas estamos a fazer de tudo para sermos criteriosos na atribuição para minimizar esses tipos de oportunismos que também surgem em momentos como este.

É curioso que fale em oportunismos, porque algumas vezes podem surgir também por parte de quem distribui os benefícios e não apenas de quem é beneficiado. É importante evitar, por exemplo, aproveitamentos políticos?

Claro e essa é a nossa indicação a todas as câmaras municipais, que é quem faz a distribuição. Penso que tem havido uma consciência muito grande por parte das câmaras e, pela informação que me chegou, têm tentado ao máximo para não expor as pessoas, para não as utilizar indevidamente, ou para tirar qualquer tipo de proveito com este programa. Acho que está a ser bem gerido, pelo menos, das informações que tenho recebido.

Presumo que, em termos de necessidade de assistência, o cenário mais complicado seja Santiago, até porque é a ilha que tem mais população.

Sim. Santiago, mais concretamente a Praia. Mesmo em termos de problemas, digamos assim, os centros urbanos, Praia e Mindelo, foram os mais complicados de início em termos de distribuição. Com o tempo, o acumular de experiência permitiu ir melhorando aos poucos o processo. Foi uma melhoria contínua, com cada dia a ser melhor do que o anterior. E estamos a conseguir. As câmaras trabalham com as associações comunitárias e a entrega dos cestos está a ser feito porta a porta. No início, quando ia o carro da câmara, e falo da Praia, houve acumulação de pessoas, mas fez-se uma campanha de sensibilização, mostrando que as cestas básicas são para as pessoas que não têm rendimento e as pessoas começaram a colaborar e agora está a correr muito bem, foi uma aprendizagem de parte a parte.

Qual a quantidade de alimentos que já foi distribuída até ao momento?

Só da parte da FICASE já foram distribuídas mais de 800 toneladas de produtos. Do orçamento da FICASE, nas duas fases, gastámos cerca de 110 mil contos, praticamente o orçamento do programa de alimentação escolar para um ano que foram gastos em dois meses.

No meio de toda esta situação, é possível falar também em ganhos?

Sim. Quando falamos de pandemia e de crise, a tendência é apontar só os lados negativos dessas situações, mas também há lados positivos. E em termos de ganhos, como referi, temos a utilização do cadastro social único, um instrumento de acção social do Estado e que permite ao Estado ser muito objectivo e criterioso nas suas campanhas, quer de solidariedade, quer de acção social. Acho que este instrumento vai-nos permitir outra forma de fazer políticas. Mesmo dentro da FICASE ter esse instrumento é muito importante, permite optimizar recursos e, como disse, vai-nos dar outra objectividade na implementação dos nossos programas. Porque temos vários, a alimentação escolar, mas também bolsas de estudo, transportes escolares, etc. Neste momento, estamos numa altura de solidariedade, mas a nossa missão principal é a acção social para garantir um direito Constitucional, que é o direito à educação e ter esse instrumento, para nós é excelente. Por outro lado, conseguiu-se também formalizar mais um pouco a economia. As pessoas passaram a aperceber-se que o Estado tem de ter um certo controlo sobre o cidadão. Por último, gostava de realçar a articulação com as câmaras municipais, para nós foi extraordinário. Há muito tempo que estávamos a tentar municipalizar alguns serviços da FICASE, e com algumas câmaras já tínhamos conseguido, como o transporte escolar, agora, faltava sempre a outra parte e vemos agora que, noutros programas, as câmaras poderão ter um papel muito mais importante. Tudo o que está nos concelhos tem de ser visto numa óptica de soma de recursos e não de divisão de recursos. A FICASE não pode estar num concelho com programas de acção social e a câmara, em paralelo, com outros programas, é um desperdício de recursos. Por isso refiro que foi muito importante esta articulação com as câmaras municipais para conseguir ter sucesso com este programa.

No fundo, aprenderam a trabalhar juntos.

É verdade, foi isso que acabou por acontecer. Aprendemos realmente a trabalhar juntos, a descobrir que os objectivos são comuns e o papel das câmaras municipais é fundamental. Em políticas sociais, as autarquias são quem está mais perto das populações, são quem conhece a situação real, porque cada concelho é diferente, cada localidade tem as suas especificidades e quem realmente conhece tudo isso é a câmara municipal. Aproveito para deixar um reconhecimento ao trabalho das autarquias, porque sem elas não conseguiríamos ter o sucesso que estamos a ter.

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A Fundação Cabo-verdiana de Acção Social Escolar, FICASE, é um instituto público, integrado na Administração indirecta do Estado, com a natureza de fundação pública, dotado de autonomia administrativa, financeira e patrimonial.


A FICASE é o primeiro instituto público na modalidade de fundação pública na história de Cabo Verde.

Missão

Promover a igualdade de oportunidades à comunidade educativa, desenvolvimento um conjunto de acções que garantam o sucesso e a qualidade do ensino e de aprendizagem.

Valores

Gestão Participativa;

Ética e Transparência;

Justiça e imparcialidade;

Igualdade e Proporcionalidade;

Espíritode Equipa e Dinamismo;

Responsabilidade Social, Moral e Solidariedade;

Eficiência, Eficácia e Efectividadena Prestação de Serviços;

Visão

Ser uma instituição consolidada e de referência, capaz de garantir a sustentabilidade de seus programas e o alargamento de seu campo de actuação.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 964 de 20 de Maio de 2020. 

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Autoria:Jorge Montezinho,24 mai 2020 8:42

Editado porSheilla Ribeiro  em  3 mar 2021 23:21

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