“Ver morrer um paciente é como perder alguém da família” - Evanilda Santos

PorJorge Montezinho,2 mai 2020 8:24

Como acontece por todo o mundo, em Cabo Verde a Covid-19 já chegou também aos profissionais de saúde. No início desta semana, dois médicos e dois funcionários do Hospital Agostinho Neto foram infectados com a doença e o Bastonário da Ordem dos Médicos já veio dizer que nem todas as regras de segurança são cumpridas. Entre os enfermeiros ainda não se contabilizam casos, mas o stress da actividade diária já começa a deixar as suas marcas.

A Covid-19 afectou até a criação da Ordem dos Enfermeiros. Actualmente, o que está a funcionar é uma comissão instaladora. A eleição era para decorrer no dia 18 deste mês, mas devido à pandemia teve de ser adiada para uma data posterior. Os enfermeiros, desde a primeira hora na linha da frente no combate à pandemia, ganham actualmente uma visibilidade, cada vez mais reconhecida pela sociedade. “Os enfermeiros, em todas as epidemias, estão sempre na primeira linha porque são quem passa mais tempo com os doentes”, diz ao Expresso das Ilhas Evanilda Santos, presidente da comissão instaladora da Ordem dos Enfermeiros. “Os procedimentos feitos diariamente, na maioria, são feitos pelos enfermeiros”.

Esta visibilidade da classe, a nível mundial, veio trazer força às reivindicações profissionais. Em Portugal, por exemplo, recentemente a Bastonária da Ordem dos Enfermeiros afirmou que os governos não valorizam os enfermeiros. Mas em Cabo Verde, na opinião de Evanilda Santos, o cenário é diferente. “Em Cabo Verde temos tido um grande apoio do governo. Ainda não temos a ordem, mas o governo fez de tudo e incentivou-nos para a criação da ordem. A preocupação que o ministério da saúde tem é que os enfermeiros sejam cada vez melhor remunerados, tenham mais incentivos, nesse aspecto não temos muito a queixar-nos. O nosso estatuto foi elaborado há pouco tempo, o salário melhorou nos últimos anos, o governo fez com que tivéssemos cursos superiores em Cabo Verde. É claro que ainda há muito por fazer, precisamos de formações específicas para cada área, especialistas, , mas há um interesse nessa área por parte do governo”.

Especialização é o ponto chave. Com o início da pandemia, Cabo Verde aumentou o número de enfermeiros, com o recrutamento de 179 profissionais para reforçar o Sistema Nacional de Saúde, em todos os concelhos do País e, essencialmente, para libertarem os enfermeiros mais experientes para a luta contra o coronavírus. “Quando se contratam enfermeiros, e quando começa a trabalhar, não são colocado na área mais específica, faz-se um estágio após terminar o curso e nunca trabalha sozinho. Para a Covid-19 é claro que terá de ter capacidade de fazer uma triagem que possa levar a um encaminhamento correcto, mas os enfermeiros na linha da frente nos cuidados intensivos não são os enfermeiros recém contratados, foram contratados para reforçar as áreas de onde foram retirados os enfermeiros mais experientes, mas não é colocado nenhum enfermeiro recém formado nos cuidados intensivos ou na urgência”.

Inexperientes ou experientes, os enfermeiros cabo-verdianos fizeram formações para saberem como lidar com a nova doença. Houve uma actualização em cuidados intensivos, na triagem, ou na utilização dos equipamentos de protecção individual. “Os enfermeiros de Cabo Verde estão capacitados para trabalhar na linha da frente”, garante a presidente da comissão instaladora da Ordem. “Além disso, também temos enfermeiros na linha verde, que fazem o atendimento e encaminham as pessoas tanto para psicólogos como para médicos. Estamos capacitados para estarmos em qualquer área, mas continuo a dizer que precisamos de especializações, porque um enfermeiro especialista não é igual a um enfermeiro generalista”.

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Outro elemento que deve ser tido em conta, sublinha Evanilda Santos, é a necessidade de serem feitos testes aos profissionais de saúde. “Estamos a apelar para que sejam feitos testes, para sabermos com certeza que não contaminamos a família. A equipa técnica que foi para a Boa Vista foi testada, e, actualmente, não temos relatos de enfermeiros contaminados com a Covid-19 em Cabo Verde”. No caso do pior cenário, de contágio, os enfermeiros cabo-verdianos têm a garantia que será considerada, legalmente, como doença profissional, desde que aconteça durante o exercício da profissão.

Para além do bem-estar físico, a saúde mental dos profissionais de saúde é outra preocupação. Os enfermeiros cabo-verdianos, tal como acontece a nível global, estão há semanas fora de casa, para não terem contacto com a família e assim evitar o contágio e essa situação, diz Evanilda Santos, é um dos factores de stress. “Directamente para os profissionais de saúde não há apoio, mas temos um apoio de psicólogos para a população em geral. No ministério da saúde temos uma psicóloga que tem tentado fazer um projecto para os profissionais de saúde, mas neste momento não há nada direccionado em particular. Será importante que apareça, porque trabalhamos diariamente num stress contínuo que nos pode levar também a adoecer”.

Até ao momento, e excluindo o turista inglês que faleceu na Boa Vista, ainda não há registo de mortes por Covid-19 entre nacionais, mas a possibilidade dos óbitos virem a ocorrer, como demonstram, inclusive, os modelos matemáticos, é real. “Será muito complicado. A população às vezes não entende, mas o facto de perdermos um doente é muito stressante para a equipa e principalmente para o enfermeiro, que está continuamente com o paciente. Ao perdermos um doente é como se fosse alguém da nossa família”.

Não foi só a oficialização da Ordem dos Enfermeiros que ficou em espera por causa da pandemia, 2020 é designado pela Organização Mundial de Saúde como o ano internacional do enfermeiro e das parteiras, sublinhando o papel vital que desempenham, uma vez que os enfermeiros representam mais de 50 por cento da força de trabalho em saúde do mundo. Em Cabo Verde já havia um plano de actividades para assinalar a data, mas devido à pandemia não foi possível. “O enfermeiro, em todas as epidemias, tem estado na linha da frente e é quem começa o combate. Este destaque do enfermeiro não aconteceu por acaso”.

Ainda este mês, no Dia Mundial da Saúde, a directora-geral da OMS África, Matshidiso Moeti, referiu que os enfermeiros desempenham uma função essencial nos cuidados de saúde primários, um dos pilares para alcançar a cobertura universal de saúde. Juntamente com as parteiras, disse, estabelecem uma ligação fundamental entre os indivíduos, as famílias, as comunidades e o sistema de saúde. Fornecem apoio em todo o ciclo de cuidados, desde a promoção da saúde, à prevenção, tratamento, convalescença e cuidados terminais.

Agora, neste momento de trabalho ininterrupto, a presidente da comissão instaladora da Ordem dos Enfermeiros de Cabo Verde, quis deixar uma mensagem a todos os profissionais: “Mantenham-se firmes e corajosos, estão a desempenhar um papel importante. Tenham cuidado convosco e com os familiares. Uma palavra especial para os enfermeiros da Praia, da Boa Vista e de São Vicente, juntos venceremos, não é a primeira epidemia que estão a combater e nem será a primeira que irão vencer”.

A nível mundial, a situação dos serviços de saúde, face à pandemia, exige que se operacionalizem, de imediato, planos de resposta adequados à contenção e mitigação de transmissão hospitalar, sob pena de colapso na resposta das unidades de saúde. Neste momento, o Hospital Agostinho Neto tem 4 profissionais infectados com covid-19. Destes, 2 são médicos.

O Bastonário da Ordem dos Médicos, Danielson Veiga, já reagiu publicamente e disse preocupado com os casos registados na classe médica, em declarações ao programa Bom Dia Cabo Verde, da RCV. “Infelizmente tivemos esses casos no Hospital Agostinho Neto, uma situação altamente indesejável. Segundo a opinião de alguns colegas, não tem sido cumprido, na íntegra, tudo aquilo que deveria estar a ser implementado na prática. Quando é assim, as pessoas sentem-se um tanto quanto mais vulneráveis, ficam com uma série de questões e sempre a contactar a Ordem para verem como a situação pode ser contornada”.

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“O que está no papel não coincide com a prática, são coisas que têm de ser corrigidas a tempo e horas”, acrescentou o Bastonário que apontou a comunicação como o grande desafio actual. “O nosso objectivo é ajudar a proteger os outros e a nós mesmos. Tudo tem de ser actualizado constantemente. As medidas têm sido remodeladas para que toda a gente esteja o mais seguro possível e o que acontece aqui no hospital é que não há essa comunicação”.

“Temos de redobrar os nossos cuidados e ser assertivos nas nossas responsabilidades”, reforçou Danielson Veiga, “se houver mais casos, pode haver problemas na sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 961 de 29 de Abril de 2020. 

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Autoria:Jorge Montezinho,2 mai 2020 8:24

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  9 fev 2021 23:20

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