Nesta reportagem o Expresso das Ilhas procura entender os efeitos psicológicos nas famílias e o porquê de as mensagens não passarem em todos os sectores, ou camadas da sociedade.
A verdade é que a doença está gerando stresse na população pelo risco de contaminação, incerteza, isolamento social e desemprego, entre outros motivos. Tanto é que a Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentou no passado mês de Abril dicas para enfrentar consequências psicológicas e mentais do novo coronavírus. Trata-se de um guia dirigido a profissionais de saúde, crianças e idosos, líderes de equipes e pessoas em quarentena.
E na ilha de Santiago...
O psicólogo Jocob Vicente, contacto pelo Expresso das Ilhas começa por explicar que não estava à espera desta prorrogação e, muito menos por esse período, para toda a ilha de Santiago. Pois, disse ser da sua opinião que há municípios onde não se justifica o EE.
“Estamos a falar de uma ilha com nove municípios, em que um é a capital do País e os outros eminentemente agrícolas que, não obstante a seca que nos assola nos últimos anos, é da terra que tiram o seu sustento e em que os casos da COVID–19 é praticamente insignificante”, argumenta.
Por outro lado, completou, há a capital do País, a cidade da Praia, onde uma percentagem bastante significativa da população vive e sobrevive das economias informais e que, com o prolongamento por mais 15 dias do estado de emergência, muitas destas famílias ultrapassarão a sua capacidade de suportar as limitações impostas impedindo-as de exercer as actividades diárias de rendimento que lhes permite ter acesso aos bens básicos para o seu dia-a-dia.
Quanto às mensagem de luta e prevenção, Jocob Vicente afirma ter por si que “já houve a interiorização das medidas necessárias (atitudes e comportamentos) de prevenção contra a COVID-19” no seio da população e que o aumento de casos revelados nos últimos dias reportam-se a comportamentos e atitudes de riscos obtidos anteriormente. Entretanto, acredita ser necessário a existência de um plano estratégico pós EE que deverá nortear as acções por município, de forma a que se possa fazer passar a conviver com a COVID-19, com capacidade da sua contenção.
“As famílias estão preocupadas com a manutenção dos seus postos de trabalho (pais) por um lado, como também, em se desenvolverem acções de contenção de vírus no seio da sua família. Isto vai obrigar-nos a todos nós a desenvolver habilidades psicossociais para uma nova conduta social em que, a longo prazo, todos ganharemos, pois teremos uma sociedade mais forte, mais resiliente e muito mais consciente e inteligente”, defende.
Os idosos, frisou acreditar piamente que, não obstante a limitação brusca das suas liberdades, são aqueles que mais estão a entender estes momentos difíceis por que estamos a viver. Pois, referiu, têm a memória do passado, que lhes transmitem sabedoria para lidarem com a situação. Entretanto, disse o psicólogo, para aqueles que sofrem de debilidades de saúde a dificuldade é maior.
“Para as crianças e adolescentes (nossos filhos), que têm vivido em plena liberdade, sem restrições e sem conhecerem o perigo, sem dúvida que estes dois meses de privação de liberdade, em particular, têm sido de tormento e indagações. Mas, deve ser um período a ser aproveitado pelos pais para ensinarem e aprenderem com os seus filhos. Muitos pais e filhos descobriram-se durante este período e isto, em tese, deve ser muito bom”, complementou.
Que tipo de perturbações poderá desencadear?
Respondendo à esta questão, Jacob Vicente referiu que durante este período se tem observado um aumento constante de pessoas que tendencialmente estão experimentando transtornos emocionais vários, transtornos comportamentais, depressão, ansiedade, síndrome de pânico, de entre outros.
“É o momento para começarmos a falar da saúde mental comunitária em Cabo Verde. Não podemos esperar que isso seja ultrapassado sem apoiarmos as comunidades na forma como estão a processar todos estes acontecimentos”, defendeu o psicólogo completando que “a heterogeneidade social que nos envolve, impõe-nos esta decisão enquanto sociedade” e espera sinceramente “ver este sinal da nossa parte, enquanto colectivo que somos”.
Conforme disse, há que desenvolver três tipos de inteligência: a social, a individual e a profissional, com base essencialmente na inteligência emocional. “Na minha opinião, isto já não é uma vontade mas, sim, uma obrigação imposta por este novo tempo”, finaliza.
O obstáculo “não é a cultura”
Especialistas de todo o mundo argumentam que a comunicação dos riscos é parte integrante de qualquer resposta às emergências e consiste na troca de informação, aconselhamento e pareceres em tempo real entre peritos, líderes comunitários ou oficiais e as pessoas que se encontram em risco. Durante as epidemias, pandemias, crises humanitárias e catástrofes naturais, defende a OMS que uma comunicação eficaz dos riscos permite às pessoas que se encontram em maior perigo compreenderem e adoptarem comportamentos de proteção. Por cá, o geógrafo José Maria Semedo é de opinião que a mensagem existe, mas que é preciso entender as razões pelas quais elas não têm sido respeitadas.
“Não é uma questão de cultura, mas é ver se as pessoas têm condições de cumprir a mensagem que lhes são passadas. Deveria haver um estudo prévio do porquê de as pessoas não cumprirem aquilo que lhes são ditas. Não é a cultura que é um obstáculo, são outros problemas”, defende.
Exemplificando, José Maria Semedo, afirma que para quem vive no Palmarejo, zona de classe média-alta da cidade da Praia, “não há problema nenhum”, ao contrário de quem mora, por exemplo, em Safende numa casa com uma porta, sem nenhuma janela, juntamente com mais quatro ou cinco pessoas.
“É mais uma questão de rendimento económico e condições de habitação. Basta ver em que bairros está a espalhar mais a doença. É uma questão económica, educacional porque a doença está a espalhar-se em zonas que têm grande concentração demográfica e não há condições de habitação. Não é cultura nenhuma, é dizer caso a caso a quem é que está a passar a doença”, explica.
Para José Maria Semedo, nas outras ilhas não há o mesmo cenário porque a doença não chegou lá. Aliás, defendeu que se a doença tivesse chegado à Ribeirinha, Txã de Craquinha e outros bairros pobres de Cabo Verde “seria a mesma coisa”.
“Na Boa Vista, onde é que apareceu a doença? Bairros de barracas. E no Brasil, por exemplo, é nas favelas que há mais contaminação dessa doença, quem está mais a morrer são os favelados. É a mesma coisa que está a acontecer em Cabo Verde, não tem nada a ver com a cultura, tem a ver com a situação urbana, de como é que as cidades estão estruturadas”, prosseguiu.
Confinamento só resulta se houver condição
Este especialista afirmou ainda que, mesmo com a prorrogação, continua tudo na mesma porque se as pessoas não tiverem condições de se defenderem vai resultar na mesma.
“Vamos ter é mais um mês à espera porque não vai resolver nada porque quem está amontoado numa barraca não poderá fazer confinamento. O confinamento só se faz com quem tem casa, tem espaço e pode defender-se fazendo o distanciamento social”, profere este geógrafo.
José Maria Semedo disse também que no dia 29 de Maio, quando se chegar ao último dia do estado de emergência, as pessoas vão ter que manter o distanciamento social, porque mesmo que o Presidente levante o estado de emergência vão ter que usar máscaras durante muitos meses.
“A cultura é isso, que as máscaras vão passar a ser parte da nossa indumentária por alguns meses. E as pessoas, se calhar, nem pensaram isso, pensam que basta levantar o estado de emergência e vamos tirar as máscaras. Seguramente pode não haver comícios este ano, quem é que vai aos comícios de máscaras?”, prosseguiu.
Segundo defendeu, as pessoas vão ter de usar as máscaras até o fim do ano para evitar que a doença chegue às outras ilhas, porque se não irá acontecer o mesmo que na Praia, onde haja barracas e pessoas pobres. “É um problema sanitário, é uma questão de confinamento sanitário”, concluiu.
A ilha de Santiago conta com um total de 277 casos confirmados, dos quais 270 (80%) no município da Praia, quatro em São Domingos, dois no concelho do Tarrafal, e um em Santa Cruz, que se juntam a 56 (17%) na ilha Boa Vista (53 recuperados) e três na ilha de São Vicente (todos recuperados).
No total de 335 casos registados, o País contabiliza três óbitos, sendo primeiramente um cidadão inglês de 62 anos na ilha da Boa Vista, seguida de uma idosa de 92 anos e, no sábado último, de um cidadão cabo-verdiano de 65 anos, ambos na Cidade da Praia. Há ainda 84 recuperados e dois doentes evacuados para os seus países.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 964 de 20 de Maio de 2020.